30.11.20

#1818

[Crónicas do vírus, CCCXC]

 

A cortina

teimosamente vertida

às costas dos humanamente

frágeis.

29.11.20

#1817

[Crónicas do vírus, CCCLXXXIX]

 

Trigonometria

da melancolia.

28.11.20

#1816

[Crónicas do vírus, CCCLXXXIII]

 

A dissimulação

deixou de ser perseguida

pelos que pastoreiam

os bons costumes.

27.11.20

Niilismo

Não é 

a erma vindima

o magma furtivo

o emblema da ira

a seráfica encenação.

 

Não é

o adiamento provisório

as colcheias desamestradas

o vínculo sem furor

os degraus sem destino.

 

Não é

a compensação sem paradeiro

a eira banal

o verbo defenestrado

o rosto desfardado.

 

Não é

o tiro avulso

o penhor prometido

a pulsão meteórica

a justaposição de termos.

 

Não é

o não saber na casa

o não despojar o medo

o não fugir sem delação

o não arrumar as candeias gastas.

 

Não é

desaproveitar o ontem

reter a lágrima no peito

insultar o próprio nome

legar um nada cheio de tudo.

#1815

[Crónicas do vírus, CCCLXXXII]

 

Tão bem lançados íamos

veio este freio luciferino

trazer o mosto do retrocesso.

26.11.20

Adivinha

Que papel regido

serve ao obstáculo penhor?

As juras avessam o lugar

em servis comendas

que não têm cabimento.

Às manhãs consentidas

devolve-se a argamassa

o solene filamento que atravessa

o sangue apurado.

Se ao menos

a chuva viesse temporã

e as matilhas não angariassem

o medo

a maré seria sementeira

da filigrana avivada nos dedos.

#1814

[Crónicas do vírus, CCCLXXXI]

 

Somos

uma errata 

em movimento.

25.11.20

Entrelinhas

O que sabemos

das entrelinhas:

os nós invisíveis

que azedam a boca

e nós,

seus possíveis hermeneutas,

um vesúvio inteiro

a aguardar por exploração. 

 

O que tiramos

das entrelinhas:

o mosto indecifrável

semântica partida nas vírgulas

como se fosse fratura exposta

e do osso se visse apenas

o gesso. 

 

O que devemos

às entrelinhas:

o cofre forte da alma

o penteado maiêutico da palavra

a recusa do lugar-comum

no lugar reinventado

onde reinventadas 

se lobrigam as palavras. 

 

Por dentro

das entrelinhas.  

#1813

[Crónicas do vírus, CCCLXXX]

 

Somos, talvez,

uma farsa

na meação de uma grandeza

estilhaçada. 

24.11.20

Fundo perdido

Afundo, 

perdido,

o fundo perdido

antes que,

no fundo,

perdido seja o fundo

nos fundilhos

de um outro qualquer.

 

O fundo pedido

somado à funda tutelar

fundeia na pedra perdida

sem fundo à vista

na perdição da avareza

no sem fundo do pedinte perdido.

 

O fundo

perdido

em fundo,

pano de fundo,

autópsia de um caso 

perdido.

 

Pois 

aos casos em perdição

amestra-se o fundo sem fundo

perdido em tangente 

com os de perdida linhagem.

#1812

[Crónicas do vírus, CCCLXXIX]

 

A promiscuidade,

abatida

por decreto.

#1811

Crónicas do vírus, CCCLXXVIII]

 

Ainda ninguém se lembrou

de chamar a estes tempos

silly season

23.11.20

Propositado

Acerca da polémica:

estava divinal

o vinho servido

e os preparos amesendados

assim como a companhia. 

Falou-se 

da imprevisibilidade

da contingência em auge

contra os epílogos sedutores

da arte reduzida a um escol

dos beneplácitos dos serventuários

e de como estes se tornam

invisíveis suseranos

(oh! virtudes do regime magnânimo). 

E sobre a polémica:

divagamos sob o peso da maresia

até que o ocaso abriu as pestanas

e sob as flores sentadas à mesa

fizemos um poema.

#1810

[Crónicas do vírus, CCCLXXVII]

 

Na enseada da impaciência

onde se esgotaram

os sonhos de que perdemos memória.

22.11.20

#1809

[Crónicas do vírus, CCCLXXVI]

 

“Desta vez”

estamos convencidos

da nossa imensa fragilidade?

#1808

[Crónicas do vírus, CCCLXXV]

 

“Desta vez”

a conspiração

é-nos exterior?

#1807

[Crónicas do vírus, CCCLXXIV]

 

“Desta vez”

também fomos

os nossos carrascos?

21.11.20

#1806

[Crónicas do vírus, CCCLXXIII]

 

A quantas milhas estamos

da prescrição do bruxedo?

20.11.20

A demissão dos provérbios

Na charneca dos provérbios

mando calafetar o país

só para perceber

se consigo descolonizar

o lugar-comum.

No provérbio desalmado

extingue-se

a alma do dizedor

desfeita a um xis com valor de zero.

Falta saber

se no país dos provérbios

a alcatifa é medida bastante

para balbuciar os versos,

recanto existencial 

onde úbere tem provimento.

Na charneira entre duas fronteiras

abonado o inverosímil esteta

no esgotamento dos provérbios.

Até que sobre

a nova gramática

que dispensa bandeira a tiracolo.

#1805

[Crónicas do vírus, CCCLXXII]

 

(Desaprendizagem)

Deixámos

de saber fazer

com o que está

a acontecer?

19.11.20

Cruzes, credo!

Mandatário das privações

cozinhava em lume brando

a branda água do deserto

e sentia-se o coração do oásis

um feixe de luz 

nas entrelinhas da aridez.

 

Povoava as arestas insubmissas.

Talvez

um eufemismo para outra coisa

à falta de bravura para galvanizar o verbo

e fraturar o marasmo da pudicícia.

 

Afinal 

as privações eram pretexto.

Uma lança furtiva

na argamassa dos óbices

o contraditório do antagonismo

surfando

em velas arrevesadas que se estreitavam

contra o vento estrepitoso.

 

A vau

atravessava a intempérie

e dava-se o milagre

de entrar no cais e seca estar a roupa.

Falava-se de um entretenimento:

fingia-se,

fingia-se a rodos

e até o fingimento entrava na aura

do fingimento,

sobretudo aos domingos.

 

Que se desembaraçassem os lugares-comuns

os oitentas em metamorfose de oitos

a verbena ao luar a seguir à alvorada

o patine em letra morta

à espera de preenchimento dos espaços

a coisa iletrada enxertada ao balcão.

Que fujam para os japões

os funcionários diligentes

 

(que odeiam que lhes chamem

colaboradores)

 

e lá ensaquem, 

com a mestria dos puros,

a melancolia sem geografia a preceito.

 

Às vezes

o inventário começa 

nos limites que somos.

Imprevisível

o ocaso antecipa-se numa data

indeterminada.

 

De que adianta

assobiar para o ar

se o ar já está perdido?

#1804

[Crónicas do vírus, CCCLXXI]

 

A pedagogia do silêncio

como prevenção.

(E castração?) 

18.11.20

Jackpot

“Um jackpot”,

dizias.

 

Pelo meio

o nevoeiro assobiava

adiando a manhã

enquanto no banco do jardim

as esperas dançavam nos rostos

melancólicos.

 

Tu não esperavas:

teu era o amanhã

que nunca deixavas chegar a sê-lo.

“Se tivesse conta-quilómetros

andava sempre em excesso de velocidade”,

rasuravas as costuras do tempo poltrão

vertendo nele a tua bravura

um sentido próprio de boémia

que fazia do tempo uma raridade.

 

(Outros disso diriam

ser a extinção da lucidez.)

 

“Um jackpot”,

dizias:

e combinavas com os tutores do amanhã

a aposta de como o contarias,

amanhã,

ao ontem desapalavrado.

 

“Para mim

os minutos têm 

mesmo 

sessenta segundos”. 

#1803

[Crónicas do vírus, CCCLXX]

 

(Ergástulo das máscaras)

Somos

todos estranhos

uns para os outros.

#1802

[Crónicas do vírus, CCCLXIX]

 

De vacina em riste

antes que a poeira

seja nossa pele.

17.11.20

Folhas caducas

Azedou

o dia azedo

e no seu avesso

tirámos à sorte uma cor

a sintaxe da heurística manhã

derramando o verbo

cingindo o rosto

e no seu lugar

o peito pleno

amou.

#1801

[Crónicas do vírus, CCCLXVIII]

 

Quem imaginou

que o exílio

era em casa?

16.11.20

Enxertia

Desenho o perímetro da costa

com os dedos entrelaçados

ao vento de estibordo.

Contenho os limites da paisagem

no rebordo das mãos.

O vento alisa,

superficialmente,

o cabelo testemunha.

Não sei das artes de navegar.

Alguém cuida da função

por mim.

Não lhe sei do rosto

nem sei se as mãos são confiáveis.

Não importa.

Suspeito que o mapa

sairá paradigmático

um portentoso achado na cartografia

enquanto a da alma se treslê

em figuras disformes

que se enxertam numa banda desenhada

enquanto estrofes sem vinagre

se derramam nas páginas 

que só existem nas varandas do pensamento.

Um sobressalto bule com o barco

e mal me disponho para a simetria.

Oxalá não fosse a validade das almas

o altar menosprezado

onde nem as marés se arpoam.

De mim dou o possível

que aos da argamassa da ufania

deixo o díodo do impossível.

De mim

há de vir ao mundo

a maresia retratada nos mapas

cinzelados por meus dedos desaprisionados.

#1800

[Crónicas do vírus, CCCLXVII]

 

A cidade despida

num domingo vespertino;

ou: o oráculo do apocalipse.

15.11.20

Lying condition

Here is where

the lie lies

whereas

all lies lie

amongst

the lies laying 

under the mist

of a broad lie that lies

against the odds.