2.10.18

#745

A cidade acorda. 
Ecoa as dores da alvorada.
Prepara-se para o sacrifício restante.

1.10.18

#744

O caso
é um ocaso
no acaso
do descaso.

Companhia de seguros

Em abono da armadura:
as setas todas
vertidas em remoinho
cavalgando no opróbrio a preceito
artilharia que sobrepesa no dorso
doses maciças de veneno
para não deixar peugada 
– estivesse o dorso inquietado
estivesse a atenção contaminada
estivessem os generais da insídia
no recobro da consciência
de atalaia
imorredoiramente
aferroando as farpas lancinantes
enquistando bolbos purulentos 
– o que não é o caso;
que 
não 
é 
caso.
A armadura
é o sobrepeso que dispenso.
Deito o peito nu ao infortúnio
sem temerária aventura
sem iracunda desfeita dos medos
sem a estulta heroicidade:
apenas um peito
o devir
e o fogo cruzado
de que não há ninguém
que presa dele não se preste.

#743

A maré cingida pelo crepúsculo
residência dos vultos furtivos
que enfeitam o dia.

30.9.18

Desagravo

Deportado
na linha baixa do horizonte
onde se desembainham cuidados
na súplica surda de quem os quer.
A terapia de antanho
não tem réplica,
apesar da ausente serventia:
protestam-se lágrimas, 
retidas,
e o colóquio pede um adeus.
Sentinela,
o desagravo milita a favor.

#742

Passagem de nível;
e quem o não tem?

29.9.18

#741

Deixa a interjeição em sossego.
A frase não precisa de tumulto.

28.9.18

#740

Tão carregado de razão
com a corcunda até ao chão.

#739

(Variação do #738)

No silêncio de chumbo
a voz consentida
pelos tutores das almas.

Sublime


De noite
sou o suor 
dos meus sonhos. 
A transparência
de paisagens sem contornos.
O bálsamo sem dores. 
Confio
nos versos avulsos
no velado sono. 

De noite
não respondo
aos ascetas encomendados. 
Retiro
as vírgulas
dos nós no meio das orações.
Retiro
todo o agravo
nas sílabas à boca levadas. 

De noite
levedo o pensamento.
Sem ónus nem equação. 
Nada hipoteco
na véspera de o ser
a conselho da maré promitente. 
E junto
com as mãos já não trémulas
as pilhas de páginas amontoadas.

De noite
refrigério do silêncio
arremato a doçura da manhã.

#738

Hino do moderno Torquemada:
tomara o maior tesouro
fosse o silêncio de muitos
ser sua voz.

27.9.18

Pedestal

Pedi licença ao pedestal
mas o pedestal era surdo.
Enviei 
sinais de fumo
código morse
fiz de mimo, 
até.
Mas o pedestal era cego.
E mudo.
E inerme. 
Não percebi
por que seu nome era
pedestal.

#737

Desta margem
onde (por fortuna)
encontrei na ponte uma miragem.

26.9.18

Procópio

Apanho as medalhas
o restolho venal
particípio passado com odor baço
e deixo o baço como legado
troféu da ciência estulta. 
Isso era 
quando tinha janela
e o rácio exultante
feitor da gargalhada do retrato alheio
sem reparar na gargalhada própria
com lugar cativo. 

Precisava de uma possibilidade de arnês. 

As causas são estéreis
quando se sufragam em certezas
num papel impecavelmente desamarrotado
na pele sem rugas
no levemente acidulado cultivo de frutos
com o amparo das divindades. 
Mas tudo isso eram agulhas
que cegavam a lucidez
não composta por lanternas resplandecentes. 

O arnês era a demanda:
para o abrir
e deixar cair o corpo na vertical
no muito provável 
exercício risível de mim mesmo.

#736

O choro extinto no rio,
onde secam as lágrimas
no amplo estuário em que decaem.

25.9.18

Situado

Matéria-prima:
punhal sem lâmina
lapidado no diamante crasso
sem erro por terçar
sem armas por equilibrar
apenas rotundas assanhadas
no horário tardio.
Convulsões estioladas
bardos em barda
arroz de tamboril
e um guardanapo fumado
na fogueira dos antanhos.
Roí as nozes macias
e a corda amarelada no sopé do sol
desautoriza o inverno.
Guardem-se as pazes furtivas
os tíbios preceitos da razão
as rodas rombas do risível caudal
e assente-se
em alvenaria convincente
o cimento frísio nas varandas acesas 
– e a lua
inteiramente envidraçada
devolvida contra a galáxia vazia
no inverosímil músculo da voz.

#735

Se o choro
fosse um rio
havia estio e monção.

24.9.18

Manifesto contra a eternidade

Que importa a eternidade
a cápsula sem vidro
o vento irredentista
um oráculo que não sabe ler?

Quem se importa com a eternidade
se a finitude a desengana
e nem como legado
(mesmo fora das convenções)
somos imprescritíveis?

A quem importa a eternidade
no bálsamo fugaz das luzes fátuas
na verborreia flácida dos desmentidos
na volúvel fachada de catedrais por fazer?

Onde não está a eternidade
se não nos lugares inteiros
nos corpos sem exceção
no embelezamento dos dias por porfiar
nos segredos que se guardam
na parede fria e cada vez mais gasta
das veias por dentro?

Denuncie-se a eternidade
o logro batismal
o colóquio sem verbo
o ajanotado jardim sem rega
a deletéria força que tudo exaure.

Quem quer a eternidade
se o tempo a confirmasse
e deixasse de ter validade
por excesso de existência?

#734

Tomara
um lugar exíguo
e tu, na sede da grandeza tua, 
curadora de meu devir.

23.9.18

Desmedo

No pronome do medo
acolho os seixos molhados
que sobram da maré.
Sobram as universidades de erros
as sementes que dispensam água
logros inspirados no olhar treslido.
Arrematem-se os metros quadrados
de baldios à espera de fermento
e não se baixe a escala do mapa
no porfiar da matéria acesa:
aos medos enquistados
desatam-se os nós.

22.9.18

#733

Nem todas
as viúvas
são negras.

21.9.18

#732

Perdeu serventia 
a demanda dos anátemas 
que são consumição.

Convocatória

Guarda este lenço
com as palavras sem ermo.
Lança no sol precoce
o desenho dos meus lábios.
Habita no regaço
onde medra o nutriente singular.
Perpetua este instante
no fermento ávido das mãos.
Sonha com os fecundos versos
na véspera de serem desposados.

#731

No bojo da emboscada
abainhada com insalubre vinagre,
de que lado estás?

20.9.18

Aguarela

A estátua consuma
as folhas rasteiras
no umbral do outono.

Não serão as réstias do tempo
no módico latejar das veias
por as velas se desembaraçarem do vento
em golpes fortuitos, 
precisos
exclamados por um braço forte.
Sobre a almofada da madrugada
ouço os gatos vadios
o rumorejo da maré-baixa
as lágrimas que assentam na areia,
o orvalho liquefeito,
as mãos endurecidas
pelo âmago dos seixos deixados pela maré.
Dou aos ouvidos as preces insistentes.
Pode ser que a pele se acostume
e a chuva vespertina cuide do resto.

Não cicio as palavras
sem as folhas por perto
na lombada estreita do livro promitente.

Sem o encanto das cotovias
nos seus estroinas voos rasantes
adormeço sem contar.
Sinto o corpo sacudido
e não é se não o sismo interior
que traduz as inquietações
que as traduz em forma de sonho.
Se chegar a manhã
na teimosia do nevoeiro baço
oxalá estejam prontos os versos
no esconderijo do pensamento;
oxalá sejam digeríveis
na combustão dos braços que se entrelaçam
sem a demora das lágrimas 
reservadas em favos que condensam 
toda a doçura;
das lágrimas que secaram
num parêntesis dos olhos 
que deixaram órfã a bulimia dos sentidos.

Ao amanhã
não digo nada:
quero-o inteiro
imune às profecias
servo do espontâneo esvoaçar
digno de uma coreografia de peritos
insuspeitamente demiúrgico.
Desse amanhã
conservo a memória não atribulada
e reescrevo o oráculo que teimava
na persistente mentira de si mesmo.

A estátua 
indiferente
remoça a claridade intimidada
lavrando o nevoeiro contumaz
em promessas de futura chuva.
Será inverno,
então,
e eu sem arrependimento.

#730

Incubo
a empreitada forasteira
imerso no suor do sonho.

19.9.18

Caravelas

As altas árvores
carnívoras da sombra
congeminam o furto da atenção
o rastreio das almas procedentes
e levantam os travões aos devaneios. 

Se as altas árvores
se justapõem ao sentido pesar
onde funéreos vultos perseguem os mitos
somos
pelos desembaraços vadios
as combustões por todos os lados
e não deixámos colonatos em pé
no estipêndio das almas não contorcidas
na vertigem dos cais que mais parecem 
precipícios. 

Das altas árvores
mais altas do que montanhas escarpadas
o povoamento dos anéis artesãos
e eu 
de sentinela
dando corda ao fogo de vista
empunhando bandeiras sem cor
deitando aos mares tiranos
as caravelas por acabar.

#729

Os olhos da manhã
combinam a rima avulsa
com a claridade estremunhada.

18.9.18

#728

O artífice da farsa
ou o farsante do artesanato:
quem sai de vencido 
no tirocínio da mitomania?

Moinhos

Estes moinhos
o ventre da paisagem.
Por onde
o vento se desenha
na curvatura da manhã.
O lugarejo
imensa fortificação
concebe os limites da caução.
Os moinhos
emprestam-se à paisagem
na contrafação desejada.
Penhorada a origem
sobra o chão alcatifado 
com a pedra dura.
Nada fica ao acaso.
Junta-se o rebanho
o cão que o apascenta
e o pastor distraído.
O pastor que se encanta
por mais que sejam as vezes
no rebordo dos moinhos.
As pás vagarosas
tiram talhadas ao vento.
Sente-se o murmúrio
a voz acastanhada das fazendas
no arritmado pulsar dos moinhos. 
Num moinho
alguém contaminou a obra: 

“goste-se ou não
a aldeia inteira 
vigia os forasteiros
para gáudio dos nativos.”

Sinais dos tempos
ou apenas o poema 
fremindo o carmim das palavras
na metáfora
que costura a contracapa da má profecia?

Os moinhos
indiferentes
estugam o compromisso com a paisagem.
Ela não seria a mesma
se cerceassem os moinhos pela raiz.