I
O furtivo gato vadio
esgueira-se entre duas paredes.
Não tem pertença.
Disso se alvitra
dos gatos que dizem ser vadios.
Mas o gato tem um paradeiro,
como pode ser vadio?
II
Os pianos à espera de venda
não se ensinam na mudez.
Junta-se em finas camadas
a poeira versátil que os desafina.
Os pianistas não andam por perto.
Os pianos exibem a sua contumácia.
III
O embaixador debita o gongórico pesar
enquanto o mundo puído
cuida da sua decadência.
Se tivesse havido tirocínio
fora dos salões diplomáticos
o embaixador libertar-se-ia dos laços solenes
enfim imberbe na hermenêutica do mundo.
IV
O fundo ácido das palavras espontâneas
contraria o desaguisado com a eira da alma.
O passo incerto acerta as horas,
ditas por uma clepsidra submersa.
As ilusões não são a terraplanagem hasteada,
o olhar devolvido ao teatro dos sonhos.
V
Veio uma amostra do tempo lúdico.
Em vez de preces
(não atendidas),
uma voz rude.
A cortesia pertence ao pretérito,
embrulhada em verbos contrafeitos
e personagens vazias de memória.
É vetusto o singrar na solidão:
vetusto e sem propósito
a semântica sem falantes em nome próprio.
Lúdico é a lucidez sobrante.
VI
O mapa abraçado ao diadema
povoa as cintilações desarmadilhadas.
Oxalá o mapa haurido seja destronado
pelo envelhecer consentido,
sem pressa.
Os mapas desaprendem-se
no eterno desejar de tudos sem hipótese.
VII
O gato vadio
não sabe o que é o mar.
Mas o mar fala connosco
conta-nos os segredos
que são os nossos segredos.
A manhã avivada
enumera os verbos alimentares
enquanto o tempo urde as suas personagens.
Não consta
que os gatos
(vadios ou não)
procurem o mar como azimute.
VIII
A armadilha sob o olhar
disfarça-se de beatífico rosto.
As árvores acinzentadas pelo dia chuvoso
martirizam-se
não lhes sai da cabeça
que foram inventadas
para ornamentos de dias ungidos pelo sol.
IX
Antes o despenhor dos gatos vadios
do que a fórmula narcisista
de anjos agonizantes
presos
às cortinas da memória
e à tirania da pertença.