22.1.21

#1877

[Crónicas do vírus, CDXLIX]

 

Neste janeiro

só os pássaros

podem voar.

21.1.21

Motivo

Daquela angra

uma colher sobre o mar

e nem sal

nem um pouco do suor estimado

em maresias tardias.

Altivo

veio crismar

o oceano:

eram faustosas

as estrofes a ele dedicadas

mas eram apenas uma farsa:

nos fardamentos encorpados

as algas faziam de eruditos

escorregadiças,

ardilosas,

em seus cenhos de fealdade.

À doca veio encontrar-se

com a usura das marés.

Num póstumo candelabro

as virtudes apanhadas por junto,

num único molho,

reduzidas a um módico,

eram a angular estafeta

entre as ideias avulsas.

Que ninguém procurasse 

a coerência:

ninguém demandara aquele pedestal

com essa incumbência.

#1876

[Crónicas do vírus, CDXLVIII]

 

Os dias de não mais

(epifania da liberdade)

estão para quando?

20.1.21

#1875

[Crónicas do vírus, CDXLVII]

 

Jogamos o jogo

ou deixamos que outros

atirem os dados?

Justiça

Apodrecem nas mãos

as vozes estilhaçadas.

E não se insurgem

os mundos que se escondem

da indigência malsã.

 

Estilhaçam na pele

os rostos decadentes.

E não se conformam

os povoados que se fingem

no teatro ensinado.

 

Decaem no corpo

os sexos resgatados.

E não se arruínam

os desejos que se adestram

na imaginação caudalosa.

#1874

[Crónicas do vírus, CDXLVI]

 

Regressamos

às nossas torres de marfim

aquartelados contra os fantasmas.

19.1.21

Céu sanguíneo

Um céu sanguíneo

a ler o dia 

ainda matinal,

moeda franca

de um olhar sem arestas.

O céu sanguíneo

esculpe a curvatura do tempo

e ao longe

num trejeito efémero

a névoa dissolve-se

no rosto desapossado.

#1873

[Crónicas do vírus, CDXLV]

 

Para a alfaia do medo

é preciso 

(saber como)

meter medo.

18.1.21

Da frugalidade

Não tenho horas para dar

na astúcia dos dedos 

que contam o tempo destemido

empenhado pelo enrixado porvir

tutelado pelo pretérito envidraçado.

 

Não tenho nada para dar

enquanto sopeso as rugas frugais

desenhando o mapa da pele emaciada

vinificando memórias consentidas.

 

Não tenho um módico para dar

e aprovo a lanterna viva

que se arruma nos viveiros possíveis.

#1872

[Crónicas do vírus, CDXLIV]

 

Os súbditos

são o presente envenenado;

os suseranos

são o rosto da mendacidade.

17.1.21

#1871

[Crónicas do vírus, CDXLIII]

 

Ainda 

na posição de presas

à mercê de um carrasco

sem rosto.

16.1.21

#1870

[Crónicas do vírus, CDXLII]

 

Ave Maria

cheia de desgraça,

ou “povo que vais descalço”?

15.1.21

Lei da selva

No lanço certo da escada

um esquadro 

para desenhar o consentimento. 

Povoado sem toponímia

uma fábrica de desrazão

e em tudo o que é adverso

manda-se a desratização

castrar o lóbulo promissor da infâmia. 

De um jardim zoológico

plural

diria não ser visitante;

antes o mapa sem lucidez

do que os erros reprimidos,

tonturas excruciantes

que não pegam na lei da selva.

#1869

[Crónicas do vírus, CDXLI]

 

(Variante do #1869)

 

A casa,

outra vez

refúgio do medo.

#1868

[Crónicas do vírus, CDXL]

 

A casa

outra vez,

refúgio do medo.

14.1.21

Fojo

Sabias

em que dormitório

hibernava o biombo?

Era uma matéria venal

um esgar devolvido às sombras

penhor em causa própria

(ou penhor sem casa própria?)

a linhagem vetusta

dos sarcófagos sem paradeiro.

E, contudo,

servia-se o medo

às portas blindadas,

como se se arqueassem os corpos

e, em genuflexões pueris,

consagrassem os estultos sem armadura.

 

Sabias

que a mitologia

se consome na mentira?

Não eram verbos banais

os que chamavam a si a centelha puída.

Desarmávamos as esporas 

que amaldiçoavam os espíritos singulares,

recorríamos aos mais fundos punhais

para sangrar os mastins desaçaimados

que nos impediam de sermos libérrimos.

Na contabilidade prematura

arranjávamos as ferragens 

contra a decadência urdida 

pelos espantonautas.

 

Seria caso

para erguer uma cortina de espantalhos

antes que todo o tempo fosse tomado

por quem o desmerece.

#1867

[Crónicas do vírus, CDXXXIX]

 

Não é um novo vazio;

é a continuação do vazio.

 

(Amanhã, o regresso do confinamento)

13.1.21

Estatura

O acordar:

desembaraço as pestanas;

as sobras de um sonho

esperam à porta

vertidas num vulto

no crepúsculo em vão. 

 

Pergunto pelo dia. 

 

Os braços desarmam o torpor

o sangue sente o raiar

espera pelo rastilho

o acetinado forro da pele. 

O murmúrio das vozes

distante

emoldura as primeiras ruas

como se elas descongelassem

com o estio à medida das almas primeiras. 

 

Agora

as ruas já não têm só as árvores. 

E as pessoas

quase todas contrariadas

avançam 

contra a vontade

contra a manhã intrusa

preparam-se 

para os segredos por vir

sobem ao palco

principais atores

do dia que as tutela. 

 

Segredo um par de sílabas

detetive de meus sonhos

e levanto os corrimões que antecipam a tarde

no resgate da vontade,

procurador indigente dos pesares. 

 

Espero pelo entardecer

refém de um tempo estiolado:

nesta conspiração não tenho voz 

as espadas afiadas dançando sobre a cabeça

coreografando o vento sem algemas. 

 

Espero

que o entardecer segrede

a geografia do sonho de que sou véspera. 

Até ser um corpo passivo

amordaçado pela entrega do sono

vítima, 

ou algoz, 

do sonho estilhaçado. 

 

O acordar,

ato repetido;

ou o corpo dormente

bolçando 

um sonho 

por dentro de um sonho. 

#1866

[Crónicas do vírus, CDXXXVIII]

 

Tem desandado

o negócio dos novos amanhãs,

entrados que foram

numa rua que parece ter fim.

12.1.21

Impressionista

Costuro as feridas

com a saliva que efervesce

na maré alta. 

Devolvo ao areal

o tojo fundido nas varandas. 

O espaço 

é atapetado pelos anciãos. 

À razão do medo

os confettis desembaraçam-se das árvores

em beijos guturais que cauterizam a luz. 

Diziam:

é inútil cimentar as cicatrizes

se a pele não se emudece

na coreografia do tempo. 

Só os tolos

(e os majores risíveis)

estudam os ângulos que anoitecem o medo. 

Antes os melodiosos cantos das horas certas

o crepúsculo amotinado

um vesúvio a crestar na sombra dos mares

a cor mate que traz embaciados os olhos;

antes 

tudo isto

do que a carne viva

à espera 

de curadoria.

#1865

[Crónicas do vírus, CDXXXVII]

 

Não seremos mais

do que mandatários

das cicatrizes.

11.1.21

Moscovar

Não há Moscovo

que nos contente. 

 

Não há

iridescência

que sobre 

para as nossas silhuetas. 

 

Não há limites

que nos afugentem

do rogo da demanda

atirando-a 

umas léguas além. 

 

Não há frio

que nos emudeça

nem neves que sejam

perpétuas. 

 

Não há desidioma

a separar o corpo da fala. 

 

Não há modo sem ritual

nem guarida 

sem arranha-céus. 

 

Não há mosaicos 

em forma de vivos retratos

nem catacumbas tão ilustres. 

 

Não há museu igual

no reverso 

das memórias nocivas. 

 

Não há primavera

colonizada pelo inverno

num marco tardiamente ártico. 

 

Não há Moscovo

se não em Moscovo.

#1864

[Crónicas do vírus, CDXXXVI]

 

Ainda não aprendemos

que o arrependimento

não é a fiança da redenção.

10.1.21

#1863

[Crónicas do vírus, CDXXXV]

 

A confiança

em dose excessiva

é o coro da irresponsabilidade.

9.1.21

#1862

[Crónicas do vírus, CDXXXIV]

 

Um coro de farsantes:

os súbditos,

indisciplinados. 

exibindo-se como súbditos;

e os regentes,

que aproveitam

para exibir o músculo.

8.1.21

Degenerescência

O podre de um regime

não são os seus porteiros;

são as portas

que lhes damos

como legado. 

O podre dos porteiros

não é a vileza que os cobre

ou as meãs manhãs em que se entretecem

ou o coldre vazio 

em que oxalá fossem concebidos

ou a árvore enfastiada em que se entronizam;

é dos que selam o sufrágio

cúmplices em primeiro grau

as mãos que servem às luvas dos porteiros. 

O podre 

é da letargia incandescente

que de mote próprio faz alpinismo

às costas dos súbditos

instruindo-os na apatia.

#1861

[Crónicas do vírus, CDXXXIII]

 

O fio da navalha

rorejando toda a vingança

sobre os frágeis

(que não admite exceções).

7.1.21

Água mineral

Como se de uma barreira de coral se tratasse:

os dentes afiados contra as redes

e o farol centenário

ciciando um pesar orquestrado

que não amedronta os peixes.

Nem do salitre cuidam os barcos

que em águas tumultuosas

sem a guarida do porto

não sobra atalaia 

se não para o sopesar da embarcação.

Os nós enredam-se no crepúsculo:

têm de ser as mãos gastas dos marinheiros

a prevenir a redenção.

Não se diga

que a fartura pretérita se consumiu

nos corpos envelhecidos;

a maresia aspira o sal pelos poros

e embebe-se na ossatura dos marinheiros,

que ganham no tributo 

calibrado na vertigem do tempo.

Deixam as vírgulas esquecidas

num recanto da boca

como se as tivessem salivado

e elas,

sílabas estilhaçadas,

sobrassem,

despojos, 

nas pregas dos lábios.

#1860

[Crónicas do vírus, CDXXXII]

 

Casino ou carrossel

uma certeza embolsamos:

estamos perdedores. 

6.1.21

#1859

[Crónicas do vírus, CDXXXI]

 

Fugitivos

da fragilidade,

empossados párias

sem remédio.