21.2.22

#2308

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXV]

 

Legados da peste (196):

A reminiscência

da tela a preto de branco

como marca registada

de um pesadelo.

20.2.22

#2307

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIV]

 

Legados da peste (195):

Tribos em reabilitação

desfilam com a coroa da vaidade

de quem desafiou o infortúnio

e trouxe a glória à lapela.

Azulejaria

Não doa o pregão

na comandita de um perdão

as vozes anotadas no caderno milenar.

 

Não soa o bordão

na vitualha de um trovão

a pele desimunda no soalho exemplar.

 

Não voa o bastão

na heráldica de um quinhão

o sangue esfaimado na penumbra ocular.

 

Não coa o estradão

na posse da sofreguidão

a fala falsa que amansa no dobrar.

#2306

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIII]

 

Legados da peste (194):

Emancipamo-nos de prisões

– a ditada pela peste

e a outra

que vulgarizou sonhos de mandantes.

19.2.22

#2305

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXII]

 

Legados da peste (193):

Processo

de desençaimização

em curso.

#2304

[Crónicas do vírus, DCCCLXXXI]

 

Legados da peste (192):

De feição em feição

rostos devolvidos

à ação.

18.2.22

Tribunal dos arrependidos

Sem vista do palácio

a crueza das mãos vindouras

entre os ramos de árvores desmaiados

e luares que extrapolam do céu sua morada.

Vindimam-se as almas

no amanhecer que poucos conhecem

(dizem).

O granito avulso

concebe a pele graduada

como se passasse por cima dos socalcos

e amansasse o rio desfeiteado 

pela voz dos demónios.

#2303

[Crónicas do vírus, DCCCLXXX]

 

Legados da peste (191):

Só faltou

inventar uma vacina

para mitigar autoritários saídos do armário.

17.2.22

A gramática do corpo

O corpo

fala como metáforas.

 

É uma metáfora:

fingimento do que intui ser

ator banal

bandeira desembainhada

no estuário onde se terça o ocaso.

 

O corpo

ensina o passado.

 

É o passado:

arvore vindicada na usura do tempo

carne venal

tela gasta vertida em ferrugem

no regaço que estilhaça a nostalgia.

 

Um corpo

enquista-se como jura.

 

É uma jura:

contrafação de fabrico estéril

luar que se projeta

baço

abrilhantando o corpo tatuado

que se recebe num altar outro.

#2302

[Crónicas do vírus, DCCCLXXIX]

 

Legados da peste (190):

Só falta decretar

com solenidade à lapela

o dia da meta abismal.

16.2.22

Tempero

Não repousei

no monumento onde se reinventa

a memória. 

 

O verbete da fala

é testemunha

do pesar que se estira na tela baça

como quem reprova o dia crepuscular

em sucessivas estrofes que vêm do osso. 

 

Antes de saber os contornos da manhã

colhi no regaço o sal verificado à janela. 

 

Dizem 

que as palavras precisam de sal

e eu não sou ninguém para duvidar.

#2301

[Crónicas do vírus, DCCCLXXVIII]

 

Legados da peste (189):

Só faltou

inventar uma vacina

para precatar conspirações em barda.

15.2.22

Clorofórmio

Telhado sem noite

por débito do luar

um inverosímil obus 

acamado na pele. 

Adivinha estéril

ou dardo combinado

num óbice pungente

dos oráculos do passado. 

Raiz sem rega

que não medra em caule

a fala sem metáforas

na crueza das árvores nuas. 

Inverno disfarçado de beijos

ou logro não dissimulado

por conta das mentiras vãs

em refrães insistentemente ditos. 

Maré sem regras

nos vocábulos indiferentes

o mosto por revelar

nas bocas à boca do futuro.

#2300

[Crónicas do vírus, DCCCLXXVII]

 

Legados da peste (188):

Os cultores das manhãs radiosas

conjeturam

que saímos aceirados 

da tempestade atravessada. 

14.2.22

Mural

A armadura

disfarça o postiço. 

À mostra

só guerreiros

em plena coreografia

de valentia

centrípetas personagens

vértices da sua singularidade

heróis de si mesmos

detentores dos espelhos

por onde se aferem 

– que os afetem

num quase involuntário lampejo

de imparcialidade

como atletas de alto rendimento

no cotejo com os demais. 

E, contudo,

uma armadura

tão simplesmente honesta

a disfarçar tudo 

o que em público não pode soar

pois às voltas com as marés tumultuosas

ninguém,

ou quase ninguém,

possui a fragilidade 

que a espécie aprendeu a ser.

#2299

[Crónicas do vírus, DCCCLXXVI]

 

Legados da peste (187):

Nem as praças 

perderam o nome

nem nós esquecemos 

do seu paradeiro.

13.2.22

Trinta e três graus centígrados

Nos nomes

            esconde-se

                        a penumbra.

 

Nas sombras

            amanhece

                        o desmedo.

 

Na vergonha

            reside

                        a indulgência.

 

Na manhã

            levantam-se

                        os vultos.

 

No coldre

            estilhaça

                        a maresia.

 

No estuário

            promete-se

                        a confiança.

 

Nas juras

            assobia

                        a mentira.

 

Nas bandeiras

            adormece

                        um hino.

 

Nas mãos

            desfoca-se

                        o labirinto.

 

A quimera

            ornamenta

                        as bocas.

 

A trovoada

            silencia

                        o contrabando.

#2298

[Crónicas do vírus, DCCCLXXV]

 

Legados da peste (186):

Pior

foram os ladários 

de conspirações.

Temperamental

O chão ocre

arremata o entardecer

e o sangue 

espera em maré silenciosa

pelo estatuto diuturno. 

As paredes suadas

confirmam a impenitência. 

Deixa um leve rastilho

na orla da pele

e as palavras confirmam

o temperamental ruído 

que estremece da fala.

12.2.22

#2297

[Crónicas do vírus, DCCCLXXIV]

 

Legados da peste (185):

Num vagar talvez extemporâneo

já se apura o rescaldo

do largo desassossego.

11.2.22

Não pisem as formigas

Não pisem as formigas

não sejam elefantes embuçados

não fujam dos endereços

onde, estiolados, 

os olhos dançam na penumbra

que levita nos interstícios do sangue.

 

Não pisem as formigas

que da avassaladora descura

fica um amargo travo às candeias fracassadas

o mosto que se subleva contra a fermentação

para esperar que tudo seja um pesadelo

e as formigas atravessem a estrada deserta.

Digam

aos que por a estrada passarem

para não serem carteiros de má morada

e num singular instante

não adormecerem a boca nas algemas do silêncio.

 

Não pisem as formigas

que os cardos dispensam elegias

e as árvores que se fundem com o horizonte

dão a luz solar como espelhos de safira.

 

Se puderem

não pisem as formigas 

– sem ser uma instalação em galeria de arte

ou uma metáfora que se alija no vento forte

antes de no mar desaguar a tempestade sem aviso.

 

Não se esqueçam:

não pisem as formigas

porque de hoje para amanhã

os lugares possam ser diferentes

e vocês se achem no da formiga.

#2296

[Crónicas do vírus, DCCCLXXIII]

 

Legados da peste (184):

Untemos as mãos

com as delícias do dia

que o cálice já não traduz

os estilhaços de outrora.

10.2.22

Ciência antropológica ao jantar

O fojo inaugural

verbo

de onde dimana

um extenso, interminável

sepulcro.

 

Não incumbam a injustiça

aos antepassados 

– protestam curadores antropológicos;

vomitem a culpa

nos vindouros que acanalharam a espécie

nas verbenas epistolares da beligerância

na autofagia militante dos peões

porém arquitetada pelos mandantes.

 

O sepulcro

não é pecado original.

É herança

das metamorfoses seladas

na carne assim adulterada

dos que vieram a ser vindouros,

miasmas consumidores da bondade em olvido.

 

Os do fojo inaugural

nem sabiam

o que era um sepulcro.

 

Hoje 

sabemos ser

o verbo proémio

onde nos deitamos

com o abraço viperino 

do quotidiano.

#2295

[Crónicas do vírus, DCCCLXXII]

 

Legados da peste (183):

Já há juras

para um amanhã 

que não demora.

A tolerância como miragem

Só em nossas elucubrações

poderíamos manter

especulativamente

que o nome do candidato estava

ilegível

o que não o tornava

elegível.

9.2.22

Lotaria dos desenganados

A grande tômbola guarda os sortilégios

em papelinhos de virtuosas cores. 

O grande jogo está quase a entrar em cena. 

O enredo sobe os poros da cortina

como se soubesse

que o céu é o teto

(ou o teto é o céu)

encomendando vitrais que se dão à solenidade. 

As pessoas apenas murmuram. 

O sangue

dir-se-ia arrefecido 

corre nas veias invernais

em resgate de uma calma fingida. 

O mestre de cerimónias apresenta-se

ele também não disfarça a tensão. 

Agita-se, a massa,

como se um formigueiro colonizasse seus corpos

e a agitação de um mar tempestuoso

subisse pelos corrimões de onde se desprendem. 

Tudo passa do tempo. 

A função acabou

e a prova é o palco vazio

a plateia também vazia

um deserto que dá fala ao silêncio da solidão. 

Amanhã há mais, 

ouviu-se

em surdina, 

na companhia do ar frio do Inverno

que saiu em socorro da noite. 

na vertigem de um lapso do tempo anestesiado.

#2294

[Crónicas do vírus, DCCCLXXI]

 

Legados da peste (182):

A Primavera prematura,

metáfora 

de uma armadilha disfarçada.

8.2.22

#2293

Legados da peste (181):

Na televisão

uma senhora sentencia:

“houve pandemia, 

mas não houve pandemónio”.

E ninguém lhe perguntou

quanto seria preciso

para decretar o pandemónio.

7.2.22

As pétalas do dia

Contas o dia por pétalas

e no aprumo da manhã

dizes que sondas o luar aferido.

Tiras um oráculo à sorte 

– assim como assim

pouco palco têm os druidas do futuro.

A mortalha do futuro

prende-se ao fumo tóxico

e das marés que hão de ser

espera-se que o sejam

no tempo devido.

Até lá,

contas o dia por pétalas.

#2292

[Crónicas do vírus, DCCCLXIX]

 

Legados da peste (180):

A manhã válida coalesce 

na pele que se aviva

passada a longa noite dos vultos.