[Crónicas do vírus, DCXLVIII]
Os braços
aquém da sua
latitude.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O poema forma-se no corpo insubmisso.
Não se esconde do crepúsculo
onde capitulam os fracos.
O poema
é a redenção dos que não têm armas
a beligerância que se atesta em metáforas
o vinho raro na colheita da alma.
Fala sem tutor
na fila onde desmaiam
os da voz empenhada.
[Crónicas do vírus, DCXLVII]
Não se sabe
se a cortina foi levantada
ou se, descida,
anestesiou o palco.
A tempestade acolhe o texto
nas horas matinais.
Ensaiam-se os verbos nórdicos
a julgar pela esquadria das árvores.
A propósito do cio dos elementos
o medo não é a melhor medida.
Sobrepostos
os braços sem identidade
fundem-se na espera.
Quando a tempestade embaçar
a tarde pode fazer ouvir
a sua voz.
Atiro palavras ao dia
e não espero que o dia
seja recíproco.
As sílabas sobem
métricas
à boca.
Dispõem a moldura
das metamorfoses
na antítese
do mosto que se reproduz
no tempo indiferente.
Recolho as palavras
na rede
deixada ao largo dos olhos.
Empresto-lhes o silêncio
que as tutela
no jogo dos sentidos.
As cordas dos violinos
amanhecem por dentro da boca.
Avistam o pecúlio maior
e o suor não o desmente.
A janela traz a manhã sentinela.
Em vez do silêncio
um rumorejo destina-se em estrofe.
Por dentro do ciciar ao longe
as vozes fundidas
no estaleiro a que damos
os ossos.
[Crónicas do vírus, DCXLV]
Capitulação:
rasuramos do presente
a seiva vivente
de que somos feitos.
Os segredos
escondidos
pelas copas das árvores:
em cada tiragem do sol
a maresia decantada
pelos ramos;
haveria um dilacerado bocejo
se não fossem tão rotineiras
as rotinas que assim se apresentam.
Há quem diga
que aquelas árvores matrizes
são um ponto cardeal;
o antídoto contra a matéria flácida
que contamina
os dias.
Às vezes
as páginas ensinam a simplicidade.
Aprenderam
com as árvores irrelevantes
que estão no centro do mapa.
Se falamos
a linguagem da lua
somos mandatários maiores
dos mapas em segredo.
Se ao luar
trazemos um caiar
juramos as estrofes sem tempo
que coabitam nas mãos.
Se da lua
habitamos a sua lava
hasteamos a alma crepuscular
e aprendemos a modéstia.
Se não é estranho
o idioma que nos sagra
é por termos terraplanado as crateras
que infundiam os medos.
[Crónicas do vírus, DCXLI]
Num mergulho pelo medievalismo,
os arcaicos que fogem das seringas
como (diz-se)
o diabo foge da cruz.
O jogo furtivo
aquece nas telhas rubras
da tarde soalheira.
Mandatamos um de nós
para ser teste-de-ferro da provocação,
sem saber se o fazemos
por preguiça ou por utilidade
(alguém sugere
que não podemos falar todos
ao mesmo tempo).
É como deixar a palavra embebida
numa ruela lisérgica
enquanto a tarde se consome
e arrefece nos corpos à sombra.
O lugar de procurador de todos nós
fica deserto.
No jogo do empurra
sobra o abismo onde não há vivalma.
Já prefaciava o adágio
sobre cães danados e vozeiros
e almas estranhamente silenciosas.
[Crónicas do vírus, DCXL]
Manual para lidar com uma peste
(segundo os regentes em funções):
sucessivas camadas de desigualdade
umas em cima das outras.
O silêncio
não é estrutural.
A bandeira que o traduz
não é um ocaso.
O silêncio
compreende todas as palavras.
As videiras arcanas
habilitam a fala emudecida.
Nem as mãos fundidas nas serranias
devolvem a voz articulada.
O silêncio
é um momento
que se efemeriza.
E nem a cólera
que substitui a maré deitada
distribui uma fala inerente.
A voz prolixa
escuda-se no banal;
empossa o silêncio
na armadura contra o desmedido.
Não é por cima do crepúsculo
que amolecem as palavras duras.
Um gesto a jeito,
um amparo no ocaso
e a ajuda de umas mãos gentis
é tudo quanto se precisa
no fingimento da farsa imanente.
Não se diga
que não houve aconselhamento.
No tira teimas
hão de pesar as palavras alvorada.
Entardece a boca substantiva
e as luzes desmaiadas
não são embaraço ao olhar visionário.
A boca não se feira no ocaso,
penhora diligente das cordas desalmaras
enquanto no avesso da maré se cantam versos.
Não deixo a pele puída pelo sal
e se de redenção se fala
dou o meu caso como perdido.
E se no espelho do futuro
as mãos se voluteiam
o exílio não é o esperanto que ninguém
fala.
Assinam os nomes
como animais acossados
o medo a precipitar-se sobre eles
como uma trovoada perene
que desarruma estantes sem livros.
Não podem desenhar uma arritmia
que a pele ensanguentada
disfarça a fala.
Quando percebem
foram reféns de um pesadelo
que açambarcou a parte melhor
da noite.
A cidade
joga-se contra a luz entediada.
A cidade
joga-se contra a luz
entediada.
Sente-se enteada
perdida no mapa crepuscular.
A cidade enteada
amanhece desarmada
e terça os braços
contra a maré afluente.
A cidade amuralhada
rebela-se contra os almocreves da dissidência.
Não espera nada
(a não ser
a imodesta condição
de cidade centrípeta
onde todas as pessoas encontram
estuário).
A cidade insubordinada
ferve nas jugulares exasperadas
enquanto o sangue entardece
em forma de lava.
E a cidade arruma as unhas
no espólio de quem se oferece,
acolhedora.
A cidade madrasta
deixa os moradores no oblívio.
A cidade iconoclasta dissolveu-se
no enamoramento dos forasteiros.
A cidade
é só uma manta de retalhos.
A matéria perdida:
subsídio da alma
que parte em demanda
de inventário.
A janela do tempo
agiganta-se nas palmas das mãos
entre as cadeiras desarrumadas
e o diligente critério interior
que desorganiza as coisas frívolas.
Não é de tempestades
que fala o corpo;
é de paisagens emolduradas em frações do sangue
como uma escultura partida em partes.
Pudesse a memória
lembrar-se do futuro;
pudessem as palavras
ecoar o nunca desdito;
pudessem os muros caiados
ser as páginas de um livro sem autor;
pudessem as noites
traduzir o oblívio
– e as juras
deixariam de pertencer aos arrependimentos
absorvidas pela saga
da simplicidade.
Não
não me curvo perante a angústia
nem quero saber minhas
as lágrimas que cimentam o chão sem prumo.
Na espiral dos dias combustíveis
terçam-se as fragilidades
contra os mastins sem rosto.
Não serão deles os sonhos vindouros.
Não serão as comezinhas farsas
a transfigurar um céu
onde apetece arrebatar as estrelas
fazendo do olhar ávido
o suor
que arrefece os deificados por equívoco.
Não saio de onde pertenço.
Não fujo das fraquezas que enriquecem.
Deixo ao que não sou
a fugaz espada que se rebaixa
na obnóxia condição dos beligerantes.
Deixo aí que não dou
as preces no idioma sem gramática.
Em vez de avareza
dou-me à combustão da alma
que se não gasta
e ao gosto dos oráculos
que se esqueceram das costuras.
Em vez da volta
prometo a partida.