[Crónicas do vírus, DCCCLXXXV]
Legados da peste (196):
A reminiscência
da tela a preto de branco
como marca registada
de um pesadelo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXV]
Legados da peste (196):
A reminiscência
da tela a preto de branco
como marca registada
de um pesadelo.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIV]
Legados da peste (195):
Tribos em reabilitação
desfilam com a coroa da vaidade
de quem desafiou o infortúnio
e trouxe a glória à lapela.
Não doa o pregão
na comandita de um perdão
as vozes anotadas no caderno milenar.
Não soa o bordão
na vitualha de um trovão
a pele desimunda no soalho exemplar.
Não voa o bastão
na heráldica de um quinhão
o sangue esfaimado na penumbra ocular.
Não coa o estradão
na posse da sofreguidão
a fala falsa que amansa no dobrar.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXXIII]
Legados da peste (194):
Emancipamo-nos de prisões
– a ditada pela peste
e a outra
que vulgarizou sonhos de mandantes.
Sem vista do palácio
a crueza das mãos vindouras
entre os ramos de árvores desmaiados
e luares que extrapolam do céu sua morada.
Vindimam-se as almas
no amanhecer que poucos conhecem
(dizem).
O granito avulso
concebe a pele graduada
como se passasse por cima dos socalcos
e amansasse o rio desfeiteado
pela voz dos demónios.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXX]
Legados da peste (191):
Só faltou
inventar uma vacina
para mitigar autoritários saídos do armário.
O corpo
fala como metáforas.
É uma metáfora:
fingimento do que intui ser
ator banal
bandeira desembainhada
no estuário onde se terça o ocaso.
O corpo
ensina o passado.
É o passado:
arvore vindicada na usura do tempo
carne venal
tela gasta vertida em ferrugem
no regaço que estilhaça a nostalgia.
Um corpo
enquista-se como jura.
É uma jura:
contrafação de fabrico estéril
luar que se projeta
baço
abrilhantando o corpo tatuado
que se recebe num altar outro.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXIX]
Legados da peste (190):
Só falta decretar
com solenidade à lapela
o dia da meta abismal.
Não repousei
no monumento onde se reinventa
a memória.
O verbete da fala
é testemunha
do pesar que se estira na tela baça
como quem reprova o dia crepuscular
em sucessivas estrofes que vêm do osso.
Antes de saber os contornos da manhã
colhi no regaço o sal verificado à janela.
Dizem
que as palavras precisam de sal
e eu não sou ninguém para duvidar.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXVIII]
Legados da peste (189):
Só faltou
inventar uma vacina
para precatar conspirações em barda.
Telhado sem noite
por débito do luar
um inverosímil obus
acamado na pele.
Adivinha estéril
ou dardo combinado
num óbice pungente
dos oráculos do passado.
Raiz sem rega
que não medra em caule
a fala sem metáforas
na crueza das árvores nuas.
Inverno disfarçado de beijos
ou logro não dissimulado
por conta das mentiras vãs
em refrães insistentemente ditos.
Maré sem regras
nos vocábulos indiferentes
o mosto por revelar
nas bocas à boca do futuro.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXVII]
Legados da peste (188):
Os cultores das manhãs radiosas
conjeturam
que saímos aceirados
da tempestade atravessada.
A armadura
disfarça o postiço.
À mostra
só guerreiros
em plena coreografia
de valentia
centrípetas personagens
vértices da sua singularidade
heróis de si mesmos
detentores dos espelhos
por onde se aferem
– que os afetem
num quase involuntário lampejo
de imparcialidade
como atletas de alto rendimento
no cotejo com os demais.
E, contudo,
uma armadura
tão simplesmente honesta
a disfarçar tudo
o que em público não pode soar
pois às voltas com as marés tumultuosas
ninguém,
ou quase ninguém,
possui a fragilidade
que a espécie aprendeu a ser.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXVI]
Legados da peste (187):
Nem as praças
perderam o nome
nem nós esquecemos
do seu paradeiro.
Nos nomes
esconde-se
a penumbra.
Nas sombras
amanhece
o desmedo.
Na vergonha
reside
a indulgência.
Na manhã
levantam-se
os vultos.
No coldre
estilhaça
a maresia.
No estuário
promete-se
a confiança.
Nas juras
assobia
a mentira.
Nas bandeiras
adormece
um hino.
Nas mãos
desfoca-se
o labirinto.
A quimera
ornamenta
as bocas.
A trovoada
silencia
o contrabando.
O chão ocre
arremata o entardecer
e o sangue
espera em maré silenciosa
pelo estatuto diuturno.
As paredes suadas
confirmam a impenitência.
Deixa um leve rastilho
na orla da pele
e as palavras confirmam
o temperamental ruído
que estremece da fala.
Não pisem as formigas
não sejam elefantes embuçados
não fujam dos endereços
onde, estiolados,
os olhos dançam na penumbra
que levita nos interstícios do sangue.
Não pisem as formigas
que da avassaladora descura
fica um amargo travo às candeias fracassadas
o mosto que se subleva contra a fermentação
para esperar que tudo seja um pesadelo
e as formigas atravessem a estrada deserta.
Digam
aos que por a estrada passarem
para não serem carteiros de má morada
e num singular instante
não adormecerem a boca nas algemas do silêncio.
Não pisem as formigas
que os cardos dispensam elegias
e as árvores que se fundem com o horizonte
dão a luz solar como espelhos de safira.
Se puderem
não pisem as formigas
– sem ser uma instalação em galeria de arte
ou uma metáfora que se alija no vento forte
antes de no mar desaguar a tempestade sem aviso.
Não se esqueçam:
não pisem as formigas
porque de hoje para amanhã
os lugares possam ser diferentes
e vocês se achem no da formiga.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXIII]
Legados da peste (184):
Untemos as mãos
com as delícias do dia
que o cálice já não traduz
os estilhaços de outrora.
O fojo inaugural
verbo
de onde dimana
um extenso, interminável
sepulcro.
Não incumbam a injustiça
aos antepassados
– protestam curadores antropológicos;
vomitem a culpa
nos vindouros que acanalharam a espécie
nas verbenas epistolares da beligerância
na autofagia militante dos peões
porém arquitetada pelos mandantes.
O sepulcro
não é pecado original.
É herança
das metamorfoses seladas
na carne assim adulterada
dos que vieram a ser vindouros,
miasmas consumidores da bondade em olvido.
Os do fojo inaugural
nem sabiam
o que era um sepulcro.
Hoje
sabemos ser
o verbo proémio
onde nos deitamos
com o abraço viperino
do quotidiano.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXII]
Legados da peste (183):
Já há juras
para um amanhã
que não demora.
Só em nossas elucubrações
poderíamos manter
especulativamente
que o nome do candidato estava
ilegível
o que não o tornava
elegível.
A grande tômbola guarda os sortilégios
em papelinhos de virtuosas cores.
O grande jogo está quase a entrar em cena.
O enredo sobe os poros da cortina
como se soubesse
que o céu é o teto
(ou o teto é o céu)
encomendando vitrais que se dão à solenidade.
As pessoas apenas murmuram.
O sangue
dir-se-ia arrefecido
corre nas veias invernais
em resgate de uma calma fingida.
O mestre de cerimónias apresenta-se
ele também não disfarça a tensão.
Agita-se, a massa,
como se um formigueiro colonizasse seus corpos
e a agitação de um mar tempestuoso
subisse pelos corrimões de onde se desprendem.
Tudo passa do tempo.
A função acabou
e a prova é o palco vazio
a plateia também vazia
um deserto que dá fala ao silêncio da solidão.
Amanhã há mais,
ouviu-se
em surdina,
na companhia do ar frio do Inverno
que saiu em socorro da noite.
na vertigem de um lapso do tempo anestesiado.
[Crónicas do vírus, DCCCLXXI]
Legados da peste (182):
A Primavera prematura,
metáfora
de uma armadilha disfarçada.
Legados da peste (181):
Na televisão
uma senhora sentencia:
“houve pandemia,
mas não houve pandemónio”.
E ninguém lhe perguntou
quanto seria preciso
para decretar o pandemónio.
Contas o dia por pétalas
e no aprumo da manhã
dizes que sondas o luar aferido.
Tiras um oráculo à sorte
– assim como assim
pouco palco têm os druidas do futuro.
A mortalha do futuro
prende-se ao fumo tóxico
e das marés que hão de ser
espera-se que o sejam
no tempo devido.
Até lá,
contas o dia por pétalas.
[Crónicas do vírus, DCCCLXIX]
Legados da peste (180):
A manhã válida coalesce
na pele que se aviva
passada a longa noite dos vultos.