30.9.18

Desagravo

Deportado
na linha baixa do horizonte
onde se desembainham cuidados
na súplica surda de quem os quer.
A terapia de antanho
não tem réplica,
apesar da ausente serventia:
protestam-se lágrimas, 
retidas,
e o colóquio pede um adeus.
Sentinela,
o desagravo milita a favor.

#742

Passagem de nível;
e quem o não tem?

29.9.18

#741

Deixa a interjeição em sossego.
A frase não precisa de tumulto.

28.9.18

#740

Tão carregado de razão
com a corcunda até ao chão.

#739

(Variação do #738)

No silêncio de chumbo
a voz consentida
pelos tutores das almas.

Sublime


De noite
sou o suor 
dos meus sonhos. 
A transparência
de paisagens sem contornos.
O bálsamo sem dores. 
Confio
nos versos avulsos
no velado sono. 

De noite
não respondo
aos ascetas encomendados. 
Retiro
as vírgulas
dos nós no meio das orações.
Retiro
todo o agravo
nas sílabas à boca levadas. 

De noite
levedo o pensamento.
Sem ónus nem equação. 
Nada hipoteco
na véspera de o ser
a conselho da maré promitente. 
E junto
com as mãos já não trémulas
as pilhas de páginas amontoadas.

De noite
refrigério do silêncio
arremato a doçura da manhã.

#738

Hino do moderno Torquemada:
tomara o maior tesouro
fosse o silêncio de muitos
ser sua voz.

27.9.18

Pedestal

Pedi licença ao pedestal
mas o pedestal era surdo.
Enviei 
sinais de fumo
código morse
fiz de mimo, 
até.
Mas o pedestal era cego.
E mudo.
E inerme. 
Não percebi
por que seu nome era
pedestal.

#737

Desta margem
onde (por fortuna)
encontrei na ponte uma miragem.

26.9.18

Procópio

Apanho as medalhas
o restolho venal
particípio passado com odor baço
e deixo o baço como legado
troféu da ciência estulta. 
Isso era 
quando tinha janela
e o rácio exultante
feitor da gargalhada do retrato alheio
sem reparar na gargalhada própria
com lugar cativo. 

Precisava de uma possibilidade de arnês. 

As causas são estéreis
quando se sufragam em certezas
num papel impecavelmente desamarrotado
na pele sem rugas
no levemente acidulado cultivo de frutos
com o amparo das divindades. 
Mas tudo isso eram agulhas
que cegavam a lucidez
não composta por lanternas resplandecentes. 

O arnês era a demanda:
para o abrir
e deixar cair o corpo na vertical
no muito provável 
exercício risível de mim mesmo.

#736

O choro extinto no rio,
onde secam as lágrimas
no amplo estuário em que decaem.

25.9.18

Situado

Matéria-prima:
punhal sem lâmina
lapidado no diamante crasso
sem erro por terçar
sem armas por equilibrar
apenas rotundas assanhadas
no horário tardio.
Convulsões estioladas
bardos em barda
arroz de tamboril
e um guardanapo fumado
na fogueira dos antanhos.
Roí as nozes macias
e a corda amarelada no sopé do sol
desautoriza o inverno.
Guardem-se as pazes furtivas
os tíbios preceitos da razão
as rodas rombas do risível caudal
e assente-se
em alvenaria convincente
o cimento frísio nas varandas acesas 
– e a lua
inteiramente envidraçada
devolvida contra a galáxia vazia
no inverosímil músculo da voz.

#735

Se o choro
fosse um rio
havia estio e monção.

24.9.18

Manifesto contra a eternidade

Que importa a eternidade
a cápsula sem vidro
o vento irredentista
um oráculo que não sabe ler?

Quem se importa com a eternidade
se a finitude a desengana
e nem como legado
(mesmo fora das convenções)
somos imprescritíveis?

A quem importa a eternidade
no bálsamo fugaz das luzes fátuas
na verborreia flácida dos desmentidos
na volúvel fachada de catedrais por fazer?

Onde não está a eternidade
se não nos lugares inteiros
nos corpos sem exceção
no embelezamento dos dias por porfiar
nos segredos que se guardam
na parede fria e cada vez mais gasta
das veias por dentro?

Denuncie-se a eternidade
o logro batismal
o colóquio sem verbo
o ajanotado jardim sem rega
a deletéria força que tudo exaure.

Quem quer a eternidade
se o tempo a confirmasse
e deixasse de ter validade
por excesso de existência?

#734

Tomara
um lugar exíguo
e tu, na sede da grandeza tua, 
curadora de meu devir.

23.9.18

Desmedo

No pronome do medo
acolho os seixos molhados
que sobram da maré.
Sobram as universidades de erros
as sementes que dispensam água
logros inspirados no olhar treslido.
Arrematem-se os metros quadrados
de baldios à espera de fermento
e não se baixe a escala do mapa
no porfiar da matéria acesa:
aos medos enquistados
desatam-se os nós.

22.9.18

#733

Nem todas
as viúvas
são negras.

21.9.18

#732

Perdeu serventia 
a demanda dos anátemas 
que são consumição.

Convocatória

Guarda este lenço
com as palavras sem ermo.
Lança no sol precoce
o desenho dos meus lábios.
Habita no regaço
onde medra o nutriente singular.
Perpetua este instante
no fermento ávido das mãos.
Sonha com os fecundos versos
na véspera de serem desposados.

#731

No bojo da emboscada
abainhada com insalubre vinagre,
de que lado estás?

20.9.18

Aguarela

A estátua consuma
as folhas rasteiras
no umbral do outono.

Não serão as réstias do tempo
no módico latejar das veias
por as velas se desembaraçarem do vento
em golpes fortuitos, 
precisos
exclamados por um braço forte.
Sobre a almofada da madrugada
ouço os gatos vadios
o rumorejo da maré-baixa
as lágrimas que assentam na areia,
o orvalho liquefeito,
as mãos endurecidas
pelo âmago dos seixos deixados pela maré.
Dou aos ouvidos as preces insistentes.
Pode ser que a pele se acostume
e a chuva vespertina cuide do resto.

Não cicio as palavras
sem as folhas por perto
na lombada estreita do livro promitente.

Sem o encanto das cotovias
nos seus estroinas voos rasantes
adormeço sem contar.
Sinto o corpo sacudido
e não é se não o sismo interior
que traduz as inquietações
que as traduz em forma de sonho.
Se chegar a manhã
na teimosia do nevoeiro baço
oxalá estejam prontos os versos
no esconderijo do pensamento;
oxalá sejam digeríveis
na combustão dos braços que se entrelaçam
sem a demora das lágrimas 
reservadas em favos que condensam 
toda a doçura;
das lágrimas que secaram
num parêntesis dos olhos 
que deixaram órfã a bulimia dos sentidos.

Ao amanhã
não digo nada:
quero-o inteiro
imune às profecias
servo do espontâneo esvoaçar
digno de uma coreografia de peritos
insuspeitamente demiúrgico.
Desse amanhã
conservo a memória não atribulada
e reescrevo o oráculo que teimava
na persistente mentira de si mesmo.

A estátua 
indiferente
remoça a claridade intimidada
lavrando o nevoeiro contumaz
em promessas de futura chuva.
Será inverno,
então,
e eu sem arrependimento.

#730

Incubo
a empreitada forasteira
imerso no suor do sonho.

19.9.18

Caravelas

As altas árvores
carnívoras da sombra
congeminam o furto da atenção
o rastreio das almas procedentes
e levantam os travões aos devaneios. 

Se as altas árvores
se justapõem ao sentido pesar
onde funéreos vultos perseguem os mitos
somos
pelos desembaraços vadios
as combustões por todos os lados
e não deixámos colonatos em pé
no estipêndio das almas não contorcidas
na vertigem dos cais que mais parecem 
precipícios. 

Das altas árvores
mais altas do que montanhas escarpadas
o povoamento dos anéis artesãos
e eu 
de sentinela
dando corda ao fogo de vista
empunhando bandeiras sem cor
deitando aos mares tiranos
as caravelas por acabar.

#729

Os olhos da manhã
combinam a rima avulsa
com a claridade estremunhada.

18.9.18

#728

O artífice da farsa
ou o farsante do artesanato:
quem sai de vencido 
no tirocínio da mitomania?

Moinhos

Estes moinhos
o ventre da paisagem.
Por onde
o vento se desenha
na curvatura da manhã.
O lugarejo
imensa fortificação
concebe os limites da caução.
Os moinhos
emprestam-se à paisagem
na contrafação desejada.
Penhorada a origem
sobra o chão alcatifado 
com a pedra dura.
Nada fica ao acaso.
Junta-se o rebanho
o cão que o apascenta
e o pastor distraído.
O pastor que se encanta
por mais que sejam as vezes
no rebordo dos moinhos.
As pás vagarosas
tiram talhadas ao vento.
Sente-se o murmúrio
a voz acastanhada das fazendas
no arritmado pulsar dos moinhos. 
Num moinho
alguém contaminou a obra: 

“goste-se ou não
a aldeia inteira 
vigia os forasteiros
para gáudio dos nativos.”

Sinais dos tempos
ou apenas o poema 
fremindo o carmim das palavras
na metáfora
que costura a contracapa da má profecia?

Os moinhos
indiferentes
estugam o compromisso com a paisagem.
Ela não seria a mesma
se cerceassem os moinhos pela raiz.

#727

O verso lapidar
uma aguarela minimalista
a frase sem arestas.

17.9.18

#726

O mexilhão
é metáfora depreciativa
ou a virtude do marisco?
(Pois se o povo é o mexilhão...)

Chocolate negro

Nos termos do mandato:
enfarpelando fatiota de cerimónia
num apessoado estatuto
a eloquência a bolçar das veias
o aparato da importância subindo ao nariz
e a batuta hasteada no tempero da ralé.
Um educador.
Exemplar.
Gosta de saber que é exemplar.
O soporífero que ampara o sono.
Eis que desfila
donairoso
entre as plumas dos pares
mas ele
primus inter pares
dúctil referência
reverenciado como convém
aos penhores das medalhas de si mesmos.
Faz lembrar aquele cão
nos desenhos animados 
(Muttley, julgo ser sua graça)
que levitava de êxtase
de cada comenda pespegada ao peito.
Quando aterrava
nem a anestesia das medalhas
aplacava o fragor da queda.
Do canto aqui recolhido, 
uma sugestão no epílogo da generosidade:
organize-se lauto repasto em sua honra
movam-se as influências
(as possíveis e as fora do alcance)
para engrossar o numeroso exército
dos agraciados no dez de junho. 

#725

Destronadas as maiúsculas
sobrou 
o epicentro da miragem.

16.9.18

#724

Proíba-se
a demência das proibições
que as crescidas gentes
dispensam trelas e freios.

14.9.18

Centrípeto

Declaro-me 
plenipotenciário dos afonsos sem trono
confrade de trovas desalinhavadas
maestro dos mergulhadores em doca seca
artesão à prova de matéria-prima
zelador de águas-furtadas
criador de luas estanques
fiador das palavras gastas
oráculo embaraçado pela miopia
testamenteiro de segredos desacorrentados
lídimo asceta do compêndio da maresia
sonhador de sonhos sem limites
curador de galerias sem vento
marégrafo dos pontos cardeais
albatroz voando sobre as cordilheiras
paramento descosido da fé
mercador de lugares-comuns (hélas)
desmaterializador de ceticismos e catecismos
angariador de silêncios leves
calculador de danos e de sua reparação
segurador de almas
amanhecedor incorrigível
argonauta na paleta avulsa
artífice da ternura
penhor do desejo
indiferente às lotarias juramentadas
credor da paciência geral do mundo
viajante e amante
(não necessariamente por esta ordem).

#723

(Referendo sobre o equinócio)
Muda a hora
ou fica a hora muda?

13.9.18

#722

O dente fundo
é o que deixa 
a última impressão.

Desenho

Não atiro a pedra.
O lago sem ondas
é retrato preferível.
Os nenúfares
não precisam de naufragar.
Os cisnes
estão imersos em seu sono. 
O silêncio
é uma ilha valedoura.

Não escolho a ira.
A penumbra está gasta
sem consulta.
À noite prometi
o ouro do consolo.
Da pele
conservo a alvura.
Retenho
as palavras sem arestas.

Não transbordo os remorsos.
A culpa extinta
adormece no dorso da memória.
Não tenho
vultos em espera de exorcismo.
Às sombras contumazes
arremato existência.
Às águas malsãs
ergo dique.

Desenho a manhã
no púlpito das mãos.
As palavras segredadas
são a combustão do enredo.
Aos olhos férteis
a convocatória da reinvenção.
No silêncio profundo
as palavras adivinhadas.

Desço ao chão
da maré enxuta.
Combino estrofes
no parapeito da maresia.
Murmuro o amor
no corpo tremeluzente.
Esqueço
o devir por selar.

Sou penhor
do refúgio da alma.
Não me escondo
da felicidade.
No suor trespassado
construo a cidade esperada.
Com a docilidade
das palavras sussurradas.

12.9.18

Adia-se o adeus

Adia-se o adeus.
A casa-tribuna não arde
e nem o colostro se perde
na elegia dos pares.

Adia-se o adeus.
O testamento sem páginas
cobra do tempo
o viveiro das aldeias de pedra
e nem caminhos iridescentes
pontuam a destempo nas folhas vitrais.

Adia-se o adeus.
No imorredoiro amplexo da vida
sem o temor angustiante
sem os contumazes patriotas das trevas
sem esculturas esventradas pela ferrugem.

Apenas se adia o adeus
porque a palavra se esgota no seu sentido
e a marmórea tela agasalhada
ensina
que a palavra adeus é vazia
um deserto sem lugar assinalado
a vertigem sem fundo.

Adia-se o adeus.
Porque não há mister
de adeus dizer
e do adeus não sobram 
as saudades fundidas.

#721

Atreve-te
na incendiária centelha
o desejo que não conhece freios.

11.9.18

Tiro falhado

Não ocasionais ocasiões
párias são paridos
por suas não recomendáveis ascendentes.
Os feios nomes
afeiam as ascendentes:
que inominável injustiça
ao considerar
no mais fundo da análise
que piores são os párias pergaminhos. 
É voz corrente:
o opróbrio abate-se sobre as mães
sem culpa formada
nos párias que assim se formaram
em intenso e individual tirocínio. 
Partisse o ultraje o portal dos párias
e esconjurassem as mães do malévolo legado
e lugares assim compostos
seriam tributo à equação da equidade.

#720

O voo picado
sem remorsos do precipício
chamamento sem arestas.

10.9.18

Verbo falso

Armadilha-se o verbo
no logro de uma máscara
o sal ungindo todo o fingimento.

O verbo treslido
é a remitência dos vultos
e as absolvições são cortina baça.

O chão minado
disfarçado de piedoso paraíso
dá de si quando não tem remédio.

Dizem: 
o verbo não precisa de armaduras
precisa de um enfeite mirífico.

E das armadilhas povoarem a gramática
já ninguém sabe do idioma
tudo parece ininteligível.

Salva-se o fardamento das palavras
o celofane que disfarça a escória
uma sinuosa estrada torpedeada por beócios.

#719

A pele em escamas
sem rede de segurança
desalentadamente à mostra
na janela inteira.

9.9.18

Imaterial

Um remédio sem remédio.
O nevoeiro sem prazo.
O sorriso no canto da boca.
A porta entreaberta.
O gato preguiçoso.
A bússola perdida no cais.
A precisa delimitação do espaço.
O néon timorato.
A voz rouca que é tumulto em cena.
A criança com o olhar perdido na aurora.
Um balão sem oxigénio.
A fábrica dos sonhos sem paradeiro.

#718

Fortuita,
a erva daninha
não pesa.

8.9.18

#717

Mosto sem bolor
extorsão das palavras feridas
no púlpito da pureza incensada.

7.9.18

Antijogo

Dionísio protestou
na ciclovia que o distancia de casa
“tenho as rodas nas pernas
enquanto a maresia abusa da atmosfera”.
Dionísio não sabia ao que ia.

Desfiado por uma subida
acendeu os faróis
e fumou um cigarro
(se acreditasse, entoaria uma prece):
ele há milagres 
que encontram cais no inesperado.
Dionísio disparou impropérios
não poupando no vernáculo
(ninguém o ouvia)
(e desta vez 
os impropérios não eram 
contra a maresia):

a maldita subida
parecia só terminar no céu.

Arrependeu-se da analogia.
Nunca se sabe se um deus atento
tomaria aquelas palavras à letra.

Dionísio preferiu o antijogo.
Desceu da bicicleta
e no contratempo das pernas tremeluzentes
tomou lugar na esplanada
à espera do vinho salvador.
E à espera da descida prometida.

#716

No rastilho da madrugada
vozes de chumbo
entretecem conspirações.

6.9.18

Temperamento

Vamos às furnas
onde as mãos naufragam
sob as raízes de tudo,
sem medo da tepidez agressora:
tiremos dos claustros escondidos
(onde se enquistam esteios)
a base das interrogações
a frondosa abóbada da incerteza
em coloquial discurso sem arestas
e deixemos de véspera
os categóricos imperativos
as certezas assim sufragadas
o ensimesmar das palavras feitas
e cuidemos da estultícia própria
se daquele modo persistirmos.
Deixemos para memória futura
o travo doce da valedoura insignificância
pois de minúsculas ilhas não passamos
num abundante mar 
que nos devolve ao procedente anonimato
células só visíveis ao microscópio
de um olhar quase sempre desatento.
E depois de às furnas irmos,
e de lá erguermos as mãos inundadas
na água manancial fértil em humildade,
firmemos o passo no tapete singular
onde as fotografias de tudo se agigantam 
no olhar reinventado,
insaciável.