29.11.15

Pontas soltas

Doze gramas de alma
e frases inteiras em francês
(sem erros de gramática).
O chilrear do pássaro laranja
e o papel de embrulho garrido
(sem cornucópias a adornar).
A batuta de prata do maestro
e o comboio que matraqueia os carris
(na cadência ritmada das carruagens).
O rímel da senhora pomposa
e os rissóis de marisco na montra da confeitaria
(sem estarem estragados).
Os vestidos que secam no estendal
e o polícia que multa o rapaz
(sem carantonha de poucos amigos).
O cidadão que paga impostos
e o cão que deposita os dejetos no passeio
(sem, todavia, ser vadio).
O candeeiro público com a luz fundida
e mendigo que dormita, indiferente
(sem o frio invernal,
que aquece os doze gramas de alma).

26.11.15

A lua inteira
quase do tamanho do mar
onde, 
em seu ocaso,
se deita depois do cansaço
da noite.

25.11.15

Lagosta suada

Um charuto gordo.
Um espirro sonoro.
A voz bem colocada.
A foice da justiça.
Os pés (enfim) calçados.
Sem chapéu, nem véu.
Tosse (também) bem colocada.
Pose grave, senatorial.
A verdade, incontestável.
Os olhos que não suam.
As mãos limpas.
A ausência de pecadilhos.
Um ror de virtudes.
Um exemplo a seguir.
O vinho francês, de reserva.
Os livros educacionais.
As frases contundentes.
O peixe gordo.
A verve iluminada.
Os categóricos imperativos.
A impossibilidade de divergência.
Porque a razão e a verdade são.
Os atilhos bem apertados.
O degredo ao potestativo contraditório.
As flores amarelas (que só podem ser amarelas).
A estrada sem curvas.
A leitura acrítica.
Os gurus do pensamento.
As estações do tempo no seu lugar.
O amigo dos pobres.
O fautor das equidades.
Dois dedos de conversa com a maré.
Os óculos desembaciados.
As botas acintosas.
A custódia da verdade (outra vez).
Um piano afinado.
As manhãs sopradas pelo vento lúcido.
As frases com sentido.
Os ardis empacotados.
As mãos largas.
E o dinheiro,
que há de vir de algures.
Mais uma horda bem-comportada.
Agradecida.
Penhorada.
Aos artífices das equidades todas:
exigível homenagem.
Sem dissidências admitidas.
Não sob pena de cárcere
(que seria mau para os pergaminhos).
Mas sob pena de dedo apontado.
(O que pode ser ainda pior.)

24.11.15

Julguei
que o miradouro
tirava o véu às coisas todas.
Não contei
que desde o promontório
só as via à distância.

20.11.15

Esboço anarquista

Desobediência sem freio
- dizia na cintilação da rebeldia
que quadrava com a idade febril. 
Não aceitamos amarras,
somos insubmissos
- orgulhava-se, num frémito anarquista
congraçando as pedras rústicas
onde as mãos se agasalhavam.
Não precisamos de quem nos ordene
- proclamava, em pose que invectivava
os revolucionários.
Não nos digam por onde devemos transitar
que ao mais leve aroma
a pastoreio de rebanho obediente
metemos o corpo pela rua oposta
- num esgar furibundo
enquanto denunciavam os batéis
em que navegam gurus com ambições. 

19.11.15

Estafeta

Distraidamente
olho para a embocadura do rio.
Gaivotas
barcos de pesca
as rochas da maré baixa
o limo nas rochas.
Pergunto às perguntas baças
se as águas lamacentas do rio
perfumam a neblina que levita sobre a manhã.
Às perguntas não vêm respostas devolvidas.
Não faz mal.
Fica a ousadia das interrogações,
vale mais que a penumbra das respostas ousadas
na indigência dos que do conhecimento
fazem de conta.

18.11.15

O elétrico cosmopolita

O elétrico estridente ao dobrar da curva
demove a calma da cidade.
Os dentes rangem
ao contacto com os carris que se dobram em curva,
balizando as ideias.
A esplanada só dista um punhado de metros
dali parece que o elétrico
vem fazer companhia no café.
Prometo:
logo à tarde vou embarcar no elétrico
para matar as saudades da infância
de quando apanhava o elétrico para a escola
e às vezes,
em estando cheio,
fazia o percurso clandestino
pendurado na parte de trás.
Os turistas ordeiros ocupam os bancos de madeira
falam uma cornucópia de idiomas.
E eu sinto
que sou estrangeiro na minha cidade.
Não vem mal ao mundo.
Que a cidade
seja uma constelação de gente diferente
para ver se cresce,
a cidade,
e se emancipa da altiva tacanhez.
Nem que seja preciso pedir favor ao elétrico
que sobe,
compassado,
a rua íngreme.

17.11.15

Sudário

As paredes pingam o suor sangrado
acometem-se sobre o pescoço
gritando palavras baças.
Não sei se as fotografias
prestam homenagem
aos rostos.
Não sei se as imagens distorcidas
as sombras erráticas do filme
atravessam a paisagem em furor.
Talvez seja apenas um sonho,
um mau sonho.
Talvez seja uma lembrança vã
um arpejo abafado sintetizado na voz de um
arcanjo;
talvez sejam as consoantes mudas
que adulteram o sentido das frases;
ou apenas o quarto escuro
obnubilando os sentidos,
emparedando a razão viva
(o que quer que isso seja).
Agigantam-se anjos verdes
contemplando o entardecer desde o miradouro
à medida que as crianças andam de bicicleta
e os progenitores leem as notícias atrasadas.
O santo Graal
uma mãe de santo
um curandeiro africano
ou um músico ardiloso:
já não sei ao certo
qual deles sussurrou ao ouvido
que a paleta de cores não desmaiou
e elas entram pelo olhar com a cintilação
que têm.
(Ou:
em não existindo
nenhuma daquelas entidades
se calhar apenas julguei que ouvi tais palavras.)
Porventura
a aventura é apenas ser.
Sem pejo das desmedidas que são os outros
ao que um filósofo ensinou serem o inferno.
As baias encastradas nos colarinhos desprendidos
ajustam o prumo do vento.
E nada
nada
descompõe a sinfonia que se desembainha
no que seria o estertor do caos;
ao invés,
renascem os sentidos
da poeira ácida deixada em restolho
pelos embustes em forma de curadores
de tudo.

16.11.15

Rap do momento político

O Cavaco está à rasca
o melhor ir à tasca
pedir aos velhos bebedolas
opinião sobre as coisas tolas.
O Costa quer poleiro
pediu apoio no galinheiro,
a Catarina aos pulos, excitada
e o Jerónimo exibe risada desbragada.
O Coelho perdeu o norte
e o Portas não sabe que é forte.
Meio povo quer a esquerda
e o outro meio acha-se em perda.
O Cavaco, coitado
aparece com ar alienado,
ele queria estar deitado
mais valia uma cena ter fumado.
Mal menor viria que não se exibisse
e o Cavaco a demissão pedisse.

13.11.15

Amanhã opaco

Soubesse depois
o que não sabia hoje
e o tempo seria um engodo.
Por isso
prefiro não saber
os alinhavos do amanhã
nem sequer perguntar,
a astrólogas e outros peritos,
pelas fraldas do futuro.
Prefiro esperar pelo seu sortilégio.
E isto
sabendo
(do pouco que me é dado a saber)
que somos matéria futura
cerzida na ininterrupta sequência
de pontos diários.
No dia em que o porvir
viesse revelar-se a meus pés
preferia a hibernação dos sentidos.
Para não saber o que não tem carestia
mais vale meter lustro
na luminosidade dos dias presentes.
Do porvir
apenas se sabe da sua incerteza.

12.11.15

Nocturnale

Primeiro
subia ao promontório mais perto
para desenhar a paisagem
com o lápis que era o meu dedo.
Deixava o rosto nas mãos do vento
enquanto os olhos do avesso
terçavam os ângulos ambíguos
das coisas em redor.
Desembrulhava os equívocos
à medida que as páginas mentais
cosiam as bainhas do tecido roto.
A espuma do rio enfeitava a paisagem.

Segundo
fui ao cais velho
sentir o peso da madeira gasta
e o perfume do musgo perene.
Perguntei ao velho marinheiro
se ainda havia sereias
e se eram deusas como contam os contos.
Mas o velho marinheiro ensurdecera.
Não tive outro remédio
se não adivinhar a resposta.
Combinei as águas salgadas e pútridas do cais
com as demandas trazidas pelas nuvens
alimentadas pelos ventos de norte.
Combinei as palavras urdidas
os rostos entristecidos
as mãos gastas dos marinheiros
como as do velho que não respondera.
Anoiteceu.

Terceiro
errei pelas ruas movimentadas da cidade
entre néones e mulheres ávidas
até desaguar num bar sombrio.
Descobri as palavras desfocadas
através do vinho barato.
Insultei os arrependimentos
que eram memória futura do passado baço.
Descobri os cambiantes da penumbra
e que a penumbra não é palavra singular.
Sem saber
fiquei a saber os segredos de um cozinheiro
que carpia mágoas ao balcão.
Com o olhar embaciado
resolvi meter as pernas ao frio da noite
restante.

Quarto
achei que ainda não era a hora
de me recolher ao quarto.
A cidade,
abandonada ao silêncio
e com pessoas raras nas ruas,
era apetecível.
Ignorei os avisos sobre meliantes noturnos
desconfiei que as desgraças avisam portas alheias
e continuei a andar sem destino
pelo que sobrava da noite
restante.
Dei conta que a noite amaciava
à medida que despontava a alvorada.
Não sabia onde estava o sono
e nem o cansaço apoquentava as pernas.
A revoada de pensamentos incessantes
tropeçava nos passos ávidos
nas ruas e avenidas desertas que,
não tardava,
começavam a ser afluentes de gente.
Não sei onde deixei o sono.
Não sei onde ficaram as respostas
às interrogações formuladas
nem tão pouco me recordo
se, sequer, houve respostas.

Quinto
o tempo fora implacável.
À noite branca
seguia-se um dia como os outros:
o trabalho no escritório
o chefe macambúzio
os colegas tacanhos
as notícias gastas
o outono que mais parecia verão decadente
os mendigos com olhar perdido no firmamento
as mulheres de saltos altos em passo lento
os restaurantes vazios
o condutor de autocarro com óculos de sol
os veios da carne sangrando
dos sobressaltos deitando gotas na carne viva
enquanto as dores eram vertidas
nos outros.

E sexto:
aprendi,
no conciliábulo desenhado a vermelho-sangue,
entre o fumo denso do tabaco
e o cheiro a hálito de vinho,
que os ossos são duros
para serem derrotados
pela decadência. 

11.11.15

Revolucionário farsante

O tempo é cedo
em que o povo
num justo arremedo
triunfa de novo.

O regente cansado
tem o reprovo
por crime lesado
e deixou de ser estorvo.

Exultante, o povo
traz do passado
a esperança em desbravo.

Nela reside o segredo
do pulsar coevo
e um regente em degredo.

10.11.15

Assim assim

Tintas, meias
e tintas, trocas.
Nem chove nem faz sol.
Antes pelo contrário.
E antes que seja noite
deita o borralho na lareira
nem que seja só para a veres
a crepitar.
Apanha o touro pelos cornos
mas quando ele estiver de costas.
Pesca à linha
o tubarão desdentado.
Promete pancada ao brutamontes
quando ele estiver de braço ao peito.
Diz ao chefe as boas que andas para contar
mas deixa-o virar as costas.
E nunca, por nunca
deixes de ser assim
meio assim assim,
que sempre é melhor
do que ser coisa nenhuma.
(Antes que sobre isto
também te assaltem as dúvidas).

9.11.15

Anjos furtivos

Os anjos são raros.
Escondem-se nas areias molhadas
num sono alquebrado.
Não raras vezes
fazem menção de vir à superfície:
querem espreitar o mundo lá fora.
Consta-se-lhes
que neles vêm a centelha de um tempo radioso,
para quem a penumbra é lugar pesado
como a areia que pesa sobre os anjos.
As pesadas areias molhadas
e o chumbo do sal em que estão imarscescidos
travam o desejo.
Os anjos continuam na demanda ingrata
escondidos como dantes.
E o mundo lá fora
transpira o suor que sempre teve.

4.11.15

Ouço o rumorejo do oceano:
as pálpebras deitam-se num sopor
e colheres brandas de especiarias
amotinam-se.

2.11.15

O remédio
é contar as copas
enquanto o vinho não azeda.

O lago dos sofismas

Os remos molhados
sulcam as águas paradas.
Notam-se vestígios de musgo
nas extremidades dos remos.
            Não é de ser obsoleto; é sinal de alma.
O pequeno barco
junta-se a uns nenúfares perdidos.
O arvoredo nas margens
sibila o vento fresco de norte.
            O vento que lava a alma por dentro.
Nas margens do lago
as crianças tomadas pela algazarra
nem desconfiam das sombras do mundo.
            Quantos de nós não gostaríamos
da infância imorredoira?
As tardes de domingo
volúveis e bucólicas
conseguem ser um ardil
do manto espesso que os olhos
não escondem nos dias restantes.

31.10.15

Dilema do prisioneiro

Nos pastos verdejantes antes dos montes
uma gaivota a destempo
e a vociferação das crianças imberbes.
Houvesse janelas desembainhas
e o olhar aquecido não tergiversava,
não adiava os anéis prometidos.
Um canto doce vem do entardecer
ajuramenta vozes penhoradas
que sussurram nos promontórios.
O mel colhido
sacia a sede de saber.
Os paramentos estão a preceito
e os cálices cerimoniosos prometem
o vinho maior.
A caminho das férteis searas
as flores garridas atapetaram os pés cansados
excluindo-lhes o cansaço.
Não consta que houvesse tempestades
nos mapas do tempo;
nem consta que as vontades
estivessem sitiadas por alvoradas atrasadas. 
Num módico de sensibilidade
assomaram as palavras certas,
enfim.
Só não sabia
que o consumo das almas,
em tais circunstâncias,
é o fogo derradeiro a ser visto
na tela diante dos pesares.

30.10.15

O tutor do tempo

Escolheu
a máscara de Sísifo
os óculos do astronauta
os sapatos verdes
os frutos amargos.
Traficou
ideias vetustas
portfólios empoeirados
desenhos em papel amarelo
cães infantes condenados à vadiagem.
Escolheu
incenso de flores campestres
beijos quentes de musas ao acaso
páginas de livros marcadas
medicamentos perenes para as dores.
Sabia
dos sonhos inúteis
das ambições estéreis
das alocuções exaltadas
da terra queimada.
Nem assim capitulou
às ondas tempestuosas
aos espinhos debaixo dos pés
aos punhais que queriam o sangue do peito
às noites temerárias da solidão.
Tudo se resumia
à máscara de Sísifo:
ou o cais feérico da lucidez.

28.10.15

Perspetiva

Não saberia dizer
se as vertigens eram barómetro do momento
pela batuta do desconforto
que nivela a escuridão teimosa do céu.
Não saberia dizer
se as vozes aladas que subiam no elevador
eram caução dos ventos formosos
que arrelvam a paisagem.
Não saberia dizer
se as virtudes aneladas às divindades
na perfeição de um quadro bucólico
não eram apenas um ardil.
Não saberia dizer
se a vocação dos escaninhos do pensamento
não fosse esquadrinhar o chão pelas entranhas.
Em sendo assim
tento
tento saber o que dizer
quando me demandam os embaraços.

27.10.15

Murmúrio

Um murmúrio mordia ao ouvido.
Não sabia se eram palavras mortiças
se eram estandartes esbracejando a utopia.
Um beijo furtado selou as hesitações
e do murmúrio rumorejou a alvorada macia.
Agora a manhã podia vir
a pele estava saciada.

26.10.15

Matéria outonal

Que não seja a arvore tomada pela
floresta.
Os estorninhos já não fazem ninhos
nas árvores
que vão mostrando um ocaso
outonal
e já não aquartelam folhas para os
abrigar.
Isso não significa que devemos maldizer
o outono:
alquebram-se os dias,
encurtados
numa promessa de renovação.
O outono não é desafio à existência.
Que seja do conhecimento geral
e da ciência em particular:
os estorninhos não se extinguiram
em outono
nenhum.

22.10.15

Procissão das ardósias

Não é do cálice embotado
nem do vinho azedo
ou das lágrimas defumadas.
Não é dos dos pólenes que voejam
nem da matéria canhestra
ou dos pátios lavados em poeira.
Não é pelos braços da química
nem pelas escadas descalças
ou pelas saias encardidas.
Não é o crucifixo sem cor
nem as preces ocultas
ou as divindades sem identidade.
Não é da noite interminável
nem da alvorada em sucessão
ou do rasto do dia em plantão.
Não é da febre polida
nem dos medicamentos indigentes
ou dos médicos-feiticeiros em pose sobranceira.
Não é do tempo indevido
nem do tempo ainda furtivo
ou das tágides metidas em vestes sumptuosas.
Não é de ontem
nem de agora
ou de um outrora qualquer.
Não vem afivelado pelos segredos
nem coberto por seguros impacientes
ou sequer planeta perfeito.

Não, não e não.
É tudo no seu contrário.

Correrias loucas atrás de nada;
músicas descompostas em pautas avariadas;
luzes cínicas atravessando o olhar;
livros empilhados sem saberem se são lidos;
flores em decomposição, mas belas;
divindades ausentes sem angústia;
mapas coesos de projetos ousados;
promessas assinadas a sangue fervente;
casas desenhadas com os dedos;
palavras desenhadas na mesa, com os dedos;
gentilidades obnóxias;
lucidez arrogante;
decadência em forma de tempo prometido;
bustos esmagados contra o ar soerguido;
preces imprecisas sem divindade;
mãos húmidas secas no suor quente;
lençóis gastos pelas alvoradas incessantes;
ardilosas palavras que enfeitam silêncios;
frutos doces à boca de cena;
cadeiras desorganizadas na sala vazia;
o entardecer com os olhos derretidos no mar;
a pele macia de quem tanto se quer;
as paredes lívidas que sufragam desejos;
o jantar opíparo preparado com parcimónia;
o sono inteiro sem intermitências;
o corpo gasto no cansaço, todavia jovem;
a memória avivada;
o fantástico bocejo de todos os outrora;
e o beijo na armadura do tempo que é hoje.

21.10.15

Por uma unha negra

Quase
como se todo o tempo fruísse
no nevoeiro ribeirinho
em manhã demorada.

As lentes embaciadas
conspiram,
a nitidez furtada pelos alvores matinais.
De que serve o arranjo das almas
quando as harpas desafinam
e os pássaros canoros
decaíram na rouquidão?

O estribo da paliçada
(onde os petizes esvoaçam algazarra pueril)
consome-se em sua fragilidade.
Daí por umas horas
– quando for ocaso
e o entardecer convocar a melancolia
– o fosso que trava o passo
ditará para a ata:
quase
quasemente:
pois tudo são projetos
que não chegam a desembainhar
resoluções.

20.10.15

Poema transviado

O poema congeminado:
estrofes de início
palavras incensadas no cavalete das intenções
e depois
uma convulsão de palavras imprevistas:
o poema perdendo-se de mão
ganhando diferentes demãos,
poema autónomo.
Volto ao início:
o poema não rima com as intenções
o seu cavalete, imprestável.
É quase sempre assim:
o poema ganha vida própria,
ou é do poeta
que não sabe da disciplina mental.

19.10.15

Feiticeira

O sal cinzento veste as árvores
no compósito outono sem memória.
As pessoas interrogam-se:
que origem tem o sal cinzento?
Será do mar mestiçado
das chuvas poluídas
dos peixes adoentados
de um navio à deriva
de um vento transatlântico?
O sal cinzento não tem sabor
(já o documentaram habitantes curiosos).

Por tentativa e erro
cientistas rasuraram as hipóteses
com ponto de interrogação no fim.
Estavam azoados
cientistas e gente comum
no engodo do sal cinzento
que não saliva sabor algum.

Uma feiticeira proscrita
berrou no meio da feira semanal
onde os oradores encontram pedestal:
são as lágrimas dos desafortunados,
entranham-se nas terras
e desaguam nos mares açambarcados.
Os ventos
devolvem-nas à copa das árvores
para que ninguém se esqueça
das mortificações suas e alheias.

E o povo
sem norte em que confiar
fez de conta que tinha sido um sussurro
de um pássaro migrante.
Já se habituara a olhar
sem o pasmo inaugural
para o sal cinzento.
Fazia-se constar serem cinzas,
restos tão inertes
como a decadência das ruínas.