10.9.22

Homenagem

Se é da fortuna

o relógio andante

gabo-me da safra

na colheita da medida

do tempo. 

 

Se é do acaso

ou da temperança 

dos dias sucessivos

não tenho modo

de atestar. 

 

Se é das mãos

que se metem, 

fundas,

no chão húmido

em demanda da fortuna

podem testemunhas válidas

certificar em boa memória;

e se é do porvir

que despendo o tempo servil

deixando ao proveito do olvido

o denso passado em lei de bronze

inscrevo no percentil das hipóteses

o rosto parcimonioso

que espera 

sem denunciar o destempo de outros

o poema vivo que espreita

sobre a varanda que deixa ver

o esvoaçar dos dias sucessivos. 

#2520

Rasgo

a profecia rarefeita

antes que seja despojo

da minha própria circunstância. 

9.9.22

Injustiças indocumentadas (16)

Não se aleguem

barrigas de misérias,

não vá cair o libelo

de body shaming.

#2519

[Continuação do #2518 por outras palavras]

 

Ah!

se ao menos

o Instituto Nacional de Estatística

fosse amestrado.

#2518

O Instituto Nacional de Estatística

teimosamente

bolça números ingratos,

números que causam desprazer nos regentes.

 

[Inspirado em Auden]

8.9.22

Sobre a inutilidade dos arrependimentos

Em reparações convulsivas,

os arrependimentos.

Não choram as lágrimas

ausentes:

fingem

no fingimento irresponsável

de quem é intencionalmente farsante

do passado. 

No fim do ciclo

tudo fica por reparar,

pese embora convicção usada,

pois o irreparável apenas se adestra

com o jugo do futuro.

#2517

Neste matadouro colossal

que é o teatro 

onde somos matéria pública

não há direito a segundas hipóteses.

7.9.22

Elixir

Às páginas do calendário

penhores máximos da crueza do tempo:

antes desfocadas,

vasos sanguíneos por onde desfila

o tremendo apetite que esconjura 

o medo. 

 

Dizemos

em brandos sinais

que um teatro herético que absorve a geografia

a abundante lógica sem formalização

ou apenas 

a telúrica palavra

que abranda as dores que destilam o corpo. 

 

As ideias passeiam

insubmissas

no copo que recebe os lábios em ebulição:

parecem folhas outonais

desarrumadas 

por um vento que entoa a tempestade

vão e veem no indeclarado óbito dos soezes

desautorizados artesãos que esculpem

o céu perenemente plúmbeo. 

 

Tomo o dia

como pressentimento de mim

e julgo

com as armas retóricas que não tenho

as relíquias que esperam pela minha feição. 

 

Se as mãos 

não servem para agarrar o dia

antes nos destinem a proibição do modo

o intempestivo flagelar que lembra,

com a persuasão da dor que de nós se abraça,

que somos filhos pródigos 

da vontade que se agiganta 

nos poros suados.

Depósito a prazo

O ocaso 

não é a fala do medo

é a véspera da glória 

que se evade dos destroços.

#2516

Nos rostos amanhecidos

o rasto de vulcões

silenciados.

Injustiças indocumentadas (15)

Contrainformação

– e a informação 

não retalia?

6.9.22

As vidas sem biografia (apostilha do anonimato)

Quem sobra da catástrofe silenciosa

quem se opõe à vertigem dos argutos

da perseguição dos rostos irreferendáveis

dos povoadores de ideias sem paternidade?

As laranjas secas 

fruem nas planícies decadentes.

Os latidos rompem a placidez da madrugada

entoados por sacerdotes sem séquito

em alvoroço 

pela ausência das estatuárias credenciais

em vez da orfandade que os segue.

Sobram do vento futuro

as profecias que não cobram rostos

a matéria puída dos filamentos frágeis

que são os vasos capilares que mantêm

vidas sem biografia.  

#2515

O gatilho

leva sempre a direção errada

a menos que esteja

calado.

5.9.22

A janela

A janela não é nada

se não se abrir

para uma rua formosa.

 

A janela não é nada

se corromper o silêncio.

 

A janela

não é nada.

 

A não ser

que esbraceje a manhã sumptuosa

e no teatro fundacional

perfume a casa com o aroma 

inaugural.

#2514

Fujo do coro

e não coro

que a cor do coro

não é a cor

por que me ancoro.

#2513

Ninguém vai preso

por ter cão

ou pela sua ausência.

Injustiças indocumentadas (14)

Um nó,

górdio.

4.9.22

#2512

A solidão

não escolhe

os solitários.

3.9.22

#2511

Realojas o medo,

a franquia pesada

do futuro.

Injustiças indocumentadas (13)

Maus lençóis

porque

más são as camas.

2.9.22

Antropologia das bruxas

És uma bruxa,

ou és uma bruxa,

Derruído pelo abismo do tempo?

Uma bruxa que resfolega o mirante

sucedâneo de morteiro andante

morteiro mortal

            morteiro          mortal

 

(como se a musicalidade das sílabas

se abraçasse numa tela hedionda

onde está vertida a venalidade da espécie).

 

Bruxas

somos todos?

Se demandássemos um compasso,

um compasso comprovado

pelas entidades regulamentadoras,

diria de nós o compasso

que somos bruxas,

depravadas na exaustão que rima

com autofagia.

 

Espantam-se até os espantalhos,

primos diletos de todas as bruxas,

avoengos das rezes lisérgicas

que compõem a paisagem sem nome.

Pedem

que não se sonegue

a curadoria dos estultos.

#2510

Dêem-me

da vitamina mais forte

a poesia 

de toda a forma e feitio.

1.9.22

Castelo

As manhãs correm no seu tempo. 

Cada feixe de luz

devora a letargia herdada da noite. 

Não são os olhos estremunhados

que depõem o dia emergente. 

De cada vez 

que as veias incendeiam o sangue

abre-se a escotilha por onde espreitam

os mais ácidos marinheiros 

da vida. 

Não se intimida o espírito

com os laivos de apatia somados ao tempo;

o fogo que levita no magma

cuida dos preparos do dia

inventariando-o como porta-voz

de um saber viver 

que não se aprende nos compêndios.

#2509

A outra margem

não está fora de mim:

a mim, a ponte fundacional.

31.8.22

Bruma

Uma fotografia

arrependimento venal

tirania da memória

bebida no sangue diuturno

nas danças demenciais

nos dias furtivos 

escondidos da História.

#2508

Desarmadilhado,

o segredo ficou nu

à frente dos olhos.

30.8.22

O prazo não é um dilema

A poeira não sobe à boca:

não está vento de feição

e neste cais 

as paredes são fortaleza. 

Os tumultos desfazem-se na maré

elidindo os sobressaltos com escritura

dissolvidos num nada sem vestígios por dentro. 

Sem os olhos embaciados

a transgressão esconjura-se

e ficam por contar as centelhas venais

contra as miosótis promitentes

e as páginas esplêndidas que amanhecem

a despeito dos maus prognósticos. 

Os rostos 

amontoam-se nas esquinas da memória. 

Não falam:

passeiam as suas expressões sintomáticas

com a ajuda de sucessivas camadas de silêncio,

a proverbial consumição das palavras vãs. 

As folhas das árvores ainda não estão caducas. 

Resistem

como só os espíritos enraizados sabem resistir. 

Daqui a uns meses

quando as folhas cadáveres derem à estampa

saber-se-á da linhagem das gentes

se conservam a volumetria de deuses improváveis

ou se capitulam

na sincera decadência da sua fragilidade.

#2507

Na pele sem mapa

a boca extática,

tatuadora.

29.8.22

Estrelas furtivas

Um astrolábio rudimentar

como oráculo:

se fossem visíveis

as constelações apareciam 

com os nomes de flores

e os nomes outros seriam

imitação das constelações.

 

Dizias:

não quero outro paradeiro

a não ser as tuas mãos desordeiras

e eu concordava;

os molhos de jasmim 

cuidavam da minha estultícia,

a estultícia 

(julgava eu)

irremediável,

à mercê do teu patronato diligente

em forma de dissolução desse mal.

 

Teríamos estrelas de atalaia

no intenso precipício acobreado

o breve flúmen pendido no fundo

quase renunciável

quase martirizado pelo estio a desoras.

 

Sabes:

remexi a terra emoliente com as mãos nuas,

nem parece meu, eu sei,

e de lá trouxe os miríficos saberes

que não se cuidam em compêndios vetustos.

 

Se as constelações arcarem os nomes de flores

sabê-las-ei de cor

mesmo nada sabendo sobre as flores

que têm esses nomes.

Sossegas-me

contemplativamente juntando ao havido

que esses são nomes furtivos

como se pertencessem à curadoria

das estrelas-cadentes.

#2506

A lua

que se quer

(outra vez)

à légua de um sonho.