Não se diga
uma palavra
sobre as modas
que o silêncio
as devolve
as desmodas.
Na casa decimal
avalia-se o encargo
à revelia da lei,
não vá a ambição
de estar in
perder-se na mealha rota
e acabar no entreposto
onde se arquiva
o out.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Não se diga
uma palavra
sobre as modas
que o silêncio
as devolve
as desmodas.
Na casa decimal
avalia-se o encargo
à revelia da lei,
não vá a ambição
de estar in
perder-se na mealha rota
e acabar no entreposto
onde se arquiva
o out.
Torre de marfim:
onde as vidraças
não cobram franquia
e as palavras se emaranham
numa gólgota medieval.
Torre de marfim:
onde,
circunspectos,
fiscais fazem a corte ao zelo
e sonham
em sonhos sem sono
com judiciosas armadilhas
onde,
impreparadas,
as pessoas são caçadas.
Torre de marfim
até ficar condenada
à verrinosa ferrugem
dos apóstolos da decadência.
“Estou pronta”,
avisou,
a profecia,
com um pé delicado porta fora
sem saber da chuva torrencial.
“Estou pronta”,
repetiu,
a profecia,
ao notar a indiferença da audiência
assim se sabendo sozinha.
“Digo outra vez:
es-tou pron-ta!”,
silabou,
a profecia,
com todo vagar,
a convocar a atenção
quase em súplica
– quase como se fosse preciso
desenhar em legendas
a gramática da advertência
que encorpava
a profecia da profecia.
Ninguém a ouviu.
Quando a profecia se abateu
o esquecimento de todos
embaciou o olhar
e ninguém deu a mão
à profecia.
À profecia
que órfã ficou.
[Crónicas do vírus, CDLVIII]
O paga do
na sede
de sermos animais sociais
é a misantropia à força.
Não prometo tréguas
se nunca dancei com a guerra.
Aos tiranetes da razão
brindo
com uma infusão de loucura
e pé ante pé
assombro-os
com o vulto de que me faço.
Aconselham
que ninguém mate com ferros
para em ferros não ser morto:
esse é o vão a que não me agarro;
deixo-o para os agiotas
que vomitam
por cima da métrica assisada.
[Crónicas do vírus, CDLVI]
A revisitação da quarentena
como pretexto
para a procrastinação de muitos.
Ora:
é esta filigrana
que nos deixa em cabelos de ouro
o sono que entronca nos corpos nus
diamante sem bruto capataz
uma cornucópia tatuada no peito
com um nome sem recusa,
nos olhos vigilantes
não tementes.
À hora incerta
não declaramos um êxtase na alfândega
e ninguém nos quer prender.
O lobo uiva as sílabas sopesadas
e tiramos à sorte o devir
uma senha que escolhe o sortilégio
condensando nevoeiros baços
sobre as cortinas onde se esconde
a indigência.
Por ora
sabemos as páginas onde nos escondemos:
descontamos as onomatopeias
e a pontuação em desacerto
até do fundo do rio,
decantado o lodo,
extrairmos os ossos legados:
a mais pura
das imperfeições,
percebemos logo.
A nossa,
incomparável e incalculável,
imperfeição.
[Crónicas do vírus, CDLIV]
Esta matemática
que desassossega,
almirante
de um sinal escatológico.
Açambarco a roupa
que a nudez me embaraça.
Se ao fundo do lago vou
é por saber que,
submerso,
o corpo se resguarda
do olhar invasivo.
O corpo imerso
cuida da sua tolerância.
Não se blasona
(não que não houvesse
causa própria)
nem se exibe
atentatório
contra o zelo da estética.
Trago a roupa ao corpo
em vergonha própria.
Diletante
capitalizo a nudez
contra o jugo do preconceito
ao lado de quem o toma
como caução.
Digo-te
que me torno o alçapão
por onde se decompõe
a bandeira do ocaso
erradicando
os errantes dandies
que afocinham nas faldas do passado.
Digo-te
que não trago em mim
o avental descabido
nem me povoam
palavras desabridas
ou contextos milenares
ou me acorrento ao murmúrio contrafeito.
Já te tinha dito:
não contem comigo para
messianismos indigentes
farsas habilitadas por bem-postos senhores
concursos de malbaratada erudição
uma esgrima de emoções
ou palcos de gente meã
disfarçada de sociais galantes.
Digo-te
assim mesmo
que sou astronauta
por dentro do império
recolhido em meu labirinto.
Toda esta simples complexidade
noite por dentro do dia
mentira contada a todas as mentiras
presa com armas de caça
pressentimento virado do avesso,
assíduo contumaz:
um poeta à revelia.
O burocrata
não lê poesia.
Não lê;
só lê
as detalhadas ordenanças
que estipulam o irrisório
e depois esquecem
a lana caprina.
O burocrata
não tem orgasmos
(a não ser
quando lê as ordenanças
que o conduzem à excitação
e etecetera e tal).
O burocrata
não sabe o que é o mundo
nem a cor de gastronomia forasteira.
O burocrata
usa gravatas lilases.
O burocrata
respeita escrupulosamente
a monotonia.
O burocrata
sabe de cor
os corredores do bafio
e detesta fragâncias.
O burocrata
não transige na métrica
que é o seu vocabulário.
O burocrata
hiberna.
Oxalá
o burocrata
soubesse sonhar.
Daquela angra
uma colher sobre o mar
e nem sal
nem um pouco do suor estimado
em maresias tardias.
Altivo
veio crismar
o oceano:
eram faustosas
as estrofes a ele dedicadas
mas eram apenas uma farsa:
nos fardamentos encorpados
as algas faziam de eruditos
escorregadiças,
ardilosas,
em seus cenhos de fealdade.
À doca veio encontrar-se
com a usura das marés.
Num póstumo candelabro
as virtudes apanhadas por junto,
num único molho,
reduzidas a um módico,
eram a angular estafeta
entre as ideias avulsas.
Que ninguém procurasse
a coerência:
ninguém demandara aquele pedestal
com essa incumbência.
Apodrecem nas mãos
as vozes estilhaçadas.
E não se insurgem
os mundos que se escondem
da indigência malsã.
Estilhaçam na pele
os rostos decadentes.
E não se conformam
os povoados que se fingem
no teatro ensinado.
Decaem no corpo
os sexos resgatados.
E não se arruínam
os desejos que se adestram
na imaginação caudalosa.
[Crónicas do vírus, CDXLVI]
Regressamos
às nossas torres de marfim
aquartelados contra os fantasmas.
Um céu sanguíneo
a ler o dia
ainda matinal,
moeda franca
de um olhar sem arestas.
O céu sanguíneo
esculpe a curvatura do tempo
e ao longe
num trejeito efémero
a névoa dissolve-se
no rosto desapossado.
Não tenho horas para dar
na astúcia dos dedos
que contam o tempo destemido
empenhado pelo enrixado porvir
tutelado pelo pretérito envidraçado.
Não tenho nada para dar
enquanto sopeso as rugas frugais
desenhando o mapa da pele emaciada
vinificando memórias consentidas.
Não tenho um módico para dar
e aprovo a lanterna viva
que se arruma nos viveiros possíveis.
[Crónicas do vírus, CDXLIV]
Os súbditos
são o presente envenenado;
os suseranos
são o rosto da mendacidade.
No lanço certo da escada
um esquadro
para desenhar o consentimento.
Povoado sem toponímia
uma fábrica de desrazão
e em tudo o que é adverso
manda-se a desratização
castrar o lóbulo promissor da infâmia.
De um jardim zoológico
plural
diria não ser visitante;
antes o mapa sem lucidez
do que os erros reprimidos,
tonturas excruciantes
que não pegam na lei da selva.
Sabias
em que dormitório
hibernava o biombo?
Era uma matéria venal
um esgar devolvido às sombras
penhor em causa própria
(ou penhor sem casa própria?)
a linhagem vetusta
dos sarcófagos sem paradeiro.
E, contudo,
servia-se o medo
às portas blindadas,
como se se arqueassem os corpos
e, em genuflexões pueris,
consagrassem os estultos sem armadura.
Sabias
que a mitologia
se consome na mentira?
Não eram verbos banais
os que chamavam a si a centelha puída.
Desarmávamos as esporas
que amaldiçoavam os espíritos singulares,
recorríamos aos mais fundos punhais
para sangrar os mastins desaçaimados
que nos impediam de sermos libérrimos.
Na contabilidade prematura
arranjávamos as ferragens
contra a decadência urdida
pelos espantonautas.
Seria caso
para erguer uma cortina de espantalhos
antes que todo o tempo fosse tomado
por quem o desmerece.
[Crónicas do vírus, CDXXXIX]
Não é um novo vazio;
é a continuação do vazio.
(Amanhã, o regresso do confinamento)
O acordar:
desembaraço as pestanas;
as sobras de um sonho
esperam à porta
vertidas num vulto
no crepúsculo em vão.
Pergunto pelo dia.
Os braços desarmam o torpor
o sangue sente o raiar
espera pelo rastilho
o acetinado forro da pele.
O murmúrio das vozes
distante
emoldura as primeiras ruas
como se elas descongelassem
com o estio à medida das almas primeiras.
Agora
as ruas já não têm só as árvores.
E as pessoas
quase todas contrariadas
avançam
contra a vontade
contra a manhã intrusa
preparam-se
para os segredos por vir
sobem ao palco
principais atores
do dia que as tutela.
Segredo um par de sílabas
detetive de meus sonhos
e levanto os corrimões que antecipam a tarde
no resgate da vontade,
procurador indigente dos pesares.
Espero pelo entardecer
refém de um tempo estiolado:
nesta conspiração não tenho voz
as espadas afiadas dançando sobre a cabeça
coreografando o vento sem algemas.
Espero
que o entardecer segrede
a geografia do sonho de que sou véspera.
Até ser um corpo passivo
amordaçado pela entrega do sono
vítima,
ou algoz,
do sonho estilhaçado.
O acordar,
ato repetido;
ou o corpo dormente
bolçando
um sonho
por dentro de um sonho.
[Crónicas do vírus, CDXXXVIII]
Tem desandado
o negócio dos novos amanhãs,
entrados que foram
numa rua que parece ter fim.
Costuro as feridas
com a saliva que efervesce
na maré alta.
Devolvo ao areal
o tojo fundido nas varandas.
O espaço
é atapetado pelos anciãos.
À razão do medo
os confettis desembaraçam-se das árvores
em beijos guturais que cauterizam a luz.
Diziam:
é inútil cimentar as cicatrizes
se a pele não se emudece
na coreografia do tempo.
Só os tolos
(e os majores risíveis)
estudam os ângulos que anoitecem o medo.
Antes os melodiosos cantos das horas certas
o crepúsculo amotinado
um vesúvio a crestar na sombra dos mares
a cor mate que traz embaciados os olhos;
antes
tudo isto
do que a carne viva
à espera
de curadoria.
Não há Moscovo
que nos contente.
Não há
iridescência
que sobre
para as nossas silhuetas.
Não há limites
que nos afugentem
do rogo da demanda
atirando-a
umas léguas além.
Não há frio
que nos emudeça
nem neves que sejam
perpétuas.
Não há desidioma
a separar o corpo da fala.
Não há modo sem ritual
nem guarida
sem arranha-céus.
Não há mosaicos
em forma de vivos retratos
nem catacumbas tão ilustres.
Não há museu igual
no reverso
das memórias nocivas.
Não há primavera
colonizada pelo inverno
num marco tardiamente ártico.
Não há Moscovo
se não em Moscovo.
[Crónicas do vírus, CDXXXVI]
Ainda não aprendemos
que o arrependimento
não é a fiança da redenção.
[Crónicas do vírus, CDXXXIV]
Um coro de farsantes:
os súbditos,
indisciplinados.
exibindo-se como súbditos;
e os regentes,
que aproveitam
para exibir o músculo.
O podre de um regime
não são os seus porteiros;
são as portas
que lhes damos
como legado.
O podre dos porteiros
não é a vileza que os cobre
ou as meãs manhãs em que se entretecem
ou o coldre vazio
em que oxalá fossem concebidos
ou a árvore enfastiada em que se entronizam;
é dos que selam o sufrágio
cúmplices em primeiro grau
as mãos que servem às luvas dos porteiros.
O podre
é da letargia incandescente
que de mote próprio faz alpinismo
às costas dos súbditos
instruindo-os na apatia.
[Crónicas do vírus, CDXXXIII]
O fio da navalha
rorejando toda a vingança
sobre os frágeis
(que não admite exceções).
Como se de uma barreira de coral se tratasse:
os dentes afiados contra as redes
e o farol centenário
ciciando um pesar orquestrado
que não amedronta os peixes.
Nem do salitre cuidam os barcos
que em águas tumultuosas
sem a guarida do porto
não sobra atalaia
se não para o sopesar da embarcação.
Os nós enredam-se no crepúsculo:
têm de ser as mãos gastas dos marinheiros
a prevenir a redenção.
Não se diga
que a fartura pretérita se consumiu
nos corpos envelhecidos;
a maresia aspira o sal pelos poros
e embebe-se na ossatura dos marinheiros,
que ganham no tributo
calibrado na vertigem do tempo.
Deixam as vírgulas esquecidas
num recanto da boca
como se as tivessem salivado
e elas,
sílabas estilhaçadas,
sobrassem,
despojos,
nas pregas dos lábios.
Todas
as palavras
contam.
É nesta
aritmética suada
que habito.
E se contam
as palavras todas
subo aos contos
narrador acidental
embriagado
com o vocabulário sedoso,
emoldurado.
Com
todas
as palavras
contadas
no vagar das sílabas
chamando
os nomes
e as coisas
nelas desenhando
os rostos
os corpos
um amontoado de equações
amanhecidas
na contabilidade das palavras.
[Crónicas do vírus, CDXXX]
(Uma)
Tragédia dos comuns
– e como a expressão
se tomou de propriedade.
Pontos nos is
para que vos quero?
Pois
se na Turquia
há is que não levam ponto
e não consta
que a Turquia tenha sido
desqualificada.
Pontos nos is
mordaça institucionalizada
a pedir uma re-gramática
(pois se
há quem dispense pontos finais
e outros
dos parágrafos fazem tábua-rasa
e outros ainda
desconhecem maiúsculas
como inauguração de orações);
pois
os is mantêm validade
mesmo que venham amputados
de pontos
e ninguém nos pediu
para vertermos os pontos nos is
pois
tudo ficou aclarado
no cancioneiro do entendimento:
nos is sem pontos
que is se continuam a ter.
[Crónicas do vírus, CDXXIX]
O povo
a fazer a vontade
aos adágios que vulgarizou:
à segunda onda
segue-se a terceira,
sem demora.
Povoadas as floreiras
com o suor ungido
ajardina-se o verbo
nas cicatrizes consuetudinárias.
Um punhado de artes,
ou apenas o inescrúpulo larvar,
cimentam a pele emaciada:
se dantes
os canteiros desenhavam as cores
agora
entediam-se com o macilento rosto
da invernia que não se apieda.
A ossatura entoa os queixumes,
rima com a duração plúmbea
que agiganta os pesares
pelos soalheiros dias.
Sozinhos
os dias breves
remedeiam-se
à medida que as cinzas das lareiras
fazem cama
ao esquecimento.