5.12.16

Defenestração

Intuía o sindicar dos passos atravessados
sem demanda minha
ou sequer postulados simétricos,
o manto da legitimidade.
Devia pétalas infundadas ao devir
(talvez)
como se o anoitecer viesse prostrado
entre limbos nas mãos de demónios.
Havia pontes abertas
janelas sem vidros
um céu sem nuvens
o mar surpreendentemente estacionário;
e, todavia,
na representação dos coiotes diligentes
formosas molduras dos valores
(sem que ninguém perguntasse pelos valores)
rumavam às fotografias órfãs.
De nada valeria a sindicância.
Não havia nada para sindicar.
(Por muitas as desencomendas
destinadas aos vulcões fumegantes
onde consumições variadas teriam
defenestração.)

4.12.16

#103

Fecho os olhos:
anéis do avesso em dedos frágeis
e o musgo deitado no cais antigo.

Às escondidas

Às escondidas
na sombra da lua
à escolha da maré. 
No silêncio
avesso do dia
no sopesar das palavras. 
Na penumbra
tirando à sorte
os acasos escolhidos.
Na incerteza
olhos raiados de mar
à bravura de uma decisão.
Às escuras
sem centelha por perto
adivinhando as paredes claras.

3.12.16

#102

Na haste da noite sozinha
um braço atrevido
dança uma rua sem gente. 

2.12.16

Dezembro

Haja dezembro
e todos os provérbios inventados
enquanto a chuva molha as ruas
e pessoas pesarosas
gemem pelo estio distante.

Haja dezembro
na sua baça luz
no rogo das crianças pelo natal demorado
nas castanhas que boicotam o frio
nos frutos secos
(um estalido a preceito na boca sedenta).

Haja dezembro
exílios dentro de cobertores
medo das ruas desalinhadas pela tempestade
pessoas sem réditos que rapam os fundilhos
para estarem à altura do Natal.

Haja dezembro
e a espera por um janeiro
mostruário de um sol generoso.

30.11.16

#101

Tudo o que eu sei
(o universo do meu saber)
cabe num imenso lago vazio. 

29.11.16

Nortada

Persiga-me o vento
se não souber dizer as palavras
que molham a boca nas casas doces.

Procure-me o vento
se não deixar vir às mãos
o soldo alto fermentado nos castelos.

Assalte-me o vento
se não arranjar método ciente
entre as flores deixadas na jarra partida.

Beije-me o vento
se não encontrar os sedimentos álgidos
que temperam o fogo da terra.

Agrida-me o vento
se insistir na loucura e perder de mão
os véus esbranquiçados que tudo clareiam.

Elogie-me o vento
se souber ser algoz da destemperança
trazendo da maré os seixos sortilégio.

Componha-me o vento
poemas malditos em incapaz distopia
desfazendo a demência inteira.

Desarranje-me o vento
ideias que adulteram a simplicidade
se não for tutor da alvorada desembaciada.

Apanhe-me o vento
entre suas mãos protetoras
e leve-me por entre as nuvens prometidas.

#100

Estulta desarte
a de matar tempo
se na dobra do tempo
o tempo emagrece num ocaso. 

28.11.16

#99

Era curador das flores do jardim
cuidava-as como se suas filhas fossem.
Descobriu-se (depois) a falácia do jardineiro:
o dom da paternidade dele se ausentara.

Não, dantes

Dantes
quando as mãos tenras
se alisavam no poço negro
tudo tinha a espessa candura
dos imprudentes.
Aprendia
ao remar no sentido dos desacertos
sem supor que as coisas se pensavam.

Dantes
quando os fumos se vestiam de cores
e as árvores pareciam não ter outono
a pele imberbe era destravão da inocência.
Imaginava amanhãs sem mácula
amanhãs que começassem por tardes
sem enxovais nem baixelas
sem o tirocínio do erro
sem as nuvens embaciando os palcos.
Amanhas despidos por dentro
como se desse tempo por acontecer
guardasse um penhor sentido.

Dantes
guardava a certeza
de que um agora seria dissidência.
Ocupava os lençóis
com sonhos de que teria sonhos
com os dantes de louvor.

Medro num agora complacente
onde as paragens do tempo
retorcem as vírgulas deixadas em legado.
Agora
tenho as mãos quentes
o vinho excelso
arroteio teses respeitáveis
admiro as cortinas onde se entretecem
os entardeceres que insinuam a demora.

Agora
certifico que desimportam os dantes
assim desenhados
assim desdenhados.
Agora
devolvi os dantes à arqueologia da indiferença.
Julgo que é prova de vida
no entardecer que se agiganta 
na garganta do tempo.

Ainda estou por saber
se me empenho nos agoras que descem às mãos
ou se apenas me inclino sobre o dorso deitado
só para não ter de ver o mar que aí vem.
Só para desaproveitar
os dantes que pudessem ser lições.

27.11.16

Fornalha

A voz vestida de fogo
sussurra
indagando o desejo sem peias.
A voz vertida no fogo
proclama as estrofes incendiadas
cantando as músicas devolvidas
no estirador das almas.
A voz mestiçada
atira-se ao vento agreste
consegue-o domar.
A voz desassoreada
conflui no corpo
toma conta do sangue fervente
descobrindo a chave do horizonte.

25.11.16

#98

O logro
não é a pirâmide vazia
e as suas promessas de folia;
o logro são os depositantes
de tamanha fé estulta. 

Sacrilégio

O sol tardio endossa aos campos
as mangas arregaçadas do outono,
à espera das estrelas cadentes
de um céu cheio
e da chuva benigna. 
O camponês não tem conta das horas
nem sabe estimar o tamanho da sementeira
enquanto as flores medram na tibieza. 
Pedem água ao outono,
os camponeses,
para não se empenharem
nos vícios do estio prometido. 
Alguns medram na ociosidade de vícios outros,
inconfessáveis
sob a vergasta dos costumes bons. 
Tiram réditos da precaução das colheitas,
gastam nas licenciosidades
protestadas por damas de bom nome. 
O sacerdote esquece-se da moral na homilia
e devota-se ao olvido ao sair do confessionário. 
Dizem
as damas de bom nome
que o lugar está condenado à perdição. 
Desconfiam da (dizem: desleal) concorrência
e tecem-se em prantos
pela omissão dos prazeres desviados
(tirando algumas disfarçando contentamento
pela ausência dos consortes 
no império dos deveres inerentes à condição). 
Quando derem um salto no tempo
hão de tirar o véu à má colheita. 
A água pedida ao outono
retesada nos quartos sórdidos das peritas
e dos réditos transviados
que ditaram a falência da empreitada. 
Foi pena. 
O outono fez-se a preceito. 
As águas das chuvas
tiveram a mesma perdição. 

24.11.16

(Des)conhecimento

Não quero saber
das coisas que beijam o véu da certeza
das coisas que se não importunam
com interrogações incómodas
das coisas alindadas no caule da luz clara
das coisas fermentadas
em ciência por falta de comparência.

Não quero saber
das coisas que de si se sabem
na soberba enjoativa dos categóricos
na velada incandescência da razão imperativa
descontinuando a desrazão heurística.

Não quero saber
das coisas perfeitas e pútridas
das coisas belas e castradas
das coisas entronizadas sem chão firme.

Não quero transitar
no mapa seguro das coisas seguras
no mapa sem rugas na negação da idade.

Não quero saber
de coisas que não querem saber
das coisas que sobre elas
arqueiam o mar de indecisões.  

#97

Prometiam o céu na terra.
Não se convenceu.
Ninguém ainda prometera
a terra no céu.

23.11.16

Alfabeto

A gravata apertada
abre a janela de um bojador velho
adiantando uns trocos para o futuro.
Bebem estorninhos cansados
boas águas vertidas da chuva
batendo as asas entorpecidas.
Chamam pela folhagem tardia
ciosos da chuva à espera
ciumentos de um inverno ausente.
Ditosos os bancos de jardim cansados
descendo na alma enfurecida
dádivas inesperadas.
Enquanto as paredes se consomem
esperando pelo lamento insaciável
entardecem as luzes coagidas pelos olhos.
Fermentam-se as avenidas corrompidas
fartas de palavras inoportunas
festejando os beijos oferecidos.
Gastam o zelo todo no umbral da noite
gota a gota
gabando proezas deitadas em braços alheios.
Horas sem sono
heras secas
homens exauridos sem fiador nem herdeiros.
Ilhas intempestivas na embocadura do rio
irrompem do nevoeiro poltrão
irradiam sorrisos escondidos nos contratempos.
Jogam-se dados ao acaso
jurando as profecias sem estatuto
junto com as lombadas frias de livros mudos.
Lembram-se os amantes dos relógios
lançando os lençóis desatados em vulcões
lentamente, pelas alvoradas despovoadas.
Marejados os olhos soturnos
mentindo às mentiras mordazes
meãs personagens que desaprova o palco quente.
Ninguém escolhe uma sepultura
nas dobras do tempo que se adia
navegando águas sedosas em caudais aplanados.
Oxalá sejam os senhores altivos
orquestradores de fatiotas ilustres
orvalho seco que refresca as folhas caducas.
Porque já não fazem sentido as perguntas
perdidas entre as sombras ausentes
pergaminhos em garrafas perdidas no mar.
Querem dar as mãos, num desafio aos perdedores,
quando as asas de um abutre se depõem no céu
quimera da solidão esventrada.
Rezam as viúvas contra os altares despedaçados
ratificando as preces vertidas nos salmos
rasurando as trevas dos descrentes.
Sozinhos estes, contra a sua incredulidade
soerguem os corpos em hedonismo reincidente
sorvendo a seiva toda do tempo farsante.
Tudo se compõe na pauta desalinhada
traduzindo as palavras inócuas
trazendo das trevas o escantilhão desejado.
Ulteriores movimentos da alma confirmam
ufanas almas em perdição
ultimando os lacres do púlpito inviável.
Vergado pelo ocaso das aves viajantes
validam-se as portas ruinosas da barbárie
viradas contra a aurora escura.
Xaile fino cobre os corpos exaustos
xadrez jogado contra os costumes alindados
xistoso leito onde se deitam as feridas almas.
Zelotes abraçados a metáforas
zurzem os desapoderados dos deuses
zangados com o despautério dos indigentes.

#96

Amanheço
antes que a manhã prove a luz
e desço a luz minha
sobre as sombras da manhã.

22.11.16

#95

De pé:
do chão não se apanhem
as folhas vetustas. 

Negação

Lavou as mãos.
No detergente mais forte. 
Não queria saber dos restos
pegados em forma de peugada. 
Não queria que descobrissem. 
Era preferível endossar a culpa. 

(Para desconhecidos,
como dizem os códigos das leis.)

Se não chegasse o detergente
métodos mais contundentes:
diluente 
tinta da China
(caso o diluente ficasse aquém)
reparação da memória,
em última instância. 

Não seriam encontrados vestígios. 

Na pior das hipóteses
renunciar à memória
numa mentira ao tempo
que não faria dano maior
(convenceu-se). 

As mentiras só mordem na perna
quando à perna se aviva a memória. 

21.11.16

#94

Na medida do possível
ou 
à medida dos possíveis?
À falta de fita métrica
jurou as costuras do impossível. 

Lágrimas lavadas 

Copo cheio de lágrimas
sem impurezas outras
sem vergonha de virem a púlpito. 
Copo centrípeto
lágrimas larvares
grandeza sem corrupção
o peito inteiro 
onde cabe toda a generosidade
onde cabem 
as raízes do mundo sem estorvos. 
Copo vazado pelos olhos tutores
enxugadas as lágrimas com lenço costurado
em nome que te pertence. 
Copo arrumado
na ciência pura dos braços regados
com a água volumosa 
evaporada no fervor de um olhar. 
Tal como as lágrimas todas,
lavadas. 

20.11.16

Quintessência

Sempre considerei o suor.
Desviei das nuvens a bala perdida
(não fosse atingir o sol,
para tristeza acelerada de uma multidão).
Agarrei com os olhos o creme do bolo
(não fosse perder as bainhas da dieta).
Alcancei com brevidade
as ilhargas dos homens poderosos
(ou convencidamente poderosos)
e continuei a ver o que dantes via.
Escutei demoradamente
as músicas aconselhadas
(à espera de pedagógica iluminação).
Estudei metodicamente os filósofos
(à espera de um sentido à frente dos olhos).
Andei de braço dado
com a carestia dos sentidos
(talvez fosse ilusão de ótica).
Armei o coldre
não fosse um contumaz demónio
assaltar-me as ideias
(se é que elas tinham serventia).
Dormitei em pé
enquanto esperava o grasnar de um ganso
(sem saber por que esperava).
Vivi às diferentes velocidades da vida
(porque não sabia a velocidade certa).
Fui a lugares muitos em demandas várias
nómada sem quartel
(não dando crédito ao que queriam ensinar).
No suor embebido das coisas
no suor vertido em palavras desvairadas
escolhendo a vidraça da diferença
não empunhando bandeiras
nem empenhando as mãos
aos muito beatos profetas da verdade
(do paradeiro da verdade nunca quis saber).
O fumo das chaminés junta-se ao nevoeiro
tornando a luz baça centelha aguada,
por onde o crepúsculo se sufraga.

19.11.16

Prantos

O pranto do rapaz
(do rapaz que parece sem rumo)
percorre as repletas ruas da cidade.
Não as emudece.
O rapaz só chora, sem fala.
Não se sabem os seus queixumes.
Não se sabe como se chama.
Não se sabe de onde provém tanta tristeza.
Um pranto sem fim
à medida que arrasta as pernas frágeis
e limpa as lágrimas aos andrajos seus.
As ruas, repletas,
indiferentes como dantes.
Não se tomam por dores
de prantos alheios.
Chegam os seus próprios prantos.

18.11.16

Cavalo versus rio

O rapaz cavalga no dorso do cavalo
sem medo do rio caudaloso que lhes é paralelo.
A correria
(dir-se-ia)
é contra o rio:
o rapaz a repousa o olhar nas águas paralelas.
Se alguém perguntasse ao rapaz
que serventia era a de tamanha correria
– se houvesse mister de não interromper
a cavalgada desenfreada
e o rosto iracundo do rapaz
– quem sabe
o rapaz retorquiria:
a loucura de um crepúsculo sem aviso
era a corda toda às patas musculadas do animal.
O rapaz
desferindo golpes frenéticos com as esporas
imprimia no cavalo a fúria sua
e o cavalo,
contagiado,
transpirando baba pela boca entreaberta
disparando o coração contra as costelas
de olhos vidrados no concorrente caudal do rio,
aplacava a ira boçal do rapaz.

17.11.16

#93

Deste quarto quente
mãos ungidas pelo mel
e a carne arrebatada
deitando pétalas no desejo.

Online

O sangue nítido
escola antiga.
Movidas as pernas
pesar inquisitorial.
Achas da fogueira
carne tórrida.
As catedrais despidas
preces anátemas.
Músicas sem espelho
coiotes famintos.
Tiara dos imperadores
mãos nuas.
Perfume com cinzas
amanhã adiado.
A praça embalsamada
gelo gentio.
Manjar em ouro
amesendação sonhada.
O sangue fervente
lições intemporais.

16.11.16

#92

Superlativo escarlate
das manhas circenses,
oh, ardil vetusto
e sem arrumação. 

Mãos inteiras

Agarro pelas mãos
o templo onde se ampara a tempestade.
Convido os mestres das nuvens
à contemplação do sol deitado no mar.
Quero que as gotas de chuva cheguem vigorosas
as aves se escondam em seus refúgios
os tiranetes se amedrontem na curva ardilosa
a multidão se silencie.

Agarro o silêncio com os dentes
como se estivesse consumido pela fome.

Mexo no silêncio por dentro
e escuto na antecâmara dos fogos
um esquilo zunindo poemas amestrados.

Trago,
agora,
as mãos incensadas.

Dizem-me
que um fogo fátuo se verteu na colina
e o fumo em espiral ensina os oráculos.
Não me importo.
Tenho as mãos purificadas
e as fontes todas são meu manancial.

Agarro com as mãos os navios longínquos
as traves onde fundeiam os corpos livres
todas as palavras quiméricas
(que não dissolvem o silêncio);
as palavras
que devolvem uma pulsão sem freio
e deixam os olhos marejados.

Guardo as mãos
que muito delas preciso.

15.11.16

Telhado seco

Revejo os telhados escorregadios
onde tive império.
Não tenho ninguém à ilharga,
detenho-me nas fronteiras do tempo.
A apreciar o tempo
a destoar da luz intensa que desce da lua.

Fecho os olhos.
Do corpo sinto uma centelha febril
correndo veias fora.
Ressinto as pálpebras tingidas
no suor antigo que coloriu as lágrimas,
as suadas lágrimas evaporadas
que coroaram os pesares em talhadas.
Nos telhados de antanho
onde já não há rumores transidos
onde já não chega a chuva timorata
onde os pés assentam como esteios fundos.

Nos telhados polidos
os olhos regressam das pálpebras madraças
em volteios sibilinos
aquartelam sonos perdidos em marés noturnas
enquanto nos antípodas ninguém quer um sono.
Não hei de ser tutor dos telhados dantes meus:
os contratempos soados nas pautas rasgadas
assobiam ao ouvido
não deixam a não ser que os pés sejam esteios
– fundos.
No mais fundo de tudo,
tanto que mãos nenhumas conseguem escavar,
espreitam telhados invertidos
gotas de chuva guardadas no bolso
um pastor sem gado que dorme sem reparo
o meu não-sono pelo tempo fora.

Dantes
quando os telhados eram império sobranceiro
perguntava às divindades de atalaia:

que é feito do meu fado?
Que é feito
se não vos tenho, divindades,
por tangíveis?

O corpo repousa nas margens do lago sereno
desarmadilha-se
pacienta-se.
À lembrança
vem a vertigem dos telhados alcantilados
o despautério por onde me esbanjava
à espera que um lago acobreado
viesse em memória com a lua ímpar.

Dos telhados
promontórios adestrados com o ouro das mãos.
Respiro agora
as ondas gastas que colhem o horizonte,
sem cautelas imprecisas
sem o adorno da lucidez imprestável.
Só os telhados e eu,
perguntando
às férteis fautoras das coisas em redor
o que é feito das divindades
se delas não houve saber.

#91

O paradoxo da escolha
é não saber
coser as bainhas da decisão.