16.7.21

#2076

[Crónicas do vírus, DCXLVIII]

 

Os braços

aquém da sua 

latitude.

15.7.21

Epistemologia

O poema forma-se no corpo insubmisso.

Não se esconde do crepúsculo

onde capitulam os fracos.

O poema 

é a redenção dos que não têm armas

a beligerância que se atesta em metáforas

o vinho raro na colheita da alma.

Fala sem tutor

na fila onde desmaiam

os da voz empenhada.

#2075

[Crónicas do vírus, DCXLVII]

 

Não se sabe

se a cortina foi levantada

ou se, descida,

anestesiou o palco.

14.7.21

Tempestade

A tempestade acolhe o texto

nas horas matinais.

 

Ensaiam-se os verbos nórdicos

a julgar pela esquadria das árvores.

 

A propósito do cio dos elementos

o medo não é a melhor medida.

 

Sobrepostos

os braços sem identidade

fundem-se na espera.

 

Quando a tempestade embaçar

a tarde pode fazer ouvir 

a sua voz.

#2074

[Crónicas do vírus, DCXLVI]

 

Quem pode dizer

que nunca tropeçou

em arestas da vida?

13.7.21

Requisição civil

Atiro palavras ao dia

e não espero que o dia

seja recíproco. 

 

As sílabas sobem 

métricas

à boca. 

Dispõem a moldura 

das metamorfoses

na antítese 

do mosto que se reproduz

no tempo indiferente. 

 

Recolho as palavras

na rede 

deixada ao largo dos olhos. 

Empresto-lhes o silêncio

que as tutela

no jogo dos sentidos.

Desminado

As cordas dos violinos

amanhecem por dentro da boca.

Avistam o pecúlio maior

e o suor não o desmente. 

A janela traz a manhã sentinela. 

Em vez do silêncio

um rumorejo destina-se em estrofe. 

Por dentro do ciciar ao longe

as vozes fundidas

no estaleiro a que damos

os ossos. 

#2073

[Crónicas do vírus, DCXLV]

 

Capitulação:

rasuramos do presente

a seiva vivente 

de que somos feitos.

12.7.21

Varrer os estilhaços

Os segredos

escondidos

pelas copas das árvores:

em cada tiragem do sol

a maresia decantada

pelos ramos;

 

haveria um dilacerado bocejo

se não fossem tão rotineiras

as rotinas que assim se apresentam. 

 

Há quem diga

que aquelas árvores matrizes

são um ponto cardeal;

o antídoto contra a matéria flácida

que contamina 

os dias. 

 

Às vezes

as páginas ensinam a simplicidade. 

Aprenderam

com as árvores irrelevantes

que estão no centro do mapa.

#2072

[Crónicas do vírus, DCXLIV]

 

Os rituais

perderam o lastro,

perderam-se

como rituais.

11.7.21

#2071

[Crónicas do vírus, DCXLIII]

 

A História é feita

de histórias 

que nunca mais acabam.

#2070

[Crónicas do vírus, DCXLII]

 

Continuamos

no avesso da vida.

(E não 

com a vida do avesso.)

10.7.21

Engenharia

Se falamos

a linguagem da lua

somos mandatários maiores

dos mapas em segredo.

 

Se ao luar

trazemos um caiar

juramos as estrofes sem tempo

que coabitam nas mãos.

 

Se da lua

habitamos a sua lava

hasteamos a alma crepuscular

e aprendemos a modéstia.

 

Se não é estranho

o idioma que nos sagra

é por termos terraplanado as crateras

que infundiam os medos.

#2069

[Crónicas do vírus, DCXLI]

 

Num mergulho pelo medievalismo,

os arcaicos que fogem das seringas

como (diz-se)

o diabo foge da cruz.

9.7.21

Da coragem

O jogo furtivo

aquece nas telhas rubras

da tarde soalheira.

Mandatamos um de nós

para ser teste-de-ferro da provocação,

sem saber se o fazemos 

por preguiça ou por utilidade

 

(alguém sugere 

que não podemos falar todos

ao mesmo tempo).

 

É como deixar a palavra embebida

numa ruela lisérgica

enquanto a tarde se consome

e arrefece nos corpos à sombra.

 

O lugar de procurador de todos nós

fica deserto.

No jogo do empurra

sobra o abismo onde não há vivalma.

Já prefaciava o adágio

sobre cães danados e vozeiros 

e almas estranhamente silenciosas.

#2068

[Crónicas do vírus, DCXL]

 

Manual para lidar com uma peste

(segundo os regentes em funções):

sucessivas camadas de desigualdade

umas em cima das outras. 

8.7.21

O gato comeu-te a língua

O silêncio

não é estrutural. 

 

A bandeira que o traduz

não é um ocaso. 

 

O silêncio

compreende todas as palavras. 

 

As videiras arcanas

habilitam a fala emudecida. 

 

Nem as mãos fundidas nas serranias

devolvem a voz articulada. 

 

O silêncio

é um momento

que se efemeriza. 

 

E nem a cólera

que substitui a maré deitada

distribui uma fala inerente. 

 

A voz prolixa

escuda-se no banal;

empossa o silêncio

na armadura contra o desmedido. 

#2067

[Crónicas do vírus, DCXXXIX]

 

Há sempre novos muros 

que se levantam

por mais que os neguem.

7.7.21

Paragem

Não é por cima do crepúsculo

que amolecem as palavras duras.

Um gesto a jeito,

um amparo no ocaso

e a ajuda de umas mãos gentis

é tudo quanto se precisa

no fingimento da farsa imanente.

Não se diga

que não houve aconselhamento.

No tira teimas

hão de pesar as palavras alvorada.

#2066

[Crónicas do vírus, DCXXXVIII]

 

Este jogo que jogamos

é a cabra-cega

ou a roleta russa?

6.7.21

Travessia

Entardece a boca substantiva

e as luzes desmaiadas

não são embaraço ao olhar visionário.

 

A boca não se feira no ocaso,

penhora diligente das cordas desalmaras

enquanto no avesso da maré se cantam versos. 

 

Não deixo a pele puída pelo sal

e se de redenção se fala

dou o meu caso como perdido. 

 

E se no espelho do futuro

as mãos se voluteiam

o exílio não é o esperanto que ninguém

fala. 

#2065

[Crónicas do vírus, DCXXXVII]

 

Dobra-se a página

e a noite arrasta-se

vagarosa e acasmurrada.

5.7.21

Proeza

Prematuro

o beijo pagão

arrancou os dentes

à decadência.

#2064

[Crónicas do vírus, DCXXXVI]

 

Desta ferrugem

que não nos larga,

um legado.

4.7.21

#2063

[Crónicas do vírus, DCXXXV]

 

As tréguas moram

na deslembrança do dicionário. 

3.7.21

Farsa em ré menor

Assinam os nomes

como animais acossados

o medo a precipitar-se sobre eles

como uma trovoada perene

que desarruma estantes sem livros.

Não podem desenhar uma arritmia

que a pele ensanguentada

disfarça a fala.

Quando percebem

foram reféns de um pesadelo

que açambarcou a parte melhor

da noite. 

#2062

[Crónicas do vírus, DCXXXIV]

 

Jogos

com 

fronteiras.

2.7.21

Colherada de urbanismo

A cidade 

joga-se contra a luz entediada. 

A cidade

joga-se contra a luz

entediada. 

Sente-se enteada

perdida no mapa crepuscular.

A cidade enteada

amanhece desarmada 

e terça os braços 

contra a maré afluente. 

A cidade amuralhada

rebela-se contra os almocreves da dissidência. 

Não espera nada

 

(a não ser

a imodesta condição

de cidade centrípeta

onde todas as pessoas encontram

estuário).

 

A cidade insubordinada

ferve nas jugulares exasperadas

enquanto o sangue entardece

em forma de lava. 

E a cidade arruma as unhas

no espólio de quem se oferece,

acolhedora. 

A cidade madrasta

deixa os moradores no oblívio. 

A cidade iconoclasta dissolveu-se

no enamoramento dos forasteiros. 

A cidade

é só uma manta de retalhos.

#2061

[Crónicas do vírus, DCXXXIII]

 

E sentimos

sem pré-aviso

o corrimão a fugir sob a mão.

1.7.21

Granito

A matéria perdida:

subsídio da alma

que parte em demanda

de inventário. 

A janela do tempo

agiganta-se nas palmas das mãos

entre as cadeiras desarrumadas

e o diligente critério interior

que desorganiza as coisas frívolas. 

Não é de tempestades

que fala o corpo;

é de paisagens emolduradas em frações do sangue

como uma escultura partida em partes. 

Pudesse a memória

lembrar-se do futuro;

pudessem as palavras

ecoar o nunca desdito;

pudessem os muros caiados

ser as páginas de um livro sem autor;

pudessem as noites

traduzir o oblívio 

– e as juras 

deixariam de pertencer aos arrependimentos

absorvidas pela saga 

da simplicidade. 

Não

não me curvo perante a angústia

nem quero saber minhas

as lágrimas que cimentam o chão sem prumo. 

Na espiral dos dias combustíveis

terçam-se as fragilidades

contra os mastins sem rosto. 

Não serão deles os sonhos vindouros. 

Não serão as comezinhas farsas

a transfigurar um céu 

onde apetece arrebatar as estrelas

fazendo do olhar ávido

o suor 

que arrefece os deificados por equívoco. 

Não saio de onde pertenço. 

Não fujo das fraquezas que enriquecem. 

Deixo ao que não sou

a fugaz espada que se rebaixa

na obnóxia condição dos beligerantes. 

Deixo aí que não dou

as preces no idioma sem gramática. 

Em vez de avareza

dou-me à combustão da alma 

que se não gasta

e ao gosto dos oráculos 

que se esqueceram das costuras. 

Em vez da volta

prometo a partida.