[Crónicas do vírus, DXXXII]
Apenas silhuetas
ou mortalhas
sem nada por dentro.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Repito-me.
Não tenho mais nada
para dizer.
O ferro solto
espera pelo selo abraseado
enquanto a fogueira se excita
e o amordaçado ferve de medo
(disfarçado de brio).
Não se estilhaçam
os verbos exauridos:
os carrosséis amadores
não se agigantam
no avesso das dores
e as palavras repetidas
podem não ser matéria gasta.
Repito-me.
Talvez
por não ter nada mais
para dizer;
ou talvez
porque essas palavras
resumem o medo do amordaçado
antes de ser marcado
com o brasão dos estultos.
Repito-me:
o brasão lacrado na pele
é a pior das tatuagens perenes.
[Crónicas do vírus, DXXXI]
O hálito descarnado transpira
na caverna onde a peste
gravou a devastação.
[Crónicas do vírus, DXXX]
Uma espada
perpendicular,
sem saber se abate
sobre as inocentes cabeças.
Ao canto da mesa
escondem-se vultos
disfarçados de anjos,
imberbes.
Falam.
Sobre eles
adejam caixas de diálogo
com as legendas do que dizem.
Nota-se a profusão de onomatopeias.
Ninguém apurou
se os querubins falavam
por interposta metáfora
ou se eram literais
– termos em que
seriam disfarces de anjos
ou os anjos neófitos
ganharam autorização
(superior)
para o vernáculo.
Falta o apuramento dos factos
sem o qual
o sono não deixa de produzir efeitos
e os demais
não são destinados ao desamparo de causa.
[Crónicas do vírus, DXXIX]
Exortação:
não percamos de vista
o juízo
(na forma do siso, que nem sempre há).
Como se adolescentes
fôssemos todos.
[Crónicas do vírus, DXXVIII]
(Variante do #1955)
Somos contramestres
da originalidade
quando menos dela
precisamos.
Estou zangado com as palavras
e atiro a matar
contra as claras que se acastelam
no hipotálamo da cisão.
Não sei se as rasuro,
às palavras dissidentes,
pelo topete de se agigantarem contra mim
e quererem colonizar o meu sangue.
É desigual
o terçar de armas:
as palavras nem sabem
que com elas me zango
e não darão devida conta
do meu rasurar impenitente.
Mas essas palavras insubmissas
que torpedeiam o meu apenas estar
(não poderia dizer que é bem-estar)
colhem o lilás das bandeiras
e enfeitam as janelas com cadáveres de flores
povoando os lugares
com pútrida
poluição.
Não viro a cara ao terçar de armas
com as palavras com que me zanguei,
por mais que elas esbarrem
fragorosamente
no conceito do meu rosto
que parece
a carne para canhão
(como é na linguagem castrense).
[Crónicas do vírus, DXXVII]
Nos outros
um passo atrás
para dois à frente
e nós
um passo à frente
para dois atrás?
As recordações do futuro
– dizias,
mastigando os despojos de um dia
que parecia o disfarce do tempo.
A boca murmurava os hábitos
e as páginas precisavam de aval
para serem levadas a sério.
Não tenho um oráculo
– dizia,
olhando para a escotilha
que vigiava o mar errático.
Os gatos apreciam a noite
e as sentinelas não se apagam
no crepúsculo kamikaze.
Acredito no futuro flamífero
– dizias,
enquanto atiravas fósforos
contra as montanhas que se levantavam
perto do posto de vigia
mesmo na embocadura do nevoeiro.
Não sei dos fogos vindouros
– dizia,
desde o palácio dos frutos prometidos
dando água aos poetas
que não capitulavam aos barbantes
das almas aprisionadas por dentro de si.
Vulgo
o carcereiro da sorte
contra o cão que mija no desdém
sob a vista atenta
do Morfeu (que estava) atrasado
deixando em pulgas
a esgrimista adónica.
Vulgo
a mortalha caída na linha do metro
enquanto o cego balbuciava
uma cançoneta dos National
e as colegiais ignoravam,
exiladas no casulo dos auscultadores.
Vulgo
o peão anónimo
em andanças contra a vida
enquanto a vida conspirava
(na maneira de ver do peão anónimo)
na borda de um pão seco
esfarelado por um velho na ilharga do lago
enquanto o farsante
bem disfarçado
(ou não fosse o farsante)
se escondia dentro da gabardina XXL.
Vulgo
um teatro sem agenda
corrompe o povaréu indiferente
com mulheres nuas
desmúsica popularucha
e couratos banhados em unto
– só para ver
se a populaça comparece
(e para tirar as conclusões a preceito).
Jurava que o contexto
era a parte do verbete
que menos interessava.
Os dias movem-se
pelos dados atirados ao jogo
e ninguém tinha uma teoria
sobre o comportamento dos dados
(e a correspondência dos feitos).
Podia ser da marcha-atrás
que às vezes é o penhor em falta
ou apenas
a indizível farsa
desenhada na silhueta das palavras.
E elas,
as palavras,
reunidas na boca do vulcão,
acertadas no limiar do medo,
entoavam uma prece
murmurada no estreito muro das sílabas
enquanto à volta a chuva entrava no cais
e as palavras impetravam
a luz sibilina que juntava as bocas ávidas.
As sílabas abraçavam-se
num tentava
não vã
de compor os lados visíveis dos sonhos.
Numa estimativa aproximada
as pessoas alinhadas no sopé do vulcão
esperavam pelo sinal das palavras
como se elas fossem
o rastilho sem embaraço
o caudal que se oferecia ao navio
ainda em doca seca,
a contrafação dos boçais.
Já ninguém esperava
pelos engenheiros das almas.
O palco está cheio de partidas.
Por cada tempestade
antecipam-se manhãs puídas
os olhos macilentos
esconjuram as marés vivas
deixando a água a remoer-se
no tamanho do dia.
Não sabiam do que estavam à espera
as palavras pacientes na embocadura do vulcão
e as pessoas que as testemunhavam tão pouco,
como se as palavras
pudessem ser ateadas pela lava
que ninguém esperava.
O palco estava armadilhado,
alguém sussurrou.
Logo se saberia
quando o fermento transbordasse do estuário
e a matéria-primasse se cindisse
nas estrelas avulsas que tutelam as juras.
[Crónicas do vírus, DXXIV]
O efeito
mostarda de Dijon
quando as zaragatoas
forem invasoras dos narizes.
Quando era criança
não sabia dos poetas.
Quando
o tempo chegou
deixei de saber
como é ser criança.
“They turn houses into homes (...)”.
Eistürzende Neubauten, “Youme & Meyou”
Não é apenas o cimento
os móveis que obedecem
ao manual de estilo
os cortinados
que reservam o interior
o número de assoalhadas
o crédito hipotecário
e o condomínio
a paisagem fruída à janela
o código postal
as fundações que ficaram escondidas:
é a casa com nome próprio
o mundo reservado
que não cabe
na vaga do mundo inteiro
as paredes que respiram
as almas residentes
sob o pseudónimo de poetas
servidos à refeição.
Tinjo
a aguarela
com o sangue
do desespero.
O sangue
não é meu,
nem o desespero.
Apenas os ouço
em surdina
querendo feitoria
no meu alabastro.
Da aguarela
pressentem-se
as cicatrizes do medo.
O oráculo
invade o tempo
leva-o
a um forasteiro lugar.
Disseram
que a aguarela
já puída
perdeu valor.
Conservo a moldura
por via das dúvidas
não vá ser precisa
para emudecer
o desespero
por ora
apenas em surdina.
A aguarela
tem paradeiro incógnito.
Nem os aflitos
que a assinaram
convocam a sua posse.
[Crónicas do vírus, DXX]
Uma fundação
engenhosamente artilhada
prepara-se para resistir
aos seus escombros.
O franco atirador
é um fraco atirador
(ou pretendente a ditador).
Pouco lhe vale
ser um atirador franco
que a franqueza
não é atestado de pontaria.
As guerras de todos os tempos
ficariam a ganhar
se os beligerantes
fracos atiradores fossem:
as balas perdidas
seriam proveito para a humanidade,
à medida que fossem destinadas
ao fosso.
[Ólafur Arnalds, “Re:member”]
Rasgo o céu com um verso órfão.
Deixo à mercê da boca quente
o gelo sem pátria,
o vulcânico pedaço na maré baixa
a tocha nas mãos a povoar o entardecer.
Deito ao céu
a jura que se amotina
e da carne íntegra tenho a medida certa,
as palavras de que sou embaixador.
Esta é a ponte sem abismo
o logotipo dos amadores
verbo ajuramentado no colóquio dos eruditos.
Este é o degrau rombo
na escadaria dos ilustres
em falta a passadeira vermelha
e o acetinado tecido da cortina
que desce sobre a cena,
cobrindo-a com o fim.
Este é um lampejo de lucidez
a fria matéria campestre
no algoritmo dos amanuenses
distopia contra os madraços da folia.
Esta é a folha em que maceram
à espera de dia nenhum
andaluzes alfarrabistas de livros sem edição
os milhafres que espiam a sombra escassa
no auge do Verão.
Esta é a geografia distante
uma paisagem lunar que se agiganta no mapa
atirando o olhar contra o nanismo dos seres
enquanto coiotes febris procuram o coldre
e as presas emudecem no crepúsculo.
Este é o contrabando que dissolve as almas
penhores inválidos de um oráculo dispensado
enquanto às mãos dos marinheiros
vem uma esfíngica bailarina
em forma de estatueta de cera
(quando sereias tinham sido prometidas).
Esta é a pergunta sem fronteiras
o contrabando da lógica
em passarelas de nevoeiro
que pedem um arnês.
Esta é a pose senhorial
o esfíngico balbuciar de impropérios
no amuralhado silêncio
contra os mastins que a fala adulteram.
Esta é a pista venal
o rosto lodoso, irrepresentável,
o cerco tentacular à adivinha sem resposta
o pulcro que espera pela prescrição.
Este é o diadema sobrante
o tiro de partida para a decadência
no alistamento de muitos
e resistência de uns poucos
na haste visível de um minarete de ouro
enquanto o vento traz o perfume do rio
que se espalha pelos interstícios da cidade
e se abraça ao dia vindouro.
Este é o espelho
antes de ser estilhaçado
pela força centrífuga de um sismo
o espelho agora despedaçado
fronteira renascida
à espera do rastilho da maré.
Este é o pinheiro matricial
o bravo escudeiro dos sublevados
bandeira hasteada no pórtico da ponte
que não esperou pelo abismo.
Dou de um nada
o vértice da sílaba gutural
e na enseada
estimo o vento que incendeio
à espera da locomotiva meã:
a acendalha para o chão molhado.
Vou de um nada
a aresta crua na gramática venal
e no promontório
coabito na lua centrípeta
à espera do murmúrio tenaz:
o musgo acastelado na silhueta das nuvens.
Há num nada
na pontuação da sede sideral
e no estuário
colho a maresia que esbracejo
à espera do céu dardejado:
a escrita em dia na partitura das mãos.