28.7.17

Bosta restante

Vosselência
abespinha-se,
rasga o peito
(se preciso for)
tinge de vermelho a parte branca dos olhos
berra para se fazer ouvido na Nova Zelândia
é tomado por violentos abalos telúricos;
ai se lhe pisam calos doridos
pois há uma dama valiosa para defender:
dirá,
a dignidade
(caso lhe aprouver saber a medida respetiva)
que não pode ficar no pasto do silêncio
ao serem desferidos atentados
contra sua douta gnosiologia.
Vosselência
terá afeções de visão
de tanto se agigantar
ao espelho onde se contempla
(ou se congemina – ainda não se discerniu)
na astuta facúndia com que discorre
na promulgação da erudição com que terça armas
como se precisasse
de estender o falo em cima do estirador
só para o mostrar mais viril
do que os falos concorrenciais.
Vosselência
terá ido às catacumbas medievais
e delas não terá tido o proveito de retornar
– direito que lhe assiste,
que fique bem entendido.
Vosselência,
prosélito de si mesmo
engenhoso no registo canhestro
acossado por catilinárias insinuadas
general andrajoso
dúctil na bravura cavernícola,
não passa das medidas da mediocridade.
Pois vosselência
é penhor de argumentos beócios
perseguições
ao jeito dos perseguidores que vitupera
sanha estulta,
enfim
de vosselência
irrompe a urticária própria dos escatológicos
pois da pena de vosselência
excreta nauseabundo hálito
a mera bosta
que nem para restante
(ou fossa)
serventia oferece.

#268

Tanta tinta vertida
e as palavras armadura
arrancadas ao murmúrio
dos lábios.

27.7.17

Ponte reatada

A ponte partida em dois
o barco temeroso não se aventura
os marinheiros na embocadura do rio
perguntam ao silêncio
que desastre combaliu a ponte.

Duas são as margens
sem ponte como união.
Sobra gente descuidada
nas duas margens,
incrédula
mascarando o desespero
olhando, lívida,
os escombros ladeira abaixo
os vestígios de pedra despojados no rio
na água contudo sossegada.

Um ancião avivou reminiscências:
quando faltavam oito décadas para hoje
e ele medrava,
ainda infante,
a hostilidade soerguia-se entre as duas margens
à míngua de ponte.
Recordou
o ancião com os olhos marejados
que a ponte foi a melhor oferenda dos deuses
e que homenagens foram à mercê do feito.

A noite caía
e a penumbra levou consigo
a devastação da ponte ruída.

Ninguém dormiu na noite depois:
não queriam pesadelos de arengas
nem revisitação dos casos bélicos;
assim como assim
eram gente com pátria comum
gente com parentela do outro lado
da margem.

No despontar da manhã
misturada com uma neblina teimosa
a ponte confirmava-se
destruída.

Os vizinhos não quiseram
dar a mão à resignação:
de uma assentada,
na diligência fervilhante
de quem recusava a contingência
ou a derrota diante do sobressalto,
arregaçaram as mangas.
Contra o conselho dos engenheiros
prometeram
em jura solene
que a ponte seria reunida
num lustro de semanas.

#267

Parto
interiormente
e fujo do circo
e dos seus palhaços.

26.7.17

Beijo

O beijo
vulcão que incensa poros arrefecidos
rio que verte o sangue fervente
leito aquecido no desarranjo dos lençóis
aprumo dos amantes
o beijo prova de vida
o beijo-fogo
o beijo-sentinela
cais arrebatado que levita os sentidos
de onde os corpos sopesam sua alquimia,
pedaço de lábios despojado de cortinas
paciência no dorso da chuva fria
espada destravada
carne fundida
sonhos trazidos ao chão quente
o beijo-terramoto
o beijo-voragem
beijo só
começo e final
ou apenas começo
o beijo-estrada
frontispício que se oferece janela
constelação de flores pousadas sobre o rosto
esquecimento do resto,
esquecimento do tempo todo
ou o tempo tomado pela vertigem do beijo,
lábios carnudos deitando-se intensamente
sobre uns outros ávidos deles,
trono açambarcado de um reino dual
beijo-quartel
delírio sem conto de fadas
intenso tesouro com cidade a condizer
desejo desejado
o beijo
epítome do desejo
síntese de tudo o que tremeluz
beijo-centelha
beijo-mantimento
beijo.

#266

Ao desejo em ebulição
não se afivelem as mordaças:
nunca são tardias
as convulsões do corpo.

25.7.17

#265

Esse almirante
dos estornos insidiosos
em que seu engasgo se consumia,
trazia-o sob trela
(minha consolação).

Celebração

Aberta uma garrafa
cumpra-se o axioma
sem irreverência aos cânones:
bebemos
como bebemos com fúria
a ossatura da vida
e ela passa-nos suave
no adoçado chão que pisamos.

Não são as voltas travadas que contam.
Não queremos sal em vez de brisa
nem deixamos as pedras assertivas
tomarem lugar num trono
pois esse é o trono que chamámos às mãos
o trono desenfreado
de onde congeminamos as artes que importam
raiz de um património
onde somos um abraço imorredoiro
onde somos
a irrefreável força
junta na imoderada casa nossa testemunha.

Aberta a garrafa
bebemos até ao fim.
E sabemos
que a garrafa esgotada
é o meridiano das outras garrafas
à espera de serem nossa coutada.

24.7.17

#264

Uma estrela sem firmamento
o vento contumaz
uma centelha
no esbanjamento da claridade.

Diz-me um nome

Era um vulto
uma sombra deformada
o esquálido lençol caindo
sobre o vulto.

Tirava as medidas ao sol
enquanto ensaiava as demandas.
Pudesse ao menos o medo
ser o rigor baço
do silêncio;
quem sabia
se as réplicas em devolução
seriam medonhas
um apocalipse sem freio
uma maré viva, violenta
um mergulho inútil sobre o decorrido
viúvas ideias tateando cegas na escuridão.

Não reprimi mais
a demanda esperada à boca de cena
antes que apodrecesse na violada integridade:
pergunta pelo meu nome,
pergunta pelo meu nome,
antes que seja tarde.

Olhei
no contorno do meu ser.
Podia ser que houvesse alguém
a tomar entre mãos
a compungida demanda.
Um viajante por acaso
um nómada cavalgando a poeira
um prodigioso marçano
escapando entre as gotas da chuva
o arco-íris, diz-se, penhor da felícia
o jogo amparado pelos ascetas mudos
um coiote desinteressado, mas faminto
uma sereia fora do lugar
artistas à míngua de influência
devolutos lugares prometendo gente
a gente inteira possuída pelos seus nomes.

Não estava ninguém.

Era um vulto
e um espelho,
um espelho peça sozinha na paisagem:
e o vulto
o retrato da pessoa permanecida diante
do espelho.

23.7.17

#263

Margens sem estorvo,
de tantas pontes
serviçais.

Máquina do tempo

Brincávamos nas fronteiras da loucura:
não havia tempo capaz
de esfriar a ousadia.
Nos rostos arqueados
lavados nas águas cansadas
havia um desmentido do enunciado.
Tirávamos à sorte
as cartas madraças
apostando a ferocidade
contra a imaculada macieza
dos temperos que compunham as almas.
Não eram ilusões
os ossos emudecidos no viés do nevoeiro
nem os rapazes frenéticos
confirmavam o imorredoiro que julgávamos
possível.
A máquina do tempo
era a derradeira arma de arremesso
contra os impudores ocultados;
a maneira
de vergar o impossível
num braço-de-ferro pueril.
Uma filigrana tão frágil.

22.7.17

Re-cultura

De pernas para o ar
era assim que estava o mundo.
Uma muralha estilhaçada
sob o peso de balas de seda
apetrechadas por santos fraudulentos.
Um grande buraco no céu
e as flores irradiando numa volúpia ímpar
ensinando aos artesãos
(do mundo)
a navegação necessária
em águas tão tumultuosas.

21.7.17

Voz

Sob a chuva fria
a minha voz.

O tira-teimas.

Sob a chuva
já ensopado
e a chuva já não fria
a voz cansada
numa enseada.

Os dados atirados
no articulado palco sem chão
e um vulto
sereno
vagaroso
apontando com o dedo trémulo
para um norte sem bússola
sem a voz emudecida.

Alcanço o piano
o piano sem as negras teclas
e, a medo,
martelo duas, três teclas.
Era a minha voz
embargada
no lago louco sem nuvens por perto.

Já sem chuva
o corpo entretanto frio
a voz arrancada a ferros
deixada num solilóquio solene
percutindo nas árvores avulsas
sitiando a noite
já não medonha.

Era só a minha voz
transida pela chuva fria
transigindo os proibidos a eito.

A voz
que ninguém ouvia.

#262

Sóbrio:
sobre a sobranceria esbracejada
do sobrado aviltante
sobeja o nada sem estima.

20.7.17

Basalto

A lente gasta
trava o olhar. 
Nem a impaciência
murmura as dores rudimentares
na varanda do baço conhecimento. 

Pedras no sapato,
diriam os ainda penhores da lucidez
não fosse a lucidez impossível
por furtivas contrariedades à vontade. 

Qual foi o pretérito equinócio
que acendeu as contrariedades?
A lente gasta
profundamente baça
quase como se jogasse à cabra cega. 
Qual foi o pretérito equinócio
que contraiu a lente baça?
Um enigma 
mal disfarçado de enigma:
à falta de miopia
as lentes precisas não são. 
Sem lentes para repousar o olhar
qual o pretérito equinócio
que arregimenta o caos assim ungido?

A falta de vontade
ou
os olhos embaraçados pela vetusta acrimónia
ou
os olhos desembaraçados das vulgatas de antanho
ou 
a folhagem desprendida da tempestade
atirando areia aos olhos
assim já não ancorados. 

Sem os néctares por companhia
hipotecado por uma cegueira estulta
atira os papéis sem serventia
para a fogueira que empresta luz. 
Há um cansaço que se adia
pelo tempo fora
uma falsa valsa sem coreógrafo
o fastio de barriga cheia
a maré das contrariedades depostas
a maré das contradições em ebulição.

Já não repousam os olhos
sob a lente indulgente:
dessa carestia não padecem
resplandecentes
ufanos
humildes pescadores
no mar imenso sem horizonte à vista.

#261

A partida temente
hemisfério sem vidro
no ónus dos leões esfaimados. 

19.7.17

#260

Abraço os despojos
no derramamento do avesso
em pérgulas vertidas sobre o mar.

TNT

Amotinado
no escol bastardo
do batel insaciável
confirmo o imarcescível.
A escotilha sem fundo
não é lastro confiável.
A escotilha sem fundo
não aprova método confiável
e os nervos fundem-se
no lagar lânguido onde passam
paisagens bucólicas
vinhedos metodicamente erguidos
longos cabelos femininos
saciando o faminto desejo
sapatos seráficos
e povoados sem gente,
perdidos na história do tempo.
Os freios à volta
esbracejam
enxotados pelo amotinado pensamento.
As paredes vítreas
consomem a lenta combustão venal.
Agora
no estremunhado entardecer
olho à volta
e as pessoas soam todas
a alquimia.

#259

Espada embainhada:
do visceral sangue
palidez e senescência.

18.7.17

#258

No vagar
desta interminável farsa
somos ramos desprendidos
ao acaso da maré.

Desemparedado

Deixei desapalavradas
as juras mortiças.
Ajustei à cintura
os vulgos destronados
da vulgata do tempo.
Dei por mim
prisoneiro de um céu terreno
no atribulado leito de um sonho
desmedido.

Sem saber
(ou porventura não)
desalinhei os despojos
os estados de desalma
as purificações infecundas
as juras mortiças.
Desapalavradas as certezas
sobrou a clareza do nada
e nesse altar desordenado
medrou o que de mim veio ao luar.

Não cobro os juros pretéritos
nem sou penhor de aforros vindouros.
O vinho astuto contenta-me
na improvável aposta com os demónios
na liquefeita demanda dos nefelibatas
sem ter domínio das alcáçovas porfiadas
ou desenhar os limites das juras
entretanto mortiças.

Há um clarão ao longe
que perdura num pedaço da noite:
quem sabe
do clarão vêm devolvidas as palavras
do que dantes foi desapalavrado
ou palavras outras
hino sem ser alçapão
estrofe impregnada do ouro vivaz
balsa atirada ao mar em convulsões
para a redenção sem motivo aparente. 

17.7.17

#257

Falava sozinho
o asceta:
era como um cavaleiro galante
mas sem cavalo.

Símbolo

Carrossel avariado
coisa nenhuma no chapéu assombrado
oxalá as virtudes no chá coalhado
deixassem de remoer no baú amarelado.

Loucura vertida
no sopé da manhã desajustada
oxalá cantos em estrofe macerada
vertessem ninhos em saia destravada.

Rio arejado
margens robustas em tijolo arrimado
oxalá as barcas em vinho estouvado
remassem no lastro encaminhado.

Cadeira descaída
guitarra compulsada na tarde esvaída
oxalá gaiatos em palavra contraída
ensinassem os remoinhos em suposição traída.

No palco congeminado
atrizes bondosas em passo apressado
oxalá num desejo desatinado
amaciassem os cardos em espigar atrasado.

Na certeza desembainhada
marca nunca dantes registada
oxalá os dentes na palavra jurada
trouxessem enciclopédia jamais arroteada.

#256

Do eu tão virado
para dentro de si mesmo
que no seu avesso
só conhecia o eu conhecido.

16.7.17

Escuta

Ouço o sonho,
sentinela. 
Ouço
o murmúrio em volta
de um velho doente
e as gaivotas aparatosas
as mais predadoras de todos. 
Ouço vultos
na triagem da noite
e os livros desaparecidos
em lamentos guturais
que parecem chegar de um jardim
deserto. 
Ouço
as rodas inteiras da alma
a soma capaz dos estreantes
a inocência das crianças efusivas
a corda bamba nas mãos do artesão
um circo apreendido
missas negras em reforço das lides
um casaco sem corpo
ordenhando as lisas lágrimas dos arcaicos. 

Rogo

A viagem isenta
os mapas perdidos
sem o hálito pesado
dos armários passados
nem o hábito irritante
da certeza do devir.
O nevoeiro atrasa o olhar
em sua demanda precocemente
inquisitorial:
a viagem
é um destino que colhe
sortílego adiamento,
o adiamento do destino.
Saltimbanco
se faz o viajante
no coabitar dos desejos nos seus 
deslimites.

15.7.17

#255

Braço de ferro
entre o estoico e o hedonista:
alvíssaras à modernidade.

14.7.17

#254

Se não fosse 
a usura do tempo
dir-se-ia que o corpo se resgatara. 

#253

Se não fosse 
a usura do corpo 
dir-se-ia que o tempo não vingou.