11.7.19

#1110

O medo
é uma dinastia
à prova de república.

10.7.19

#1109

Devolvo
ao mar cansado
a lágrima doce da bonomia.

Cortina de espelhos

Esconjuro 
as rodas encravadas
na engrenagem que congemino.

Um sussurro
desvenda as cortinas vetustas
no solitário bocejo da noite.

Antevejo
nas escadas íngremes
o absoluto encantamento do verbo.

Revejo
as páginas idas
no mirífico campo do silêncio.

Entardeço
no irreprimível movimento do tempo
sem capitular aos demónios invisíveis.

Arroteio
uma montanha milenar
no refúgio que se intui exigível.

Escondo
a matéria pútrida
dos olhos vivos que são juízes.

Perdoo
ao tempo contumaz
as cicatrizes legadas à pele.

Preparo
o chão gasto
para os pés nunca cansados.

Não corrijo
os contratempos de que fui tutor
por do arrependimento não ter saber.

Não escondo
as mágoas enquistadas
sob o esquecimento armado.

Não resisto
ao ocaso sibilino
a página-entrelinha que dita o segredo.

Não me oponho
ao verdugo da fala
se por ele se desmatar a fala mundana.

Não digo não
se o não for o cais sereno
onde repousa o rosto exangue.

#1108

(Cefaleia)

Um eco persistente
o mais audaz dos punhais
coloniza as veias pungentes.

9.7.19

A manhã e a maré

Deixei que a manhã 
tomasse conta da maresia
em sucessivas camadas de nuvens 
– diademas graciosos sem epílogo.
E nas contas da manhã
entre equações sem paradeiro
e vozes sem nome
dela tomei as rédeas
e somei-me
à aventura do mapa por desenhar.
Talvez fosse a manhã
a arquiteta do mapa por congeminar;
ou talvez a manhã
estivesse à espera de instruções
de um fogo por atear
na maré nascente que se parecia purificar
nas arcadas da paisagem
ela, 
por sua vez, 
debruçada 
sobre o leito seco do mar.
Deixei que a manhã fosse aviso
a cautela por vezes remediada
e resgatei do peito
os versos que ficam sempre por acabar.
Dei-os de volta à manhã
que se fundiu com a maré
e juntos partiram,
as suas silhuetas sumidas 
no ténue fio do horizonte,
sem mapa que os desenhasse
sem nada
a não ser o sangue siamês
que passou a ser uníssono. 

#1107

Depois da ponte
atrás de mim,
as ruínas que me precederam.

8.7.19

Concordância verbal

Passavam juntos
no cais sobranceiro 
de onde estava hasteava o odor à maré baixa.
Havia pegadas no lodo
alguém que não se intimidou
com a brisa pútrida e o chão enlameado. 
Um barco
(possivelmente abandonado)
estava ancorado sobre o lodo
inclinado sobre o lado direito,
como se começasse a ser inaceitável
o peso do seu casco deitado sobre terra. 
Podiam especular
sobre o proprietário da embarcação
ou sobre se aquele
era o retrato do melancólico fado do barco.
Seguiram o caminho
sem pararem do dorso da especulação. 
Ali à frente
já era o mar;
o rio entrava pelo mar
sem se dar conta,
fundindo-se em seu estuário largo. 
Ao menos,
do mar não sobrava um odor pestilento,
que cedeu lugar à mirífica maresia. 
Era toda uma metáfora,
em seu pleno acabamento:
o outrora rio,
indomável por milhas a eito,
quando se esculpia 
entre o granito do desfiladeiro contínuo,
fundia-se nas águas majestosas do mar,
devolvido ao anonimato. 

#1106

Ganho o segredo
e deposito-o em cofre tão forte
que depressa me esqueço dele.

7.7.19

Verbete

Arrumo a paz
no desassossego do tojo selvagem
régulo do perímetro onde cicia
a luz clara,
matinal.

Não é preciso coragem
para destas armas terçar: 
no solilóquio contumaz
salivam as palavras sibilinas
em verbos mendazes
pelas bocas dos capatazes marítimos,
os que andam em profissão de paz.

Suas são as barcas impecáveis
em imagináveis laudos
um remo que deixou de ser baço
no braço formoso que derrota
o bélico rosto dos assim pederastas.

#1105

A venda dos descobrimentos:
entre opacidade dos heróis
e aviltamento por conta dos antepassados.

6.7.19

#1104

Referendei a voz passiva.
Preferiram o verbo acutilante.

5.7.19

Doença crónica

Misericórdia pedida
em formulário encharcado de lágrimas
tentativa de superar empreitada
com o préstimo da preguiça
disfarçada no úbere da piedade. 
Arrastam os corpos poltrões
na indigna condição dos comiserados
em vez de decaírem na vergonha própria
e recusarem
a si mesmos
o opróbrio do requerimento da comiseração. 
Neste impudor
consomem-se num canibalismo interior;
ou talvez não estejam equivocados
já cientes dos arranjos disputados
da corrupção das almas
dos prantos que porfiam e alcançam
num epítome dos medíocres mal fingidos 
– dos medíocres entronizados.
Dizem os incréus
que os milagres são a abstémia condição
dos impreparados.
Quem quer melhor prova,
com requintes de amadorismo
(a condizer com as qualidades
dos profissionais da comiseração),
que as proezas destes descamisados
entram no panteão dos milagres?

Quem falou de anátemas?

#1103

(Sugestão de política fiscal)

Tribute-se o vernáculo
para termos um petróleo em triplo.

4.7.19

Moeda fraca

Dou de troco
a moeda fraca. 

Há quem a aceita. 

Ao longe
desconfio que é fraca,
a moeda. 
Rejeito-a
se for troco em volta
e prefiro que malogre
a transação. 

E, todavia,
há alturas que em mim
a forte moeda cobra sua metamorfose
em fraca se tornando.
Desconheço
por que misterioso trâmite
se transfigura a moeda,
como se 
por ação de contágio com minha pele
ela perdesse valor. 

Considero sempre
que melhor fico ao dar à troca
o pecúlio de moeda tornada fraca
por uma modesta compensação:
não há fortuna maior
do que não ser contaminado pela moeda fraca
e nela se tornar. 

#1102

Amuralhadas,
as palavras esvaziam-se.

3.7.19

Sal

Naqueles loucos tempos
fugíamos dos guarda-freios
os corpos 
dependurados na retaguarda dos elétricos
enquanto os rostos eram corridos
pelo vento contrário.
Sem darmos conta de tão frágil condição
desaprendemos
que na adulta idade nem sempre assim é:
a ilegalidade fica tantas vezes na sombra
e os seus fautores não perdem o garbo
e ensinam probidade a quem os escutar
(muito certamente para as atenções desviarem).
Desaprendemos a loucura,
também,
na exata medida da legalidade. 
Perdemos um certo sal
que a irresponsabilidade impedia de notar. 
Hoje
continuamos no cálice da retidão
às vezes esperando por um acesso de loucura
ou apenas que o corpo dê conta
de uma salina.

#1101

Junto as palavras gradas
numa equação
e bebo desta matemática quimérica.

2.7.19

#1100

(Atualidade política, 2019)

Catch me
if you PAN.

Irradiação

I
As coisas sem nome
projetos inválidos da boca pálida
um trajeto emudecido
na sombra das árvores. 

II
Os nomes não demandam as coisas
não sabem os seus nomes
no paradeiro incógnito que as mareja
na simbiose dos frutos. 

III
Os nomes não querem nomes outros 
se não a macieza da pele abraseada
e o dorso onde cavalgam os verbos
sem o despeito da angústia. 

IV
Dizem das coisas apalavradas a um nome:
são um santuário proibido
a fantasia turvada num sonho
um pedestal sem deuses. 

V
São os nomes próprios
onomatopeia que se densifica fora do desenho
num atropelo da gramática 
fusão inverosímil dos ascetas e dos boémios. 

VI
Os nomes e as coisas são ímpares
na matemática hermética do desconhecido
em circulares convulsões
nos estereótipos à procura de lugar. 

VII
Quadrassem as coisas todas com nomes
os sortilégios deixavam de estar ao vocabulário
e os homens adormeciam sob a monotonia
enquanto o jogo se fazia fora do tabuleiro. 

VIII
Não há verdadeiramente coisas sem nome
menos as que estão por descobrir
que os nomes são sempre ávidos
de serem apóstolos à procura de enredo. 

IX
As coisas sem nome
são metáfora excruciante
o logotipo encerado dos apóstatas
submersos numa apneia.

#1099

Não dar troco
é pior
do que não deixar gorjeta.

1.7.19

Espera

A varanda
sem parapeito.
O amanhecer
como um feito.
A contestação
sem pleito.
A voz muda
com um suspeito.
A linha a destempo
sem efeito.
O ocaso
com a espada ao peito.
Os espelhos
sem medo do trejeito.
Os corredores
com as mãos a eito.
Os nomes
sem idioma perfeito.

#1098

A escravidão nunca acaba
nem quando oficialmente terminada
nem quando balbucia, 
involuntária.

30.6.19

Pensamentos TGV

Estou a tentar dormir.
Fecho os olhos.
Como quem fecha as janelas
ao pensamento.
E, todavia, 
o pensamento ferventa.
Os pensamentos passam à janela,
importunam-na.
Pensamentos mais rápidos
do que comboios de alta velocidade.
Tão velozes
que configuram uma mancha indistinta:
não consigo dizer
sobre o que são os pensamentos.
O sono postergado,
dedo apontado aos pensamentos
que continuam velozes
muito velozes
a importunar a tentativa de sono.
Não sei o que pensar.
Estava só a tentar dormir.

29.6.19

#1097

Abaixo o Verão.
A baixo do Verão.
Outono, ou Primavera.

28.6.19

Destino

A vigia constante
nas horas e minutos fulcrais
no tempo de resto banal
orquestrando as águas mansas
sem lugar a tempestades.

Uma certa normalidade

(como as pessoas gostam
de normalidade,
a norma sem dor).

Os olhos secos
desaprenderam as lágrimas.

Não é bom sinal.

A impassibilidade
é um disfarce 

– e os disfarces compulsam
o enredo fraudulento
as linhas enredadas na noite sem fim
um jogo de mentiras
que se mentem a si mesmo

(sem reporem o seu oposto).

#1096

Sound bite
as the sound
bites.

#1095

Sobre o vazio
derramo palavras despretensiosas
à espera dos juros.

27.6.19

Desembaixador

Não serviria para embaixador
de coisa nenhuma
se aos pergaminhos pedisse recomendação,
devolvida à procedência
por deserto destinatário. 

Não queria ser embaixador
de coisa alguma
por ficar a léguas da confiança validada
e ser apenas pária 
num cosmos de irredentismo. 

Não podia ser embaixador
de nada nem ninguém
por não jogar com a vontade
e à margem de mim ser palco.

#1094

A pele
em camadas de escamas. 
A palavra que muda
com o escamar a preceito.

26.6.19

Hoje ao longe

Esqueci-me de que é feito
o amanhã
e este lugar parece estranho
sem alguma vez dele me ter apartado
como se fosse a morada permanente
sem histórias para contar.
Não amuralhei as mãos
não as empenhei às forças gravitacionais.
Deixei que o corpo
falasse por mim
nas coreografias não dançadas
no restolho sério das visíveis luas de outrora.
Os lugares pareciam todos iguais.
Uma cortina transparente
e, todavia, infértil 
na empreitada de aclarar 
o significado dos lugares.
Talvez as mãos pudessem ser tecelãs
inventariar os fungos aceitáveis
as sementeiras promissoras
aos hotéis sem medíocre ornamentação
onde apenas contasse gente comum
gente desprovida de vaidade
sem saber do óculo flamejante que amplifica
suas imagens,
o logro ideal.
Atravesso o quarto
e sinto como se do outro lado
estivessem os antípodas do mar
e eu
militantemente cético
esbracejando como se ainda estivesse imerso.
Ah!
Se ao menos não estivesse nas mãos dos sonhos
podia apalavrar o que viesse ao púlpito da fala
e sabia que não há algemas 
a subtrair o equinócio da vontade.
Atravesso o quarto
de regresso ao ponto de partida
e não sinto o sal que tinge o mar
nem o corpo humedecido por suas águas.
A maresia não passa de um distante desejo,
a impossibilidade na ausência de faro.
Não é a noite medonhamente escura
que se atravessa no firmamento;
é o sonho não convidado
as grutas sem fim
a tempestade suicida
os olhos que capitulam ao pesar
as sombras arqueadas sobre o rosto melancólico
a aurora fracassada
o cais seco, lúgubre, abandonado
a impecável fartura que assombra a memória
os pés desalinhados na fronteira venal.
Os lugares voltavam de repente ao seu lugar.
A matéria fundente
chovia sobre lagos aclamados
e os motores ruidosos, indiferenciados,
emprestavam-se à tela que fugia do olhar.
Não temo as consequências do mundo.
Estou à sua altura
no âmago desta fragilidade sem adjetivos
penhor de mim mesmo
na contagem avulsa das páginas sem esquadria.
Fico à espera.
O relógio conta o tempo por mim.