13.12.22

Ocultação

O areal 

era testemunha do mar

que lhe arrancava pedaços do rosto

a meio da acrimoniosa maré. 

No vento

dir-se-ia cavalgarem, 

escondidos,

vultos empenhados em contrariar a sorte. 

A coligação entre o mar e o vento

castigava o lugar

dando-se ao Inverno

dando a seu nome toda a propriedade. 

 

Não se diga 

que não houve vítimas:

pescadores desavisados

sacerdotes desempossados

escrivães de matéria baça

uns quantos senhores de aristocrática mentira

outros que passaram rente ao esbulho.

Nenhum diga

que não foi sujeito de aviso

e que as estrelas caiadas se deitaram 

num musgo inválido

mesmo a preceito,

mesmo.

Injustiças indocumentadas (50)

Não pode 

ser mau o tempo

em tempo de estiagem.

#2616

O abotoado sorriso

a esmo

mesmo que seja Inverno.

12.12.22

Sem absolvição

Não se inaugure o salvo-conduto

que não há tanta renúncia a ditar

perante os degraus onde transitam

interiores consumições.

 

Absolvição

se houvesse culpa;

ou

mesmo sendo a culpa reconhecida

a prestação de contas delimita-se

ao território do ser.

Não cuidem da absolvição

se ela não foi impetrada. 

 

Fujo dos braços generosos

dos juízes maneáveis

que se amesquinham nas brandas

de onde tem idioma 

a complacência.

Fujo

pois não meti requerimento

para a complacência

e menos ainda pretendo

que me salvem dos piores infernos

por meu será o padecimento

se deles vier a ser inquilino.

#2615

Se ao menos

pudesse levar a nau

até ao epílogo da cordilheira.

11.12.22

Injustiças indocumentadas (49)

Por tanto andar

nas bocas do mundo

caiu na má graça

dos cidadãos em geral.

#2614

Abstração ou obstrução

sempre os soubemos

tese e antítese.

#2613

O nascer do guia.

A nascer

o guia. 

Matéria fundente

Desde o dia feminino

uma glicínia oferece as pétalas

perfumam a cama de folhas outonais. 

A curvatura do corpo

fermenta na rebeldia dos elementos

como se apenas contassem

as paisagens retidas no olhar imorredoiro. 

E depois

deixamos em palavras

o nosso festim

os beijos que as bocas incensaram

os corpos em forma de dádiva

semântica de desligamento

uma fábrica com a mão-de-obra insubmissa.

Esta é a fratura exposta

sem gesso como remedeio:

exposta

por não se esconder de segredos

e neles se tornar o magma fundo

dos próprios segredos. 

Não contamos com prazos de validade

nem somos candidatos à angústia. 

Os medos contam como candeias:

à sua custa

superamos as cordilheiras remotas

soubermos ser 

poetas antes do próprio poema. 

10.12.22

#2612

Em negociações

entre a apatia da manhã

e a extinção do entardecer.

9.12.22

Pivot

É a fulgurante incisão dos desacontecimentos

como se fosse 

o desapertar de uma camisa-de-forças

a lava intempestiva que fala com a boca do vulcão

ou a cordilheira que se agiganta no espaço do olhar:

em tudo 

espectros demissionários

vultos às voltas com insónias

extintos, enfim, 

com a água retirada de uma boca de incêndio,

as mordaças que calaram o passado

os fogos ateados à pele arrefecida

os palcos feitos de sobressaltos

os hotéis onde moravam pesadelos mordazes

todas as vendas que condenavam ao silêncio

e as cortinas onde desmaiava 

o entendimento de tudo. 

Agora

só contam os agoras retesados

num leilão sem agenda

a boca que precisa das palavras irrefreáveis

o teatro onde se jogam as farsas sem máscara

contra os mendazes que enchem a boca de verdade

(em mentiras elevadas ao quadrado)

os vocais embaixadores de causas avulsas

que escrevem leis de bronze em camas de xisto,

todavia,

em tinta sem ser impermeável

que se abate com as chuvas inaugurais. 

Este é o desacontecimento

a desfiguração do mundo teimosamente ideal

reduzido à sua imensa fragilidade,

enfim,

ao reconhecimento da sua escondida fortaleza. 

Sem aspas nem metáforas a arredondar as palavras

sem compensações por perdas que são pretextos

sem o exaurido lugar em que todos procuram

habitar um lugar 

que não é seu. 

Injustiças indocumentadas (48)

Antes 

uma carga d’água

do que

uma carga d’ombro. 

#2611

O dicionário

não trata das almas

e essa é uma culpa

que não é do dicionário.

8.12.22

Vindima

Bebemos as mãos;

as mãos que tudo têm para contar

elas, 

servidas na fábrica do entendimento

em que tudo se anestesia

em perguntas 

que levantam as cores do céu. 

Tu dizes:

dou-te o meu perfume

nos versos que as mãos desenham 

no teu corpo. 

Eu esperava. 

Fingia dormir

enquanto as tuas mãos

faziam do meu corpo um mapa

e não podia fingir

não podia fingir

que a madrugada não fala ao ouvido da noite

nem as pétalas vertidas pelos teus dedos

eram como a cura 

para o que precisasse de cura. 

Lembrava 

os novembros desmaiados,

como eram compensados

pelo teu sussurro que me cercava

como se fosse abraçado por uma ideia de ti

pois de ti 

sabia de cor a cor que havia por saber

os tremeluzentes dedos ungindo as palavras

com o prazer irrenunciável;

o prazer de nós sabermos 

à distância das mãos

e por elas falarmos

as estrofes de poemas apenas guardados

na memória.

#2610

A beata

protesta contra a beata

por o chão

não ser lugar

para a beata estar.

7.12.22

Naufrágio sem socorro

Sem meias medidas

o naufrágio estrepitoso

açambarca o ocaso abreviado. 

Não se compensam as falas arrependidas

autênticos bálsamos de farsas

todavia, 

farsas legítimas;

pois se tudo não passa

de um teatro imenso

cobrindo todas as latitudes e longitudes

traduzindo os verbos venais

por semântica com direito a panteão. 

 

O que dizer dos mares arrevesados

que industriam o naufrágio?

Que dizer dos náufragos

pois se ninguém se convoca

para o papel de vítima?

 

A indulgência atravessa os corpos

deita-os na rota das culpas sem autor 

 

– ao contrário da cozinha de autor

esse terrível modismo

em que o autor se apega ao narcisismo. 

 

A indulgência

é a pior traição 

de que podemos ser avalistas;

não remedeia naufrágios

nem sumptuosas e, porém, risíveis

exibições de candidatos a arcebispos da idiotia

pese embora a idolatria

pese embora

as tentaculares redenções

que não passam de disfarces. 

Que os vultos perenes 

não descolonizem o horizonte. 

Se a manhã não fosse infernalmente crepuscular

seríamos autómatos da indiferença

sitiados numa enseada sem saída

condenados a ruminar 

entre as perdes corrompidas de um labirinto. 

 

No fundo

estaríamos no fundo

sem sabermos;

que é a geografia própria

de quem foi abraçado 

pela pérfida sereia

do naufrágio.

#2609

O pivot do telejornal

a jogar à patela

com os acasos do mundo.

6.12.22

Monumento

Risco as farsas

os mapas amarrotados

as vozes que contrariam o silêncio

e vou 

pelas montanhas intrépidas

saltando os ribeiros que se agigantam

prometendo os dias sem crepúsculo

 

o miradouro a subir

desde as minhas mãos. 

 

E não deixo o sono vingar

não quero ser 

colónia de sonhos avulsos

simples matéria passiva à mercê dos sonhos

não deixo

que os atónitos passageiros da cidade

se amordacem na matéria invisível 

ou que sejam apenas

 

peões

meros peões

 

numa aritmética acima das suas possibilidades

para se tornarem irrisórios números

condenados à decadência antes do tempo. 

 

Arrisco

que não são profecias

estas aqui costuradas com a saliva da rebeldia

apenas

 

um desejo que se deseja

 

na primeira pessoa 

do singular. 

#2608

O Outono na Rússia

é mais Inverno

do que o Inverno 

em Portugal.

5.12.22

O adro das intenções

Pelo fundo da garrafa

o pináculo da audácia

numa cordilheira de juras.

Amedronta-se o medo:

nem vulcões irascíveis

lobrigam o rapto do sono

nem eles

fermentam o desassossego militante.

Amedrontem-se

as estrelas cadentes

os astronautas de galáxias amancebadas

os regentes garbosos:

pelo fundo da garrafa,

que é onde sobra a valentia pura,

os dias chegam ao peito

e são eles que se afeiçoam

à lava incandescente

imparável

que sobe à boca

contra as vendas amestradas

os emissários do silêncio

os procuradores da tirania arrevesada.

Até que o fundo da garrafa

traduza a inteireza

apenas a inteireza

que não capitula 

às reticências oxigenadas

pelos apóstatas da liberdade

que não desaprendem de cuspir

no direito a ser 

que é o ser dos outros.

Injustiças indocumentadas (47)

A idade média

não é 

uma média de idade.

#2607

O suor

que fala pela alma

o idioma embainhado

no sacrifício.

4.12.22

Testamento

Testamentário 

da vontade dos deuses

vestia o oráculo sem flores a ornamentá-lo

e murmurava

no cio do dia

os versos saídos de sonhos

os versos

que outrora ficavam 

reféns da desmemória.

#2606

O artesanal sentir

em vez 

do malquisto penhor

ao irmos de visita

a mercados larvares.

 

[Dirás não ao ominoso capitalismo]

3.12.22

#2605

O elevador da glória

é puramente

antidemocrático.

2.12.22

Fogo de artifício

Os segredos

ouviam-se em sessões clandestinas

quando todos estavam a dormir

ou em lugares adivinhados pela ausência. 

Os segredos

se viessem a ser contados

estariam por conta de catástrofes

por não irrisórias bombas crepusculares. 

Os segredos

são facas afiadas sobre o futuro

penhores que absorvem o oxigénio

areias movediças só depois de lá entrados. 

 

Se sumissem os segredos

o que seria das mentiras?

E se fosse declarada extinta a mentira

            

(que o seria

certamente

pelos maiores mitómanos)

 

deixariam os diligentes curadores da verdade

de falarem seu nome?

#2604

Nem as fronteiras

travam o nómada.

#2603

Logo em menino

queria ser arauto da moral.

Ninguém lhe explicou

que estava condenado a fracassar.

1.12.22

Injustiças indocumentadas (46)

Quem se ri

a partir um coco?

#2602

Benzina, dantes

cripto moedas, agora.

(E depois, amanhã?)