1.7.16

Os cães e o veleiro

O veleiro adormeceu nas dunas
talvez
imagem de provecta idade
talvez
em sinal de falta de destreza
de marinheiros amadores
talvez
por ação de um mar adulterado.
O mastro caído no areal,
à mercê de uma matilha de cães
farejando o objeto estranho,
simula-se objeto inanimado.
A lídima inutilidade
à mercê da maresia sem misericórdia.
Os cães afastam-se do mastro
(assustados)
com um pulo para trás,
esboçam pose desconfiada.
Não
não é um objeto desconhecido
ou vestígio extraterrestre;
talvez o seja
(uma coisa ou a outra
ou as duas por junto)
para os cães que passeiam sua
vadiagem.
Para o que conta
o veleiro,
outrora miragem da ostentação,
sonho impossível dos remediados,
é tão vadio
como os vadios cães.
Prova-o a mija sobranceira
atestada no casco
por um dos da matilha.
O que prova
também
a inutilidade dos cemitérios.

30.6.16

#38

O dia com figura perfeita:
juntamos as mãos
(dantes vazias)
e da carne viva
tiramos a mais profícua semente.

Coroa sem espinhos 

Os poros da solidão
enfraquecem-se no rebordo do cálice,
enquanto um arrebatamento sobe
ao céu da boca.
Podem os raios do sol
planear um embuste dos sentidos,
o olhar anestesiado no torpor da luz.
Não interessa.
No planisfério reinventado,
onde apenas contam os contos
devolvidos pelo labirinto do pensamento,
águas frescamente verdes possuem o trono.
As folhas vicejantes de um ulmeiro,
resgatadas à raiz,
são o chão aveludado onde se entretecem
palavras que arredondam uma quimera.
As temíveis montanhas
onde a solidão tinha porto franco
perderam os pergaminhos de embaraço.
Uma mortalha em forma de coroa real
ascendeu ao corpo transido.
Não importava que invocassem
ardis ou ilusões ou fantasias.
O chão inteiro pertencia-me,
na paciente empreitada.
Juntei por todo os parcos haveres
e troquei-os
por um lago que se perdia de vista.
Um lago onde as águas lavadas
eram o propósito da transfiguração.

29.6.16

Matricial

Ao fundo
a árvore matricial.
Parada
na ausência de vento
(como se nem sequer houvesse ar).
Sem rejeição das folhas
que nos seus ramos caducas
não se transfiguraram.
Matricial,
no contrapeso da planície extensa.
Contra as vozes roucas
que proclamam feitos vorazes
que se batizam imperatrizes do nada
na planície árida.
A árvore matricial
sopeso dinâmico antes do precipício.
Para quando
em autofagia sem freio
preciso for uma báscula
onde se decifram
as luzes abertas e as sombras madraças.
As sombras madraças
afundo.

28.6.16

Do estirador, uma janela

Uma bagatela
três doses de chuva no alpendre
e os cães lá fora, tresloucados.
O ministro enfatuado
mais o deputado da oposição
contorcendo-se com intolerância.
O sol sem dó
limpando os vestígios da chuva extemporânea.
Uma liceal a mastigar pastilha elástica
em ofensa à estética.
As sumidades catedráticas
ostentam o garbo e o pundonor
à espera de genuflexão a condizer.
O escritor desespera
no fulgor da desinspiração
tomado pela apoplexia da hibernação.
Da sua toca
alcoviteiros avarentos
(na avareza do seu iletrismo)
farejam os dejetos da sociedade bem-posta.
No altar engalanado
o sacerdote persigna-se como prefácio
da confissão dos desvarios carnais.
O rio aborda o cais
pressente o musgo húmido, que não toca.
As mãos suadas beijam o trono arruinado
sem saberem
que de ruínas se trata.
Da janela do elétrico
ao passo do rio que desliza com vagar
a velha cansada mete memórias em dia.
O pescador nota
e anota em caderno de pensamentos avulsos.
O rio não se cansa
nem quando o entardecer insinua o repouso
e a noite madraça rompe com a intrepidez
dos sentidos.
Há horas
que o pardal espera por migalhas
sem saber que a esplanada está para obras.
Há horas
que o mendigo amputado espera
espera que alguém o venha visitar
com esmola para uma sopa diária.
Uma bagatela que seja
no soporífero dançar dos olhos amestrados
só para a caridade não ser vã
e ele não dormitar com o estômago encostado
às costas.
Oxalá os quadros do tempo
não fossem hinos realistas
que desassossegam o sono inteiro.
Oxalá não houvesse melancolia
e solidão
e guerras espúrias
e pobreza
e ingratidão
e desonestidade
e mentira
e dissimulação
e tudo o resto que não quadra
com a idílica paisagem de um mundo
(ideal).
Oxalá.
Mas não somos feitos de oxalás.
Não somos tutores da fina faiança
que entroniza o amanhã com ouro puro.
Bebemos o cálice com o que há
e damos a beber na inexpressiva maré
de onde aprouver fruto a recolher.

27.6.16

#37

Tenho-te
olhos entre as mãos
e bebo em lágrimas avulsas
o coalho de onde me soergo.

Periscópio

Os segredos mordem com dentadura de sal
em passando doidivanas crianças na praia.
Segue-se um hiato temperado
o caldo fervente com as letras amputadas.
De hoje para amanhã,
quando soluçarem as viúvas eternas
e os desamparados da rua recolherem víveres,
os segredos possam evocar grandezas fátuas
memórias abrilhantadas
com a inutilidade da história
e histriónicos penhores da dita
que nunca dela se esquecem
e juram que o oráculo dourado está na história.
Dando de barato as futilidades dos presunçosos
e os frutos sem polpa recolhidos das árvores
dê-se-lhes um periscópio com lente límpida;
pode ser que tirem partido do tempo que há
e parem de defumar o pretérito
em ladainhas insulsas.
O periscópio:
ferramenta que deslaça as traves dos segredos
em levitações perfunctórias.

24.6.16

#36

Dardos floridos
aterram no lago de crisálidas
onde as apostas se congeminam
num sortilégio avulso:
apostam muitos
que o lago é de nenúfares.

23.6.16

A formiga

Dizia a formiga
sobre a sua amiga:
ai de quem a castiga
sem que a ela persiga.

A formiga pedia
que o respeito que sentia
e as palavras que dizia
não fossem lugar que partia.
                 
Nesta fábula encantada
se deve rever a criançada
não vão apanhar uma bofetada
de uma lente desvairada.

Que na lição os petizes não demorem
pois quando grandes forem
tempo haverá para dissidirem
sem temor se nada ganharem.

Fábulas deste jaez
mesmo com esta intrepidez
serventia têm nenhuma vez
num tempo que destes heróis não fez.

Crianças: olhos abertos
fujam das prédicas de espertos
ladainhas assim pedem consertos
e vocês têm os sentidos cobertos.

Em modo de corolário
boicotem este bestiário
de falsos anjos de armário
não sejam deles dócil serventuário.

Não capitulem do vosso arrematar
das coisas que vierem a ditar
sem medo dos que estão a empatar
pois a vós cabe nobre função de contrastar.

Era isto poema sobre formiga
para as crianças uma ajuda cantiga
mas decaiu na dobra da barriga
e nem para os saldos respiga.

Esqueçam, pois, o poema
que do poeta não há quem trema
a não ser da sua toleima
e das mãos de quem se queima.

Petizes de agora e vindouros
apostai nos vossos próprios couros
e recolhei vossos ouros
até nos mais remotos ancoradouros.

Não deixem o orgulho do que são
mesmo no bosque malsão
que adultera a combinação
que vos ensinam como perfeição.

22.6.16

#35

A árvore deitada sobre o rio
bebe a água voraz
levada no leito estreito,
deixa um vestígio a vagar
até onde o rio apetecer.

21.6.16

Nó górdio

A exuberância do argumento
adjetivado com prodigalidade.
Desempoeira-se o aparato
mete-se o bisturi à procura dos esteios
da porosidade das paredes que dão cais
ao argumento
e vem às mãos um nó górdio:
agitado o argumento dentro da câmara côncava
(como se fosse um cocktail à procura de forma)
o argumento devolve-se na sua puerilidade
um conjunto de partes deslaçadas
uma promessa falhada
e apenas
um floreado exuberante
insubstanciado
sem perfume
um floreado que ao toque revela
a sua plástica condição.
Um argumento nem sempre é uma ideia.

20.6.16

#34

Tirou a máscara
e à mostra
ficou o musgo decadente
da ironia. 

19.6.16

Os compadres

Uma dança de cadeiras,
estando os compadres em vociferações
apontada para o centro do terreiro
onde já houve uma sinfonia de melros.
Uma comadre chega o cobertor
que já faz frio à noite.
Grilos escondidos cacarejam uma cantilena
não distraindo os compadres da função.
Dizem más línguas
que aos compadres de rija tez
não importam os candeeiros apontados
nem os calos que se fazem duros
pois calculam,
com um atrevimento ímpar,
que não lhes apraz medir os humores alheios.
Entretidos na dança das cadeiras,
bolçando a bílis purulenta
de quem subiu à velhaca condição,
traduzem o linguajar desatinado
enquanto terçam vulgatas ao desafio.

17.6.16

Cimento

Esboço um bocejo
enquanto dedilho as folhas brancas
sentadas no meu colo.
Sinto
no regaço indolente
um vitral que irradia um pesar
insubmisso.
Nos contrafortes do entardecer
enquanto as pessoas correm para casa
esgueiro-me ao lugar onde o mar
se aquieta nas molhadas areias.
Respiro, o mais fundo que sei.
Não dou nada de mim ao mar madraço
nem convoco o mais leve sinal de prece
no ideal destemor dos príncipes malfeitores
que contaminam o céu todo.
Retenho apenas a parte do horizonte
onde depressa o sol decaíra em seu desmaio
à espera dos estorninhos delgados
e da noite que já não fermenta o caos.
Penso no mar
penso na noite
penso na insubmissão sem freio
o criterioso moldar de um corpo
às ondas imperiais
quando o mar está a preceito.
Encontro os rudimentos
que me fazem levitar,
como se, de repente,
todos os poros em mim
todos os milímetros do meu corpo
todas as partículas da alma
todo o olhar não desperdiçado
esconjurassem os males
(os maiores e os outros)
que espreitam no dorso
de um cavalo sem olhos.
E, de repente,
vejo os meus dedos percorrendo
as teclas de um piano
magistralmente assentando na praia.
Vejo
como
sem tirocínio em música
sou lídimo intérprete de uma partitura
de instantânea composição minha.
Já não adormeço
só para emoldurar,
para memória futura,
a proeza destra.
Amanhã são os dias todos.
Os possíveis e os impossíveis.
Porque as impossibilidades
passaram a ter honras de possível.
E eu
com uma rosácea vivaz nas mãos
empresto alimento ao mundo inteiro.

16.6.16

Sonho ermo

Havia um sonho com textura
numa paisagem amarela,
entrava pela janela sem aviso.
Preenchia as dúvidas, o sonho:
era contraditório
às vezes, sombrio sem ser medonho
às vezes, propedêutico sem ser hesitante
às vezes, madraço sem cruzar os braços
outras vezes,
neófito sem curar da originalidade.
O sonho persistente
teimoso
vestindo o corpo de suor
emprestando agitação ao sono
uma pletora de opostos.
Afinal de contas
sonho em plena reprodução do tangível
outra pletora,
a das antinomias sem serem inversos.
E o sonho teimou e teimou
noites e noites sem conta
até que se confundiu com o tangível.

15.6.16

Barracuda

Uma barragem de fogo de artifício.
A barba rala e ruiva do pescador.
A fanfarra no ensaio, alheia à rua.
A bandeira vermelha avisa o mar impossível.
Um tiro de estopeta, ao longe.
Um homem de saias (deve ser escocês).
A árvore que desabrocha, temperando a luz.
Um livro deixado no banco do jardim.
O pescador da barba ruiva apanha o livro.
O livro tem imagens de pescas antigas.
O pescador folheia um livro, coisa rara.
Uma velha vestida de negro olha, desconfiada.
Um cão perdido erra pelas ruas, faminto.
O jornal traz na capa notícia jubilosa.
O tiranete continua na prisão, e está doente.
No banco transacionam-se cheques pré-datados.
O condutor de táxi ouve música ruidosa.
Uma noiva entusiasmada lança o bouquet.
O mar tempestuoso é testemunha.
O marinheiro da barba ruiva embarca.
Leva o livro na bagagem.
O comandante solta três foguetes.
Os outros marinheiros olham-no de través.
As flores deitadas pela noiva perdem-se no mar.
Vão agarradas ao casco do navio.
Foram comidas por uma barracuda.
Que se saiba, a barracuda não desposou.

14.6.16

Throw me a line

As bright as it might seem
from the pale blue light
casts away from the candle
as bright as the sun within
from the tenets of the dawn
torn as cattle under fainted guns
undecided about the gloves to wear
as protection sways in thin shades
and the battleground is served
for the major play unset.
Throw me a line.
Just a line
as modest as it might seem
for graveyards halt in no hope
if they write hope for my body.
I need a clear line
canvassing for fertile ground
as vivid as the tone of seeds ranging
from your hands.
As long as you throw me a line
punching against fearless priests
I will breathe from within
and flood the highest candle that feeds
the dazzling, ill-free, gifted sky
under our feet.
Because
the line that you threw me
jostled the sky from our hands.

13.6.16

A casa sem telhado

Segue-se ao cais amarelecido
onde vêm receber amparo
os navios fantasmas.
Do cais tem-se a vista da casa sem telhado
– a casa centrípeta que empresta o luar à cidade.
Dizem que tem habitantes.
Dizem que lá dentro
a chuva não molha o chão.
Dizem as lendas todas que a imaginação
concebe.
A casa sem telhado respira as heras
que trepam às paredes encardidas
enquanto a luz diurna se insinua
entre os seus cantos bolorentos.
Dizem:
que os fantasmas se apoderaram
da casa destelhada.
E que são eles que teimam
em deixar nua de telhas a casa moribunda.
No refluxo do vento
entre dois murmúrios de andorinhas assustadas
a casa sem telhado emproa-se
desde o seu lugar miradouro.
Dizem:
que ninguém tem coragem
para lhe consertar telhado
ou para a encomendar ao túmulo do entulho.
Um impasse,
é o que é.

9.6.16

Ilhas futuras

Reivindicação salubre:
tirar os olhos do pretérito imperfeito
quando os mares eram violeta
e o peixe residente vinha cardado
em veneno.
Um maestro a preceito
desengonçado, porém,
tira da batuta as pétalas perfumadas
que batizam as ilhas futuras.
Não há neófitos sacerdotes que deitem
óleos ungidos sobre o tapete do tempo;
não há vis apoderados do poder
que ditem frases para as atas vindouras
nem meãs personagens,
entretidas com frivolidades,
cantando árias desafinadas.
Há as ilhas futuras
divindades, talvez,
operando entre os arbustos secos
autênticas maresias metediças.
E então
com os olhos postos no vento comandante
as ilhas futuras destapam-se
entre o brilho de um sol intenso.
Mostrando-se espelhos cristalinos
onde os grãos da autenticidade
encontram sementeira.

8.6.16

#33

Provavelmente
as suturas abertas
voltam à rotunda das águas
onde se vendem cicatrizes
a preço de saldo.

7.6.16

Curto circuito

Atirar os dados
com o sortilégio de uma lua branca
e corromper o corpo com o sal da noite.
Alavancas atiladas por flores campestres
destravam os contrapesos alinhados;
o marfim entre os dedos
dita a riqueza dos dias destes
sem embaraços a diluir o firmamento
nem desabamentos em forma
de curto-circuitos.
Agarramos a madurez dos frutos
e somos passageiros do vento feiticeiro.

6.6.16

O fim do carnaval

O fim do carnaval
é a boémia embebida em contrição.
O fim do carnaval
(para o não boémio)
é esperar que as máscaras se tercem
na terça-feira final.

5.6.16

#32


A enseada
por onde o mundo inteiro
se inunda
e a janela se dispõe
a navios nunca dantes vistos.

3.6.16

Do monte mais alto

Morde os cantos da terra
a simetria da lua ferrada
enquanto trepas ao trono desembaraçado
e emudeces a pele macilenta
desde o templo das sombras.
Foge célere dos embaciamentos atapetados
dos curandeiros das almas
dos mastins desençaimados que ostentam
arrogância
(julgando-a saber)
das capas densas escondendo
os vultos aguados.
E espera.
Espera sem dar o flanco à impaciência.
No dealbar do tempo
destronas a podridão dos outros,
a podridão em que insistem medrar.