17.4.17

Evolução

Dantes
era uma fotografia
de mim mesmo.
Dantes
era
apenas
fotografia
de mim mesmo.

As voltas do mundo
o tempo em sua madurez mansa
as veias mitigadas
o pensamento aclarado
os contrapesos da alma
o horizonte despido de urdumes
trouxeram-me
da fotografia ao lugar de substância
a gente não apenas fotografia
a gente-gente
pleno em carne e osso.

Agora
entreolho a fotografia de outrora.
Agora
olho de frente
sem peias
sem medo de ter medo
a fotografia de outrora:
afinal
é possível vermo-nos de fora para dentro
na lenta maquinação do tempo furacão.
Do tempo
que transfigurou a fotografia
em pose sanguínea.

16.4.17

A soma das partes

Maior
do que a soma de todas as partes
a metamorfose das paredes
amparadas nas mãos túrgidas
desembolsa da areia as joias do mar.

Maior
do que a soma de todas as partes
as mãos simbiose remexem
entre o restolho do outono
os ramos fortes para amparar
as paredes decadentes.

Maior
do que a soma de todas as partes
o ocaso temperado
o chão de mar desemparedado
as tesouras em perequação
gravatas impecavelmente apessoadas
(sem todavia pescoços)
contratos sem papel nem assinaturas
as árvores frondosas à espera da primavera.

Maior
do que a soma de todas as partes
o poema tangido a quatro mãos.
Em uníssono.

15.4.17

Baliza

Cifrado o azimute na seara
de onde o mel se atirava aos viajantes
sabiam-se os olhos aturados de sombra
sob as asas de uma ave esguia.
E depois
nos degraus vazios
a escada íngreme bebia o convite
e os parentes lidavam com a safra audaz.
Embebidas as lágrimas no cálice fino
sobravam as pétalas escassas
em forma de ouro:
o depósito sagaz
da grandeza estiolada
quando tudo se desunia
dos esteios frágeis.

14.4.17

A idílica luta de classes

No cuidado artesanato dos haveres
trinta peões prostrados
valsam no precipício.
Juntam os dedos em cuidada sinfonia
com prevalência do silêncio,
no desânimo dos apequenados
em resignação religiosa.
           
(Foram educados
      que o oiro rima com silêncio.)

Os suseranos
poltrões em exercício de regalias
comicham sentados
nos diamantes das sinecuras.
As conchas secas
onde nem as aranhas pútridas acamam
são o leito dos mandantes.

      (Os peões já sabem
      que a equidade
 vem no dorso da moda.)

Doidivanas
os dissidentes de tudo
emparedados
entre o conforto da autoridade
e a reverência dos descamisados.
Na doce loucura da dissidência
escolhem os vitupérios a preceito
e esfregam-se no perfume desatravessado.

       (Não se enforcam no desconforto
  da posteridade aprovisionada
  como os peões
  quando açambarcam o poder.)

13.4.17

O beijo

Um beijo
salga a pele dourada
e eu
num enlevo sem meneio
reponho em dobro
nos lábios assim humedecidos.

Se o beijo falasse
teria cores que as palavras não têm.

O beijo
que abraça
os corpos em combustão
fósforo em reviravoltas constantes
no dever inalienável
do beijo sem pudor.

Na alvorada-beijo
pelas costuras do beijo,
o beijo-espada que emulsiona a alma
o beijo pulcro,
até se deslaçarem as fronteiras
do beijo-noite.

#182

Só se a medula vicejar
e no restolho da alma
as floreiras forem perpétuas. 

12.4.17

Diacrónico

A valsa dos chapéus violetas
brandida em banho-maria
à espera da alvorada macilenta
à espera dos dados sem sortilégio
numa rua sem eco possível.

Um sultão marreco
em aproximação ao confessionário
passos vagarosos e olhar desconfiado
à espera do sacerdote combinado
em juízo dos arrependimentos
dos esquecimentos
do que deveriam ser esquecimentos.

A cobertura da catedral
tinge-se dos raios difusos
de um sol partido.
Dizem que as intenções se entronizam
no congeminar do belo
que delas se extrai.

E que mais nada importa
– dizem, também.

11.4.17

#181

Não te lances
estrénuo
ao vértice do farol sentinela
que das lágrimas não trazes
palavras. 

Bricks and mortar

Aos cunhos sem desafio
aos deuses esquecidos
aos mendigos felizes
aos próceres da tirania
aos parâmetros da toleima
aos varões bizantinos
aos cozinheiros sem sal
aos tementes de agnosias
aos lídimos arautos da decência
(ó coisa mais linda!)
aos professores do desamor
aos diligentes cavaleiros da temperança
aos algozes da mentira
aos contrafeitos penhores da idade
aos relógios sem serventia
aos meninos intemporais
aos tiranos sem trono
aos tronos emagrecidos
aos confecionadores de dietas estultas
aos estroinas sem memória
aos zangões sem colmeia
aos padrinhos com espelho aumentado
aos sindicalistas exaltados
aos madraços sem mangas
aos leiteiros do leite azedo:
lavem as mãos gastas
no manancial rico da serra longe.

10.4.17

Incorrigível

No paço das rebeldias
ilustres desconhecidos fizeram tirocínio
uns
por dever de alinhamento 
no lado lunar da monotonia
outros
por caírem numa inadimplente distração.
As paredes ásperas
são um descontínuo no venal convento 
onde uns pernoitaram a eito
e é lugar habitual para os estroinas
sem remédio. 
Nas traves da noite malsã
o paço arregimenta 
prazeres vários
merendas sagradas no púlpito
onde deuses sobejam
segredos que afinal todos sabem
(continuando, por teimosia, a ser segredos)
uma centelha singular
que dissolve trevas à sua passagem
um contínuo de insubmissão que quadra 
com o orgulho curricular. 
Persistem as neblinas que escondem a manhã
em levas de barcos sem rosto
que transfiguram os mares. 
Amanhã
quando houver outroras para assinalar,
e os corpos cansados 
se deixarem ficar na espreguiçadeira do porvir 
dantes ajuramentado, 
a majestosa cobrança virá a pleito:
quantos dos quartos 
emparedados com a rebeldia insana
trouxeram um propósito anelado?
Porventura
apenas um esboço de interrogação
muito certamente destinada a réplica ausente
(e sê-lo-á não por economia de palavras).
Pois os segredos
mesmo quando são um ardil na sua perfeita forma
são sempre segredos. 

9.4.17

#180

Mnemónica:
farinha maisena
argamassa
chefe de obras;
não:
gastronomia.

8.4.17

Bolsa de valores

Fechou a porta por fora
a chave esquecida por dentro.
Não se apalavrou ao medo.
Nos contrafortes dos dilemas
há uma chave escondida
um suplemento de ânimo
uma penumbra não escondida da claridade
o trunfo na improbabilidade do ganho
os horizontes arrematados à névoa,
sem escafandro.
A porta fechada por fora está.
A pose abonatória
joga a seu favor:
no perjúrio da mofina
congemina-se o luar promissor.

7.4.17

#179

A enseada abre os braços
e sob o juramento de deuses bondosos
conduz a embarcação
sem o estorvo das armadilhas. 

Mandatário

Mandam-se avelãs 
aos escombros do pretérito
sem se intuir o seu adocicar. 
Mandam-se as avelãs
ainda por amadurecer
porque esse é o desejo
(e chega).
Se não fosse o guarda-chuva oriental
o sol tinha vencimento,
mas só acima das nuvens tingidas
com o pulcro.
As cinzas esvoaçam
dizendo que o vento se agigantou.
Quem diria?
O mandatário
não pode nada.

6.4.17

#178

Não queiras garantir o futuro
se o futuro é que te dirá
se é tua garantia.

Amor-âncora

“De que valem todos os atos e pensamentos dos homens no decurso dos séculos face a um único instante de amor?” Friederich Hölderlin

Dizem oráculos escondidos
na sombra da dúvida
que um amor é singular
quando
limpa as lágrimas vertidas
ampara as mãos trémulas
desarvora as bandeiras párias
aquece o sangue deixado em frias águas
e quando
os olhos são o penhor
dos olhos que são seu penhor também
e tudo se transluz
nas ameias da cumplicidade.
E se o singular amor
transfigura a paisagem
derrete a lava dos vulcões
participa nos palcos medonhos
(amaciando os medos, ociosos)
afere as medidas estouvadas
encorpa a loucura benigna,
é por ser singular
e amor
num mesmo tempo
num só tempo
irrepetível, mas perpétuo.
Embebidos os corpos
no sal vistoso apanhado das flores
as montanhas em pano de fundo,
nem as pedras enrugadas do caminho
atemorizam os pés
e os corpos atiram-se num voo fecundo
e fazem seus os domínios avistados
no testamento do amor sem quesitos.
Até que o tempo seja a medida inteira
abraçada pelas mãos juntas
fotografada pelo olhar uníssono
e do tempo sem fim frua
o amor-essência
– com a jactância que guardam os amantes
no mar indomável reduzido
ao suor derramado por seus corpos.
Pois a matemática singular
a que não se ensina nas escolas
e irrompe da porosidade das almas amadas
resgata os amantes
de um trespasse mendaz
das aciduladas páginas a que põem freio.
Do tempo sem fim
na mediação dos amantes
até que da arquitetura dos deuses
sejam seus tutores.

5.4.17

#177

Perentório
do cimo do promontório
no resfolegar emancipatório,
o poeta sóbrio
livre do reformatório.

Fiasco

Sobre o dorso do silêncio
deitado
rosto seráfico,
esfíngico
dedos entrelaçados
um copo à frente,
à espera
e uma robusta teoria
que se entretece
no projeto de pensamento.
O vinho de segunda
apodrece a função
antes mesmo do amadurecimento.
Os olhos
recolhem-se dentro das pálpebras,
embaçados
ou talvez apenas contristados,
como se fosse o ato quimérico
o resgate dos gestos perdidos.
Sobra o silêncio.
Não foi por sua ausência
que faltou húmus à ideia.

4.4.17

Convento dos bárbaros

No convento dos bárbaros
onde o cuspe é manjua
e os chispes passam por pensamento
elevam-se heróis
pelos dedos untuosos de alguns
ainda mais covardes.
A confraria dos bestuntos
corifeus danados que alçam coices
e calçam ferraduras
diz-se pertença de gente pensante.
Eu cá tenho as minhas certezas:
comem no pasto dos arrotos que tecem
e deitam-se na latrina
onde bebem o vinho podre.

3.4.17

#176

Queria ser pletora
coexistir comigo mesmo
mas não saio dos limites de mim
por um tamanho que mete medo.

Desmedida

Um bando de pássaros
desenha o céu
em voo sincronizado.
Sucedâneos das nuvens
na fartura invernal.
Em emboscada à coesão do bando
um pássaro tresmalha-se
e, sem as asas protegidas
pela bússola do bando,
aprende a solidão.
Antes que outro bando o encontre
agita as masmorras do desprendimento
sopra a poeira que se abatera nas asas
e regressa a um lar com as asas ungidas
pelo perfume santuário do cais descoberto.
O pássaro esqueceu-se de contar
como são os degraus inclinados da solidão.
No recolhimento do bando
reaprendeu a ser comum.
Até que alguém sussurrou:
toma atenção
pássaro recluso da ingenuidade,
que o bando vai querer de ti
o sangue e a carne
se preciso for
e para te convencerem
dir-te-ão seres nula entidade
no meio do grupo venerado.
O pássaro
desconfiado
recusou tudo o que se lhe oferecesse
em ardilosa congeminação
que desaprovasse a sua vontade.
Não foi ave solitária
tresmalhada
nem se empenhou
na simbiose forçada do bando.
Uma vez sem exceção
o pássaro fez a síntese dos impossíveis.

2.4.17

Máquina de engomar

Na lombada da geografia
danço
mesmo com o desjeito sabido
e vou,
com o vagar preciso,
envelhecendo nas veias visitadas. 
Na rotunda dos saberes
ponho as vírgulas no sítio
penteio os sapatos gastos
aprendendo à custa das lágrimas
no sumo recolhido dos frutos apanhados
das árvores remotas. 
E deito-me
já noite
com o inexprimível esgar 
patrono do sono prometido.
(Dispensando anjos
que têm outras empreitadas
com mais água pela barba.)

1.4.17

#175

Razão atendível 
sem rebuço
no remoço de um remo
atordoante. 

Fundação

Deixar a safira mais valiosa
amarrotar os irremediáveis nós de chumbo,
doravante desatados
e já não nós. 
No emaranhado de palavras duráveis
junto à praça onde as cotovias se aquartelam
na pose altiva de quem ensina
balbuciam-se,
sílaba a sílaba,
as palavras-mestre
os beijos amuralhados
sob o olhar dos sentinelas sem sono 
com as armas terçadas
no tabuleiro das proezas. 
Nas paredes frias
passam as mãos aveludadas
e as paredes enfeitiçam-se
com seu calor. 

31.3.17

#174

O solstício atrasado
mas jura a tempo
e os nenúfares vicejantes
esperando.

Maré

O que conta a espuma do mar?
O que vem na fina camada
que entroniza uma onda?
Que segredos esconde o mar?
Que contos sem autor
estão náufragos na sombra do mar?
Que navios sulcaram estas águas
que me insonorizam os sentidos?
Que severidade traziam seus comandantes?
Quantos foram os sobressaltos das tripulações 
contra os demónios agrilhoados
ao mar tempestuoso?
Quantos os navios destroçados?
Quanto tempo demorou
a domar as ondas irascíveis?
O mar
aprendeu a vestir o fato da ternura?

30.3.17

Jogos sem fronteiras

Olha:
uma folha em branco.
A forma à espera
de tamanho.
Um cuidado em diligência.
Lápis sentado
entre a muleta do pensar.
Um comboio atrasado
à frente da nuvem.
O gato sonolento
ronronando.
A bandeira rasgada
ao vento vadio.
A faca esgaçada
no estertor da ira.
O deserto do rosto
sob o gelo contumaz.
A urze que medra
no desmentido do outono.
O pregão sem rosto
na voz deslaçada.
A página roubada
ao plágio improvável.
A trova mugida
do lóbulo estrelar.
Frutos podres
antes do tempo.
O tempo que foge
na penumbra coagida.
A coação das palavras
sob a égide de uma espingarda.
Espingarda maleita
no avesso do mar.
Mar desnatado
sem fruição.
Discurso obnóxio
de pajens sem vontade.
Um posfácio sem redenção
no aproveitar da roda incansável.

#173

A terra dourada
em préstimos legítimos
e donativo matinal sem recompensa.