[Crónicas do vírus, CCLIII]
Um político de máscara
deixou de ser
uma metáfora.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Hoje é dia de bolo.
Já não importa o demais:
a matreirice dos sábios
a religiosidade imperativa
da pandilha
os trabalhos de casa
os lentes inconsequentes
o moinho das farsas
a tagarelice de uns senhores
apessoados e em pose solene
os catraios que roubam sonhos
os ufanos que bolçam pesporrência
os dias sem fim e sem finalidade
as noites com pavio curto
a pescada cozida ao jantar.
Porque hoje
é dia de bolo.
Não se arruíne
o conto gregário
nem se desperdicem
os mantos penígeros
que os verbos diáfanos
não perdem inventário
no canto gongórico.
(E depois
provável será
que os patos vaticinem
protesto.)
Dar ouvidos
sempre causou espécie
não por ser contra
liberalidades gratuitas
mas por não saber
a quem eram doados os ouvidos
e o que podiam ouvir
com a intermediação do donatário.
Também era razão de perplexidade
descobrir como determinar a transação
se ela peticionava
o arrancar à origem dos ouvidos dados
e se haveria anestesia de permeio
ou a dor seria a paradoxal paga.
(Prenhe da irremediável ingenuidade
não me era dado saber
que dar ouvidos
em sentido corrente,
como expressão idiomática,
é pior do que a sua literalidade.)
Termos em que se aconselha
a não dar ouvidos
ou a cara
ou o corpo
(ao manifesto);
não vá tamanha generosidade
ser de nós próprios
algoz.
Uma vez doados os ouvidos
(ou qualquer parte restante do corpo)
não há remédio
pois colados ao abismo deixado
não é possibilidade a admitir
e os ouvidos
(e partes outras do corpo)
têm préstimo
quando ao corpo pertencem.
[Crónicas do vírus, CCLXVII]
A (nova) guerra invisível:
a exprobração entre nações
tecendo listas de exclusão
que soam a peste.
Ao nada
tiro a rolha
e um aluvião
bolça, fértil
sobre
as costas dos aziagos.
As facas afiadas
serpenteiam
sem algozes serem
sobre o diuturno nada
retalhando-o
mal se mostra
no lagar da distração.
E do nada
um açude façanhudo
hasteia-se
a provocação diletante
e ao nada retesado
disparam as fendas
na iminente largada
da abundante fecundidade.
Diziam
ao nada
não ser de temer
nem que se fantasma
se pusesse:
se do nada se sabe
ser o seu avesso
matéria bastante
para de um golpe certeiro
estilhaçar o nada.
O calendário
resgata dos anais
o vigésimo nono ano
de licenciatura.
Não sei por que guardo
efemérides.
Dir-se-ia:
é o sublinhado de uma coincidência
selada com o sortilégio
do calendário.
(E quem pode fugir
do calendário?)
Ainda sou refém
da memória.
Devia ter aprendido
que a memória
é um tinteiro gasto
a vocação para o longe
nas imagens que se evaporam
na diálise das páginas arrancadas
ao calendário.
Vinte e nove anos
e de quê,
se cursei páginas soltas
e não medrou esteio
como cimento do tempo inteiro?
A memória
enquista-se no mosteiro
onde se arquivam os misteres
da improficuidade.
Um estéril inventário
esmaecido na caneta gasta
que em dedicatória árida
vai desmatando a decadência.
Cabiam
num biombo da memória
os nomes tatuados
a esquecimento.
Não os sabia fantasmas
e nem supunha dizer
exorcismo
na apanha fidedigna
da espuma à mercê dos dedos.
Pelo caminho
entreteci o tempo
com o avesso da singularidade
– mas não é assim
que todos somos,
vulgares,
na banal intumescência
do original?
Dos nomes
guardo as sílabas vagarosas
com que se dizem
a sua gramática repetível.
E pouco mais.
O reverso do biombo
é um deserto sem pontos cardeais.
Eu aposto
que nem o Norte
se tem por paradeiro.
Dizem-me
não é por mal,
que ao lençol da inocência
faltam as orelhas puxadas
e uma fina camada de poeira
se sobrepõe
ao olhar dos imprudentes
coalescendo no perdão.
Estou por saber
como tirar a prova dos nove
antes que venha
uma prova de vida
estragar a matemática delicodoce.
Estou para saber
como são adivinhadas
as petições de indulgência
como se enformam os compassivos
num véu de piedade
que se esportula
no púlpito da ingenuidade.
Às vezes
(são tantas, as vezes!)
só apetece dessaber
para do ultraje do conhecimento
não açambarcar
a boca amarga da angústia.
Outras vezes
quando
desaparafuso os ossos dos outros
e sou ilha por dentro de um ilhéu
prossigo indiferente
imune ao raer dos fornos crematórios
onde frui
o despautério
disfarçado de asas de anjo.
Escondido na desculpa
com o alto patrocínio dos arqueáveis
espalha prebendas à mitomania.
Não eram impressionáveis,
os inverosímeis da casta da elasticidade
no adorável desporto cívico
do paninho quente.
Escondido na desculpa,
brasonada como vão palavra,
resumia o estado geral do lugar
empenhado na monótona sanguessuga
que emudece a espátula de rigor.
Houvesse quem lhe dissera
que um pedido de desculpa
não é como apanhar o vento;
é roteiro para o arrependimento
moratória da iteração do mal feito
em sentinela para a lição tomada
cancioneiro da não repetição.
Não peçam à lua
para ser o covil da noite
a constelação perdida
onde se aformoseia
o olhar dos decessos.
Não peçam aos tumulares príncipes
para abdicarem de seu reino
não peçam
que a diáspora dos vivos
é má recomendação
tortura soez
a quem da vida já teve seu quinhão.
Não peçam aos ardinas
e aos sinaleiros
e ao homem que reparava guarda-chuvas
e aos mineiros
para saírem do atoleiro dos idos tempos
não peçam
que o tirocínio dos hodiernos tempos
seria sacrificial
um punhal deixado a sangrar,
e sem limite de tempo,
na sua memória sem tempo.
Não peçam aos eruditos
citações em latim
evocações dos gregos filósofos
não peçam
para glosarem as costuras
de um mundo a desmodo
antes que apanhados sejam
a delinquir numa revista mundana
ou nos carnais meandros do hedonismo.
Não peçam aos estroinas
pacientes leituras em letra miudinha
retiro ao invés de boémia
palavras com o aval de poemas
o medo da morte
a devolução da História
para fora das páginas dos calhamaços
um boicote à frivolidade perene\
não peçam
o oblíquo pesar
que os extrai ao mundano adejar.
Não peçam
se não o que pedido puder ser
ou acabamos todos,
em contramão
e à espera do frontal choque,
até sermos despedaçados
pela boca iracunda
de uma tempestade castrada.
[Crónicas do vírus, CCXXXIX]
É de fiar
no fiado na posteridade
– eis a encíclica dos mandantes.
O copo meio cheio
antecipa
o meio vazio por desenhar.
Não se diga
do feito por fazer
que feito está
que os mandatários incisivos
cuidam de o destratar.
Se a fuligem não fosse um restolho
ou à varanda do entardecer
não se estreitasse o ocaso
dir-se-ia que o projeto se afidalga
na desistência do fulgor.
Dir-se-ia
no veludo da fala com esmero
que não foi por mal,
nunca foi por mal:
à última hora
a evocação da força maior
o distrate de toda a responsabilidade
o eco perdido na garganta granítica
onde
a esforço
se torna caudal
o rio ainda pueril.
Qual é o diâmetro
da nossa fragilidade?
É o medo
que embalsamamos
no mecenato da loucura.
Qual é o cianeto
do nosso abismo?
É o telúrico ritual
que bebe nos costumes
em incontroversos verbos.
Qual é o bónus
da nossa grandeza?
É o testemunho desembaciado
as sílabas terçadas em murmúrio
o colossal empenho em dias soturnos
o marasmo que derrotamos
em vigílias que não disfarçamos
antes que
a fragilidade
o medo
a loucura
o abismo
e a moral
sejam nosso ergástulo.
O busílis da questão
não se confunde
com fusilis
nem com fuzis
e muito menos
com fusíveis.
São os fungíveis,
aparentados,
os logros de cepa torta.
Fugidios,
os sentidos adulteram-se
numa lava que parece igual
e o não é:
o basalto em que devêm
cuida de exibir as diferenças.
E esse
é o busílis
de todas as questões.