11.3.16

Narciso (e não é flor)

Entretido com o furor da personalidade
despromoveu a chancela beatífica
que aconselhava aos outros.
Mas isso era nos outros
que na sua elevada estatura
tudo ganhava dimensão divina
(e os deuses vogam acima dos beatos,
ao que consta).
Pois ele há gente que se acha divindade:
em calhando a sorte toda
não podia o predicado ausentar-se dele.
Achando-se em tão alta consideração,
o espelho onde a sua pessoa estava vertida
a projetar retrato malsinado,
era como se o mundo circundasse de volta de si.
Não importava que os demais
dele tivessem águas anónimas
nem tinha relevância,
para o caso,
que as leis do universo desmentissem
o falaz espelho por que se conduzia.
Era o maestro das coisas todas
o zeloso arquiteto da harmonia
ícone de uma tribo urbana
patrono do pensamento credor de aplauso
diplomata nos conflitos assentados
sacerdote pagão que domava as almas
ouvido, lido e escutado
a-bun-dan-te-men-te.
Ou
era tudo isto
(e o mais que aprouvesse)
por dentro de si mesmo
à escala de uma grandeza acantonada
na imensa pequenez que calha a cada um.
Dizia,
de fonte segura
(que começava e terminava na sua pessoa):
haveriam de lhe erguer estátua.
Mas só depois de finado.
Nunca soube exceder
a exiguidade de si.

10.3.16

O inofensivo

Diz, rapaz
se tem teor esse cabaz
ou se detrás desse capataz
escondes o que não és capaz.

E diz lá, se tudo te apetece
numa vertigem que entontece
ou se teu dia nem sequer amanhece
e tu és promessa que esquece.

Diz, mas por favor,
se temos de te olhar com estupor
pois não amedronta teu clamor
nem adianta o imaginado fervor.

Diz, que as palavras não te embaciem,
deixa que os estorvos contaminem
as ideias loucas alumiem
e tu preso às luas que terminem.

9.3.16

Sem embargo

Largas as avenidas no meu olhar
destravam beijos escondidos.
Dantes
(quando interessavam os mapas
e a esquadria romba ocupava lugar)
não tinha noção das bainhas da alma.
Não é que hoje tenha;
ao menos,
noto as bissetrizes dos brancos cartazes
que desenganam delusões.
Ao menos,
interiorizei as limitações sem remédio.
Compenso com o vinho antigo
e os paladares que escoiceiam.
Não me chegam os vapores do vinho
nem o cais seguro que se oferece às palavras;
mas
ao menos
já sei não cair nas astúcias
nas auroras boreais que são espelhos vazios
nos lagos sem água onde nadam peixes furtivos
no lugar do deslumbramento que se me acena.

Sei que a escada alta e sem retrocesso
vive paredes-meias com o precipício.
Hoje
coabitando com a terra rija
trago a mim a pele dura que ladeia os embargos.

8.3.16

Sobreposição

As costas das mãos
geram seu centro gravitacional.
Viram-se
procuram a sede que há nelas
e delas pelas outras.
Deitam-se
no entrelaçar quente dos dedos.
Desenham seus desenhos
na tela imaginada diante dos olhos.
Desenham os desenhos
sucedâneos das palavras;
desenham palavras
na impureza das mãos dadas
que criam seu próprio amplexo.

Uma mão procura os poros ávidos
um descampado à procura de lhanura.
As mãos deitadas nas outras
ciciam segredos
sob a luz desmaiada do candeeiro.
Contam histórias sem atores
e dão alimento aos desejos sem freio
e metem-se na terra cheia de chuva
e trazem à tona um coração fulgurante.

Sobrepostas
as mãos
projetam um feixe de luz sobre a cidade.
Deixam no ar um perfume sem igual
enquanto ao pescoço vêm em afagos
em tirocínio do sono.

Sobrepostas
as mãos
árvores-mestras de um encanto
nos dois dedos de conversa qualquer,
olhando pelo fundo da garrafa
na insaciável levitação dos corpos.
Dos corpos que se aquecem
na fogueira das mãos enlaçadas.
E todos os dias
há matéria abundante abraçada pelas mãos
que se reensinam a ser esteios
das paredes caiadas com o suor.

Sobrepostas
as mãos
em síntese dos corpos
e em partição do sangue simultâneo.

As mãos lavadas nas lágrimas.
As mãos incansáveis.
As mãos ternurentas.
As mãos febris.
As mãos noturnas.
As mãos douradas.
As mãos impacientes.
As mãos nuas.
As mãos cheias.

7.3.16

Os palhaços

Parecia uma miragem:
as pessoas todas
em chapéus de palhaço.
Caminhando no fingimento
de quem se julga não palhaço.
Tamanha a rotina
que ninguém disfarçava o chapéu
e ninguém achava o dos outros
risível.
Inspeção mais demorada
desfazeria a miragem:
o fingimento
esteio da convivência
combina com os circenses chapéus.

4.3.16

O templo do tempo

Sentado em cima do tempo
folheio as páginas molhadas
sentidas na boca quente.
Não sei que belvederes possa usar
(não sei que belvederes deva usar):
se os que nunca visitei,
oxalá pudesse saber onde estão;
se os que tenho no bolso da memória,
no risco das repetidas evocações
gorarem a aspiração.
Talvez não sirva remoer o avoengo.
Sinto-me
sentado em cima do tempo
e, num lumaréu que passa diante dos olhos,
admito que sou tutor do tempo.
Do tempo que importa.
Em estando sentado em cima do tempo
desmerecem-se os belvederes
e a afonia do avoengo é caução esperada:
sentando em cima do tempo
tiro as medidas do vigente
– o tempo que sinto aquecer as mãos
o tempo fugaz que se emoldura no instante.
Pois todo o lume que incensa o corpo
é vertido por instantes.

3.3.16

Gastronomia (ou não)

Os molhos insaciáveis
emulsionam lados ocultos
em harmonia com o luar.
Atiram condimentos aos molhos
ilidem a pureza
substituída por finura.
E se o pão molha
no caldo opíparo
não se te enganem as veleidades,
que elas anestesiam o apetite.
Não servem molhos de chaves
ordenados por bastonários pantagruélicos
se molhas a sopa
a cada investida no lagar dos comensais.
Molhos destes não molham a chuva;
nem que chamem aprendizes aos molhos
comandados por molheiras de ensinamento.

2.3.16

Mãos desatadas

Deixa a candeia hastear-se
deixa o encantamento selar a janela
e o torpor dos corpos num incenso ímpar.

Deixa que o desejo seja imorredoiro
fonte centrípeta onde se embebe o olhar
e deixa soerguer a água clara da manhã.

Deixa sufragar os ímpetos
deixa-os fruir sem freio
deixa para trás bisturi que os congemine.

Deixa a alvorada ser a única juíza
deixa a mão estendida ao meu suor
e recolhe dele a seiva bastante.

Deixa acolher em teu seio
a fúria doce que ateia uma chama
amparando os braços quentes e insaciáveis.

Deixa
pelo meio das pétalas noturnas
colher os néctares estouvados.

Deixa as peias sobre as mãos
confere o sal da vontade sem açaime
e toma em ti o compêndio da volúpia.

Deixa ser a inteireza que te sei
e no regaço quente que é meu
faz-te soberana de um reino singular.

Pois que em deixando
deixar tudo isto e o demais
deixamos em nós mácula que é orgulho.


1.3.16

Os marinheiros sem bainhas

Sabiam ao que vinham
os esfaimamos marinheiros
acabados de desembarcar.
As roupas puídas
davam a mostrar um relento
ao cabo de uma temporada longa no mar.
Assim que puderam
embebedaram-se até caírem para o lado
comeram alarvemente sem olhar a gastos
tiraram a barriga de misérias nos lupanares
compraram todas as altercações por um nada
dormiram a destempo
bolçaram impertinência em cima das autoridades.
E nem assim
os nativos esboçaram contrariedade
nem os tomaram com non gratas pessoas.
Era como
se houvesse um módico de indulgência
elevado à máxima potência
(longe da impaciência entre eles).
Era como
se andar tanto tempo embarcadiço
fosse penitência tão severa
um quase degredo ditado aos proscritos;
e mesmo assim,
até pelos cânones da condescendência
improváveis em gente da mesma igualha,
ninguém sabia julgar
por que marinheiros destravados
marinheiros peritos em semear sobressaltos
eram tidos em tão boa conta.

29.2.16

A nice place

Clockwise.
Against all tides.
Under the tree
where shadows fade away.
At dawn
a shiver warms our hands.

As garras do perpétuo

Olha à tua volta:
vê os suores frios do medo
o rumor das crianças inocentes
os rostos seráficos das freiras
as vidas atabalhoadas à beira do precipício.
Olha à tua volta:
um pássaro azul exibe a fulgurância
os bancos do jardim impecavelmente pintados
as horas entoadas no sinédrio
os estragos da última intempérie.
Continua
olha nas fronteiras do teu olhar:
convoca as pedras milenares
devolve a alvura aos sorrisos desmaiados
empresta exuberância aos melancólicos
assassina loucos anjos da tibieza dos sentidos.
Na dúvida
atira o corpo para o lago de águas frias
onde sabes pertencer a um tempo
fora deste tempo.

26.2.16

Gigante

Repouso
sobre os ombros de um gigante.
contemplo as nuvens baças
da embocadura do miradouro.
Sei que há pássaros
no uso da rota
e que os pássaros são tutores
de segredos desejados.
Nos ombros de um gigante
e a paisagem ao longe,
pequena.
Assento os pés no chão pedregoso
ensaiando um assobio ao acaso.
As nuvens descem
rasantes à minha cabeça.
Não sei
que humores trazem as nuvens.
Não sei
que segredos resguardam os pássaros.
Não tarda nada
a noite que destrona o entardecer
dirá que nem humores nem segredos
têm sua vez.
Ainda que os ombros de um gigante
sejam meu trono.

25.2.16

Polícia dos costumes

Protestam palavras estrepitosas,
em arrazoado hermético
entaramelado com o vernáculo,
enquanto no adro há conversas.
Dir-se-ia ser uma conspiração,
que estes são dias
em que parece proibida a dissidência.
Não importa.
Palavras para a frente
de todas as cores e feitios
sobretudo as que cortam a eito
nos que patrulham costumes.
Palavras para a frente
a dissidir dos imperativos categóricos
que compõem o momento;
nem que não seja
só para a desarmonia
– para fruir ideias diferentes
sem arrebanhar uma razão contra outras,
que da última vez que ouvi falar
ainda havia liberdade de expressão.
Deixo-lhes desejos de bons sonhos.
E que os fígados se curem
da irrenunciável estultícia
de ultrajar os que deles se apartam.

24.2.16

Miragem

Do chão molhado do apeadeiro
um vulto esguio serpenteia
entre as poças de água.
Traz o nada a tiracolo
e um chapéu flamante.
Distraído
pisa uma poça de água.
Os respingos atingem um velho por perto.
Impassível
o velho continua a ler o jornal amarrotado.
Vejo o vulto cowboy a pedir desculpa
e o velho inerte.
A voz que soa no apeadeiro
avisando comboio em alta velocidade
traz-me de volta à terra.
Não chovera
o chão do apeadeiro não estava molhado
não havia poças de água
nem o vulto adejando um devaneio.
Só o velho e o jornal amarrotado
vieram a palco.
E eu
que, por mais que tente,
não passo de um arremedo de miragem.