4.7.17

Esgrima

Desse o tudo
e os vulcões deixariam de dormir
as marés seriam frugais
os lenços bordados, mantos diáfanos
as cordas de guitarra beijadas em alquimia
as cadeiras vazias por inutilidade
o sono adiado para derrotar pesadelos
(antes do tempo)
os miradouros, sede de segredos
a música toda bela
os pesares desautorizados
e a roda viva:
uma autêntica prova de vida. 

Mas os espelhos estilhaçados
esbulham as feições da perfeição. 

Protesta-se:
contra o adiamento das intenções
o alto muro que impede
as perfeitas coisas da sua consumação. 
Não importam
os esbirros que movem as paredes
para a geografia da impossibilidade.
Não interessa
se as coisas não conseguem
o triunvirato da perfeição.
Ou bem que se determina
a perfeição matéria alienável
(e ela despoja-se da perfeição seu timbre)
ou se jogam os dados da fortuna
num tabuleiro feito de matéria diferente
onde fecundam as cinzas vulcânicas
e a perfeição
é o que assim for julgado,
nem que seja
pela astuta, generosa lente
atrás do olhar imensamente subjetivo. 

Até que ao sonho
venham apenas
personagens de rosto macio
mãos desenrugadas
vozes de bálsamo
só gente capaz de calar
com a facúndia de seus esmaltes
os improfícuos demónios do desassossego. 

E todas as alvoradas
representando o sorriso largo
de quem sabe
um farto dia ter 
sem se consumir a linha do horizonte. 

#242

Ele há tanta pilhéria
sem sumo
desossada
que mais vale a eanista circunspeção. 

3.7.17

Opulência

Dissessem
que as palavras
carecem de desinfeção.
Experimentassem
soluções de alquimia
talvez
ou outros pudores sem o céu da razão.
Não sou tutor
da retidão
nem meço ao milímetro
a lassidão das palavras
a sua textura enredada
o bocal por onde fogem,
furtivas e azedas
ou gastronómicas e esbeltas,
ou apenas livres.
São as palavras
que vêm ao bornal
as doces
as categóricas
as telúricas
as meigas
as dúbias
as tóxicas
as contundentes
as telegráficas
as obnóxias (de tanta presunção).
Vistam-se
com as indumentárias
que vierem no restolho da maré
tontas
provocadoras
estilísticas
musicais
afetuosas
enlaçadas
determinadas
puras,
ou impuras
(não importa,
se não palavras).
Depois
por dentro da trovoada sinistra
por entre os horrores da escuridão
entaramelados em pesadelos grotescos
alinhem-se as palavras
no repositório ao acaso
estendidas em forma de desenho
na lã sedosa da alva folha.
E depois
contemple-se
a vocação.

#241

A cidade
acorda na vertigem do tempo
contrariada
em sua preguiça amalgamada. 

2.7.17

#240

O degrau sobreposto
sobre o dorso murado
na tutela do entardecer emaciado.

Arraia-miúda

Do corpete da arraia-miúda
lamentos vociferados
contra o mastodonte verdugo da iniquidade.
Sob as estrelas anãs
em sucessivas danças desinspiradas,
sob ameaça de dívidas incobráveis
(as dívidas que os penhoram),
arremedo mal disfarçado
de retratos esboçados em estirador,

no estirador dos planos levianos.

Come-os por dentro
o verniz macabro da cobiça.

Fingem-se cavalheiros
no porte arcaico,
bastardo.
A simples pele
o descarnado que todos são
é farol inesgotável:
não se é quem se quer ser
e não é
por falta de capacidade para o ardil;
é por se não conseguir incarnar
a carne património dos outros.

Aos Pirros
emboscadas de si mesmos,
a arraia-miúda mundana,
o lamento que troa
calando as trovoadas furtivas.

1.7.17

Pot pourri

O jasmim prematuro
oculto entre a seara que adolesce
abraça a curvatura da planície
despovoando a desolação.
Os dentes aferroados
mentem sobre as montanhas à ilharga
esquecendo
o orvalho do jasmim matinal.
Não adiantam
as preces murmuradas
no leito da noite.
Enquanto
houver memória do jasmim prematuro
o oráculo adivinha a madurez dos frutos
em seu primaveril medrar.

30.6.17

#239

Asas leves
mãos desejadas
palavras amadas, simples
desejo em bramido.

Sentinela

A meta,
mirífico encestar das nuvens de Juno,
promete-se
no olhar luzidio de uma criança
sem pressa de saber o tempo
em sua alçada. 

O foro acertado
com o granulado dos dias ácidos,
porém
(só para a mnemónica
da impossibilidade da perfeição),
é o estendal onde repousam
à espera
as roupas já caiadas. 

Um ninho
por lírico que se esteie
onde não respiram
os corruptores inescrupulosos
os meãos bastardos sem rosto
os provectos maneiristas dos ardis. 

Aos outros
esperam as caiadas indumentárias 
sopesadas
no vento que beija
o estendal. 

29.6.17

#238

Ao fundo
onde só o fundo se vê
na triagem das impurezas
sob o sol descarnado.

Moderado

Os frutos maduros
inclinados sobre a mesa
servem-se sobre o abrigado olhar.
Um aspirador magro
dentro da bacia da farinha azeda
cozinha os profetas variegados
os demenciais espíritos treslidos
sem âncora para a colheita.
Piores as comendas
as comendas ungidas pela ferrugem
da ultrajada confraria
onde repousam,
ao alto,
os endemoninhados celtas bastardos.
Oxalá,
os pontos atilados no céu burocrático
não desfizessem os sonhos
não desmentissem as ilusões;
oxalá
não fossem teares envelhecidos
senescentes
servis na sua usura.
Pois são
sonhos e ilusões
redutos onde proibida é a entrada
aos vendilhões
aos acrobatas do medo
aos lacraus da incultura.
Batem à porta.
Oxalá
pudessem cruzar-se os dedos.
Mas não há superstição que chegue.
(Temos medo
que sejam os ladrões dos sonhos?)

28.6.17

#237

Aos nomes contrariados
entre vestígios de bruma
e a isenção dos rostos.

Atavismo

Um porventura beato obnóxio
terçou armas ferozes
sarcásticas
contra os arquipélagos que o sitiavam. 
Manobra de diversão
ou simples engasgar de sobrevivência
ninguém
(a não ser o próprio)
podia certificar. 
Era um daqueles dias repetitivos:
o agente convencido
que o demais mundo, 
imensa teia conspirativa,
e ele sua vítima predileta. 
Um dia
orquestrou sua vingança:
haveria
de sequestrar o abastecimento de água
jurar-se informático pirata
e tirar os sentidos à rede elétrica
contaminar com os piores vírus
a rede informática
para que as pessoas se sentissem
outra vez
como nos medievos tempos:
sedentárias sem remédio,
espalhando o caos
subtraindo as interiores bússolas
que conferiam sentido às pessoas. 
Não revelaria a identidade do crime
(que muito prezava a liberdade)
nem pediria resgate. 
Só queria
por um dia inteiro fora
os modernos devolvidos à medieval era
como paga
de o terem inundado com tanta,
e pungente,
modernidade. 

27.6.17

#236

Não sabemos
ouvir a nossa voz
somos mudos
aos ouvidos nossos.

Maratona

O refrão
na fábrica dos sois matinais.

Tira-teimas
entre lenços fartos das varinas.

A manhã
refém do nevoeiro baço.

Os toiros
sem hastes limadas, predadores.

O penhor
das esvaziadas concavidades da lua.

O leitor
dos mares de atalaia.

Tinta da China
em cima de desenhos fracassados.

Uma jura
sem testemunha.

O punhal
desafiado.

O punhal
esventrado no seu teor.

A véspera
dos lagares lavados.

O navio
desenhando o mar visível.

A tempestade
perfeita.

O abraço
no desembaraço das almas.

26.6.17

#235

Será estultícia
ou filosofia de algibeira
dizer
que a morte é uma consequência da vida?

Terramoto

Aparte os desvios tardios,
a vigorosa árvore,
fecunda,
emoldura o sorriso sedento
no rosto gentil que espera.

Aparte os gritos sentidos
as vozes cavernosas
irrompendo da baía das palavras
onde se ensaiam as varandas feéricas
as lembranças dos rios caudalosos
as lembranças do tempo cheio:
o tempo
de que ainda não temos medida.

As pedras duras
não são embaraço:
tecemos as teias que correm
nos corredores paralelos
onde a vertigem dos olhos famintos
estreita as paredes até se poderem abraçar
com as mãos caçadoras.

As pedras duras
esmioladas entre a mansidão das palavras
e nós,
alquimistas supremos,
cuidamos do trono que pertence
às mansas palavras.

25.6.17

#234

No limite
sem esporas
o oráculo vazado
e o corpo feito mar imenso. 

24.6.17

Alquimia

Se a partida aquece
no ponto frágil de um ocaso
desapartam-se as teias
e os ossos dão de si,
alcáçar.
Nos pontos perdidos
da constelação abundante
sobram
as lágrimas fingidas
os desacertos malhados
a sede imensa nos versos femininos.
Para depois
no esbulho da luz tresmalhada
deixar em banho-maria
as magníficas previsões
o tabuleiro onde se cozinha
a incerteza.

23.6.17

O sonho por dentro do sonho

Sitiado nas veredas áridas
onde só as pedras esparsas,
estendidas no chão ao acaso,
resumem a sombra do dia:
sinto
ser penhor de um sonho
ou que o sonho
em sua altivez
em mim encarnou
e deixou em herança
esta esquizofrenia diletante.
Repouso nas arcadas do tempo lento
num interstício apalavrado ao vento
e descubro
no fundo do vale
um riacho que prospera depois da nascente.
A sede bastante
pedia água fresca
que validava o desejo atual.
Em vez disso
em austera demanda
mantive o passo estugado;
não,
a pressa não me fazia refém
e mesmo que a luz se esgotasse
(mercê do inverno macilento)
não eram essas
as faces rosadas da voragem.
Contraía os músculos maxilares
e pedia ao coração o oxigénio todo
que era larga a jornada por diante.
E depois percebi
que o sonho não deixava entender
onde se fundia
o sonho como o que sonho não era.

#233

Já sabemos
o que falta saber
(epílogo da sabedoria).

22.6.17

#232

Emudecido vigésimo de alma
que chegavas
para mitigar as impurezas
do chão gasto pela bruma cinérea.

Sextante

Não é da impressão de apocalipse
nem da tempestade que se abraça ao horizonte
ou das preces infundadas de beatas anãs.

Não é das flores que não medram
nem dos mares incolores e baços
ou das pestes desembainhadas por mastins.

Não é do murmúrio melancólico
nem das trevas enroupadas
ou dos probos com esqueletos no armário.

Não é da boca quente
nem das frágeis palavras que nela estalam
ou dos pastos à míngua de irrigação.

Não é da ousadia tardia
nem do culto esotérico
ou dos padres sem sotaina e sotaque.

Não é da valentia desassisada
nem da demência sem cura
ou dos preâmbulos sem eira.

É da ciência com chão
onde se deitam os corpos ávidos
e irradia o conhecimento sentido.

É do sol escorado
onde se aprendem as prosas
e prospera a fonte fresca.

É das paredes caiadas
onde se desenham sonhos
e cevam os amanhãs acetinados.

É dos olhos profundos
onde repousam os ossos cansados
e se devolve a matéria bruta do ser.

21.6.17

Urbi et orbi

Pressentimento indulgente
na cascada onde,
despedaçados,
peregrinam os tresloucados.
Pressentimento
que oráculos anónimos
travam os desejos sem esteio.
Nas fímbrias de uma janela
no bardo negro do lume disperso
os jovens envelhecem:
endurece-se-lhes a pele
endurece-se-lhes a alma
capitulam.

Capitulam, talvez:

o pressentimento não é loquaz
e o silêncio na roda da gente
intui um amanhã sem paradeiro.

#231

Contrariedade.
Contra a idade.
Contraria a idade.
Contaria a idade.