17.9.15

Rosa estiolada

Uma rosa fechada
resguarda um perfume doce.
Ninguém sabe se o perfume é doce
em estando fechada a rosa.
Deitaram-se ilações em convenção,
que as gentes
gostam de precipitar ilações.
Nem tão pouco é dado a conhecer
se a rosa algum dia abrirá.
As gentes passam o pente pela especulação.
Dizem, uns,
que a rosa medrará carmim
o doce do perfume a entoar morangos.
Outros calculam
uma rosa em amarelo desabrochar
vertendo limão odor.
E outros, ainda,
conjecturam uma rosa branca
inundado o odor de pêssegos.
Mas ninguém dá conta
que a rosa continua fechada
à conta de tanta hipótese afivelada.
E que a rosa
em trejeitos de mau feitio
(assim como quem ostenta
notório poder de contrariar o assente),
teimou em ser casulo.
Pois
perante tanta prosápia
antes ser-lhe cega.
E a rosa nunca chegou a medrar
fora do seu casulo.

16.9.15

Três alqueires de futuro

E eis que chegou um cruzamento
e ele sem saber por onde meter o corpo.
As preces, essas,
subiam à noite, céleres;
talvez denotassem a falta de jeito
para tomar conta de si mesmo
talvez, apenas,
o olhar espreitando no ombro do futuro.
E dizia:
“eu estou apaixonado pelo futuro”.
Andava nisto
tão extasiado com o futuro
que nunca chegava a apreciar
o futuro.
Pois em chegando
o que julgou futuro ser
nessa altura futuro já não era.
Por isso as preces todas.
Queria que o futuro não fosse
um pedaço de vento a fugir entre os dedos
ou um vidro sempre em estilhaços.
E dizia:
“eu quero tanto o futuro
que mal posso esperar.”
Pelo caminho
tropeçou na pressa.
E tropeçou no passado.
Em negação
desaproveitou a mnemónica dos idos distantes
tanta a febre em agarrar o fugidio futuro.
Andou nisto o tempo todo.
Quando deu conta
o futuro fora sempre consumido
pela estulta mania de aprisionar o tempo.
O futuro, coitado,
nunca chegara a sair da prisão do passado
de que ele fugia a sete pés.
Em andando sempre nesta empreitada
desaproveitou o ouro maior:
o presente,
o tempo único
que lhe passava pelas mãos.

15.9.15

Há alturas
em que o silêncio
é o prefácio das palavras.

10.9.15

Adolescência

Talvez dementes
ou apenas adolescentes
berrávamos:
“sem mãos”,
o suor ao canto da boca,
nas bicicletas que sabíamos amestrar.

9.9.15

Paredes altas

Os tijolos cheios de musgo
cansam as mãos.
O suor que lava o rosto
desdiz as facilidades.
Porém,
entre a espuma do mar que beija a areia
há conchas pequenas que enchem a alma.
As mãos suadas evocam as conchas
por entre o musgo dos tijolos.
A fala entaramelada testemunha
o cansaço dos ossos.
A parede é alta
descobre armadilhas
parece que não se deixa transpor.

Mas a parede esconde um sortilégio.
Não se sabe
o que mostra no lado escondido.
Pode ser a fruição da bondade
com campos intensos e flores garridas
montanhas suaves atapetadas por urze
os cimos ainda tapados pelas neves eternas.
Ou pode ser uma cornucópia de estultícia
um abraço ardiloso de maldade
e rios fétidos
envergonhando com as suas escuras cores.

As facas pendidas terçam a incerteza.
Mas as mãos suadas não se intimidam.
Agarram as pontas dos dedos
pedaços pequenos de tijolos
e escorregam
escorregam vezes sem conta
no visco que os enroupa.
A eternidade dos tempos adeja
em forma de ameaça.
Pois as mãos pertencem a quem não é imortal
e o engenho não é imorredoiro.

O muro
o tão alto muro
o muro que parece crescer
assim que as mãos derrotam um pedaço de tijolo
personifica uma promessa.
Não se sabe que rosto se esconde
no lado oculto da promessa.
Nem assim as mãos se demovem
à medida que o corpo restante ordena
que o musgo dos tijolos se dissolva
no suor das mãos.

Depois se verá.
Quando o promontório for tomado
e a alta parede for lugar de contemplação
saber-se-á que estimativas faltam
para o descer
e pisar
talvez
seguro chão.

7.9.15

O roubo das almas

À espera.
A névoa que se acama
um feixe de luz tíbia.
A espera demora-se.
Os candeeiros provocam
uma luminosidade opaca.
A espera impacienta.
As luzes sondam as portas
um bafo quente derrete a lucidez.
As esperas todas.
Montadas em série
(talvez em sequência linear)
e a luz decantada pela névoa
cintila entre os poros.
Dizem
que a paciência derrota as esperas.
Dizem que é virtude.
Só não dizem
que as esperas em interminável sucessão
determinam a corrupção das almas.
E luz nenhuma aguenta a provação.

3.9.15

Desconversar

Os ramos secos fecundam
as letras madraças.
Troca-se prosa que caçoa dos sentidos.
Às duas por três
os ramos secos extinguem-se
e fica apenas o chão nu.
Podíamos podar árvores centenárias
ou apenas beber cálices de vinho
enquanto a alma tergiversa.
Ou então
para não sermos apóstolos da indiferença
medrar no sofá e em filmes suecos.
Nem tudo pode ser contumaz
– advertem os senhores da sensatez.
É quando soam as sirenes:
chegou a hora do desconversar.
Chegam depois novas retumbantes:
estaríamos a loucurar
(rezam as novas empoeiradas).
Que seja assim.
Antes uma loucura fecunda
do que a linha direita que fede
a desloucura.
Se preciso for desconversa-se.
As vezes que forem precisas.
Até que toda a desloucura
caiba dentro de uma touca de amianto.

2.9.15

Manifesto

E da janela aberta
enquanto o vento nos beija
a alvorada em forma de renascer.
Nos vidros em orvalho
escorre a tinta da china
testemunha das nossas palavras.
Não importa o tempo que faz.
Pela janela aberta
extraímos a raiz quadrada
da intemporalidade que somos.

1.9.15

Ato falhado

Dizem-me as coisas penumbras
que da cor púrpura não se espere muito.
Atónitos, 
canalizadores das almas desaguam no estertor
que é serem quem são.
Recolhem poeira
a inútil poeira rarefeita
e tiram as medidas de lições perenes.
São saltimbancos
que pontuam as vidas outras
mercê de não saberem o que fazer com a sua.
São
(e nem chegam a dar conta)
genuínos atos falhados.

24.8.15

O devorador de lugares

Passo pelas curvas traiçoeiras
pelas terras áridas
pelas mãos várias.
Passo pelas luas coloridas
pelas avenidas largas
pelos poços escuros.
Passo pelas cordas de uma guitarra
pelo musgo do cais
pelas voltas de um carrossel.
Passo pelas asas de um corcel
pelas pedras pontiagudas
pelos antros temíveis.
Passo pelos lugares todos
e por outros que aprouver
guardando as facas no bornal da memória.
Passo.
E as mãos tremeluzem
só de saberem o passo pelo passo estugado
nos olhares diferentes
nos cheiros da terra
e pelas singulares estrofes de um poema
sem sal.

16.8.15

Tesoura de poda

O ouro fundido nas nuvens.
A alquimia do dia
adocicada nos frutos colhidos.
As flores, vetustas,
sereias delgadas em formosa coreografia.
A vontade segredada em rima
um esteio solar.
Valem as cartas jogadas.
Os trunfos capazes
num naipe entre as mãos suaves.
Das nuvens douradas
uma chuva sortilégio.
Diurna.

14.8.15

Maçã de Adão

Fez-se constar que o pecado
ficou entalado na garganta de Adão.
Ofereço as minhas dúvidas.
Não se fez constar
que outra além de Eva
tenha sido apetite do Adão.
Termos em que uma interrogação
É servida em lume brando:
o que está atravessado na garganta de Adão
por que ficou nesse estado?
A menos que Adão
tenha ocultas amantes e grasse na mentira
ilustres doutores de medicina
são convocados a depor.
Dispensem-se os homens da lupa em riste
em demanda da consciência do Adão.
Faço constar
em porventura especulativo exercício
que os letrados em medicina diriam
ser o bagaço do vinho roubado
em caves de abastados proprietários
que cristalizou na garganta do Adão.
Vingança destes
(ou lembrete divino)
Adão amanheceu com a garganta protuberante.
Jamais se leu tamanha versão dos factos.
Se não
Marx chamar-se-ia Adão.

13.8.15

Sangue quente

As veias em ebulição.
Fervem no contraste das facas depostas.
O sangue levita
em sucessivas ondas convulsivas.
Depois vem o suor
em cascadas descendo a pele ruborizada.
A contemplação das coisas
obnubilada pelas persianas que descem
sobre o dia.

O aroma das framboesas
repara os males possíveis.
Refresca o olhar que tergiversa:
enxagua o suor decadente
mapeia as veias frementes
até que o sangue se sirva em arrefecimento.

Mas pode ser efémero:
que a faca do tempo resolve
num ardil premeditado
desatar uma tempestade sem agenda.
Fica tudo à mercê do caos
e o sangue volta a ferver
por dentro das veias incendiadas
devolvendo o suor ao corpo num frémito.

É sabido
as tempestades são efémeras.
E por mais que sejam duradouros
os seus efeitos
o corpo não aguenta duradouramente
a combustão das veias
que é nutriente do sangue quente.

Cessa o suor.
Cessam os sobressaltos
que amesquinham o tempo presente.
Cessam os vagares
que aprisionam o tempo.
O céu desprende-se da cortina de sombras.
Resplandece
nas suas cores vivazes
lembrando que apenas importa o dia presente.
Resplandece
o céu admirável
perfumando o tempo
com  o aroma das framboesas.

Lá longe
o sangue quente já é só
matéria do reino das memórias.
É sabido
o efeito heurístico das tempestades.

11.8.15

Pele lavada

Já sabíamos
os mistérios da alvorada.
Éramos armadores dos seus segredos
enquanto a bruma subia por cima
da copa das árvores.
Já sabíamos
que as lágrimas furtivas
não se embebiam em fortuna.
Éramos lugar-tenentes da sobriedade
e nem nas folhas rasteiras víamos ardil.
Já sabíamos
a sapiência dos mastros.
Éramos forcados ambulantes nas hastes alheias
e no fim levávamos o troféu.

Já sabíamos
que o mel e o ouro são nossos.
Por mais que o mar cicie o contrário
as mãos colhem das algas a maresia inteira.

Já sabíamos
que os poros se enchiam de luar.
Éramos argonautas sedentos do neófito
em forma de coroa de diamantes.
Já sabíamos
que o suor se insinuava nos poros.
Éramos ambidestros na decantação da cicuta
enquanto a lua nova antecipava a luz inteira.
Já sabíamos
que os olhos se enchiam em troca.
Éramos timoneiros de todas as naus
em que olhos doirados fossem embarcadiços.

Já sabíamos
das rosas com espinhos abruptos
das uvas amarelecidas e gastas
dos rios desbragados, iracundos
dos espíritos macilentos
das arcadas desabitadas
(e daquelas habitadas por inumana gente)
do restolho das árvores
dos ocasos dedilhados na fronteira da lucidez.
Já sabíamos
tudo isto e outro tanto.
Éramos os diligentes penhores das palavras
enquanto cerzíamos a intensidade
por dentro de nós.

Já sabíamos
que só podíamos contar
com os frutos que nascem das nossas mãos.

10.8.15

A agulha e o palheiro

Fecha o livro
fecha a boca
(não tem serventia ficares boquiaberto).
Não adianta acenderes velas
nem as preces aos anjinhos.
Esquece as ajudas
de quem pudesse ser ajuda
atira as esperanças contra a rede apertada
deixa-te suar
que ao menos o suor evapora a ira.
Tens um palheiro sem fim
e uma agulha para encontrar.
Deitas fogo ao palheiro?
Não compensa o arresto
por não valiosa agulha.
Pode ser que antes
te cheguem os vapores da loucura.
E então
tomado pela demência
um cálculo sem cálculo te faça aterrar
no terreiro onde acama a agulha.
E depois
desidratado de tanto porfiar
perguntarás às perguntas
para que serve aquela agulha.

6.8.15

Salto no escuro

As portas blindadas intimidam.
Mandam-se relógios contra elas:
sem efeito.
No chão três gatos
debatem-se com os despojos
do restaurante mesmo ao lado.
Bulham por um pedaço de bife
diante da indiferença das pessoas.
As férreas portadas
inamovíveis
são como elefantes em hibernação.
A vontade não se demove
nem por ver que as portas não tergiversam
acossadas pela ventania do ciclone.
Engendra-se estratégia
para o esbulho das portas.
Passa pela descoberta da chave.
Ou
como fazem os ladrões
por forjar uma chave
que deixe à mostra
a penúria da aristocrática porta.

4.8.15

Maresia

Maresia ao entardecer.
o frescor do vento esbarra no rosto
e eu respiro este perfume
que sacia os sentidos.
A maresia encomenda os sonhos
já não desterrados em paisagem etérea
antes
transfigurados matéria viva.
Desta maresia nutriente
refrigério que aplaca vultos
estonteante avenida:
onde a maresia dá forma
ao trono dos príncipes eternos.

3.8.15

Apólice

Não é em cima do joelho
que se alçam as mordomias do tempo.
É em labor reiterado
com destreza incluída
e uma certa dose de inspiração.
Não é ao calhas
ao deus dará
nas mãos de um oxalá qualquer
em lugar da falta de brio madraça.
Esta é a apólice
a imperativa apólice.
Para à noite
os pesadelos
não serem com as veias em suor.

31.7.15

Monopólio

Uns seráficos tiranetes
disfarçados de almas bondosas
entretêm-se ao jogo do monopólio.
Fazem de conta que não;
convencem-nos que são generosos
espalhando virtudes outrora ausentes.
E (protestam uns visionários)
empenhando-nos em hábitos saloios
e numa dependência que nos aprisiona
a autonomia.
Cai-lhes a máscara
aos tiranetes do monopólio:
só querem a gula da abastança
enquanto nos viciamos nos seus ardis.
E cai-lhes a máscara
aos visionários do oráculo sapiente:
que não desdenhariam outra forma
de monopólio.

30.7.15

Limites

Não nos limitamos
aos limites que estreitam desafios.
Que contrariam o letargo.
Os limites
de sermos além do que julgamos.
Com a força que nos é devida
abrigamos os limites na lonjura.
Como se o céu deixasse de ser estorvo
ou impedimento mental:
no devir de que somos tutores
a força depositada nas nossas mãos
levanta o limite dos limites.
Temos a fronteira nessas mãos ricas.
Não nos atemorizamos com a empreitada.
As mãos apoderadas
adiam a distância entre nós e o céu.

28.7.15

Prova de fogo

As cinzas arrestadas da montanha
pousam a meus pés
na planície que deixou de ser dourada.
Corvos dançam entre as nuvens
entre os pedaços de azul
que as nuvens deixam à mostra.
A mãe passeia o bebé no carrinho
cruza-se com um cão vadio
que fareja o oráculo do nascituro.
O mar encolheu-se na maré baixa
dir-se-ia temer a multidão na praia.
Os carros passam sem cessar
vão e vêm ao deus-dará
empalidecendo o asfalto que é seu chão.
No apeadeiro
duas adolescentes grasnam ao telemóvel
num idioma quase ininteligível.
À porta do supermercado
a senhora velha deixa cinco euros
no chapéu indigente do mendigo.
Uma folha de jornal perdida,
levada pelo vento que se pôs,
É lustre para prosa entediante
do neófito escritor careca.

A noite que se anuncia faz acender os lampiões
e uma penumbra consome a senescência do dia.
As pessoas jantam nos restaurantes
os namorados beijam-se no banco do jardim
o velho acabrunhado sobe a avenida, impassível
os turistas de nariz no ar celebram o desconhecido
o motorista do autocarro boceja no fim da jornada
e as estrelas congeminam-se para uma noite mágica
a antevéspera de todas as proezas juntas
numa só página de um livro.
Como se estivesse para vir uma parada de músicos
e a música fundida fosse uma partitura aguada
com estrofes compostas em forma de nenúfar.

Na planície onde estou
as cinzas foram varridas
e a planície resgatou o vestido dourado.
O dia foi um triunfo inteiro.
Estou como um imperador em visita às hostes
apreciando a vastidão do território
e o respeito dos súbditos.
Naquela altura
em que as sombras se dissolvem
e deito a mão ao peito
só para dizer
em rima com o sentimento
como subi ao promontório
e extingui o fogo que tudo ameaçava consumir.

27.7.15

07:01

O despertador, estridente.
Persianas que se erguem sobre o dia.
O sono, ainda.
E torpor.
Devo vir de chapéu estendido
para o dia nascente?

Às vezes
antes ficasse na letargia
– penso,
ou julgo que penso,
tomado pela preguiça atónita.
A luz lá fora à minha espera
e o corpo madraço abraçado aos lençóis.
Não sei que luz está à minha espera.
O boletim meteorológico não é de fiar
(ontem adivinhava um dia solarengo).
Se calhar há andorinhas em viagem
ou gaivotas esfaimadas em pose de abutre.
Ou, se calhar,
deixasse eu de perorar em pensamentos
que há banho por tomar
e a lufa-lufa do escritório.

Talvez tenha sorte
daquela menina bonita se sentar ao meu lado
no elétrico para a baixa.
Ou da varina gorda rogar pragas vernáculas
a uns rapazotes estroinas que tropeçaram no cabaz.
Ou de ser vizinho de refeição daquela atriz de teatro
que deixa os homens loucos
só de cruzar as pernas.

Ou, apenas,
devo sair da cama porque é lá fora
que medra a vida.
Entretanto
07:19.
Faz-se tarde.
Entaramelado
resgato-me do torpor dos pensamentos.
Nós fomos feitos para trabalhar:
para engrossar o pecúlio dos abastados
e pedinchar salário de subsistência.
Pelo menos
é o que protestam as vozes incendiadas
pelos despojos das virtudes.

O ar torna-se denso dentro de casa
insuportavelmente pesado.
A demanda vem da rua.
Do bulício e da indiferença dos passeantes.
Vou-me à rua
na derrota das rarefações diárias.

Banho tomado.
07:56
a rua sente-me,
enfim.