O prontuário
de manhãs sem nome
sobe nas bocas desassisadas
e compõe
o terno inventário da coragem.
Servirá
em generosas talhadas
o medo antecipatório
que das mãos aguadas
retira os verbos invencíveis.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O prontuário
de manhãs sem nome
sobe nas bocas desassisadas
e compõe
o terno inventário da coragem.
Servirá
em generosas talhadas
o medo antecipatório
que das mãos aguadas
retira os verbos invencíveis.
[Crónicas do vírus, CMLXXVII]
Legados da peste (268):
A queda do açaime
é liberdade exercida em dobro:
uns aliviaram-se da opressão
outros mantêm o direito de o usar.
Sault, “Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=-5OzNTZystM
O sonho que cicia
na fronteira do ouvido
harpeja o crepitar da lareira
sem que da angústia contumaz
o dia tenha entendimento.
Os degraus movem-se
verticais
à medida que os dedos caiam
a silhueta da enseada.
Ouço palavras atropeladas
espanholadamente atropeladas
num grasnar singular
e o barco promete-se ao mar alto.
E quem não tem as suas enseadas?
Pergunto-me
silenciosamente
omitindo o bramido deslimítrofe
arrumando as cortinas que retesam a claridade
se as enseadas não são privados exílios
ocultando a multitudinária fala gongórica.
[Crónicas do vírus, CMLXXVI]
Legados da peste (267):
Tremenda é a empreitada
de que somos
únicos capatazes.
[Crónicas do vírus, CMLXXV]
Legados da peste (266):
Caíram os açaimes,
longa vida
à beleza e à feiura!
O tratado das coisas
envergonha compêndio
de páginas amarelecidas
embota o rugido das feras
na sincronia das falas sem dicionário.
Trago tratado o dilema
e sem bolçar a digestão dos tempos
arremeto as cores contra o silêncio
neste lugar
que está entre mim
e um outro eu sem paradeiro.
Azulam-se as abóbadas do olhar
em acetinadas colheres que bebem o mar
e no provérbio que dá de viver às almas
arrisco uma vírgula a destempo
arrisco o deleite do provérbio despedaçado.
As coisas tratadas
desembaraçam-se em páginas avulsas
páginas ainda luminosas
dando corda ao mutismo dos timoratos
na divergência das oratórias maduras.
[Crónicas do vírus, CMLXXIV]
Legados da peste (265):
Tudo
não passou
de um pesadelo
que se demorou
numa passerelle encarvoada.
[Crónicas do vírus, CMLXXIII]
Legados da peste (264):
As pessoas
ganharam
(e de vez?)
vergonha na cara.
[Sobre os efeitos duradouros do açaime]
Passei por um autocarro
ia para “Sonhos”.
Não sabia de um lugar
que dá pelo nome de sonhos,
o que ditará
de seus habitantes
serem sonhadores.
Sem nenhuma altercação do pensamento
nem figuração de fingidores a preceito.
Se a alguém
forem visitação assídua
os pesadelos
aconselha-se
temporada nos sonhos
para os habilitar
em detrimento dos pesadelos tentaculares.
Estou convencido:
os antepassados deram nome de sonhos
a este lugar
para um exílio haver
para os fustigados por pesadelos.
[Crónicas do vírus, CMLXXII]
Legados da peste (263):
A comédia
torrencialmente precipitada
sobre a angústia.
Peçam
uma lavagem cerebral
um imorredoiro compêndio de instruções
semáforos diligentemente semeados
em todos os cruzamentos
instruções sobre como ser e atuar
e até como devem proceder
quando as hormonas convidam ao sexo.
Peçam
regulamentos e leis e posturas
e decretos-regulamentares
e uma miríade de regras minuciosas
todas as possibilidades da vida
tatuadas no sortilégio do dedo regulador.
Peçam
para haver regentes em vez de pais
(ou regentes substituindo-se aos pais)
obediência religiosa a uma bandeira
educação meticulosa pelos mestres de escola
dando seguimento à bitola das autoridades
e peçam, ainda,
para as autoridades não se esquecerem
da exibição do poder de império
substituindo-se
a páginas tantas
por autoritários
(que o povo madraço adora “pulso forte”
como se fosse preciso
para um qualquer onanismo místico
que cavalga no poder dos regentes).
Peçam
para tutelarem eufemismos
que escondam farsas bem disfarçadas
e, ato contínuo,
atirem toda a areia do Saara para os olhos
até que a capacidade de inteleção dos súbditos
fique presa por arames.
Nesta altura
não se esqueçam
de pedir
o boletim de voto
e repitam
de preferência,
todo o antecedente.
[Crónicas do vírus, CMLXXI]
Legados da peste (262):
A pedra sobre o assunto
é à prova
de estilhaços?
O verbo na trave
não vá o velho improvável
acertar no buraco da agulha
e ao longe perceber
as pestanas das cortinas
que desviam o olhar para os subúrbios.
Nunca se dispensem
as mãos audazes que se metem
na frente dos provérbios sentenciais.
O guarda-redes abstrato
é um seguro de vida,
perene.
Às vezes
é como se precisasse
de fazer a vindima
o corpo sentido por excesso
e antes que de excessos mais
se encolerize
refém dos meus próprios degraus
habilito o silo com as sobras de mim
para memória futura.
Outras vezes
sento-me no miradouro colateral
e dou de mim à vontade
sem pejo
os fragmentos
os visíveis e os ocultos
no aleatório desconspirar que arremete
basilar
nos socalcos do futuro.
Não fosse o zero
as arestas quadradas
seriam gelo sobre as feridas
o milhão inteiro de profecias
sem dívida por legado
sem vestígios das lágrimas
abandonadas.
Por esconder
o que de mais feio se contém
no humano corpo,
ao sapato
devia ser aposta a comenda
de património da humanidade.
[Crónicas do vírus, CMLXVII]
Legados da peste (258):
Já pouco tempo falta
para reaprendermos
os rostos.
O caminho do silêncio
arroteia marés hasteadas em breve
no descolorido cenário habitado por vultos.
Na gramática do silêncio
contam todas as sílabas
para o apuro dos déspotas.
Descombinam-se os álibis
na congeminação perfeita dos fingimentos
sem cesuras ou outros pespontos
à espera dos promitentes do verbo hausto
à espera
dos mantimentos especulados
nas janelas que tecem suas próprias paisagens.
No caminho do silêncio
nem o arvoredo cicia
e não é pelo vento que se ausentou.
Do silêncio a caminho
o poema que exulta
em frações diferidas do vocabulário loquaz
a mirífica palavra
regida pelas ameias da alma.
[Crónicas do vírus, CMLXVI]
Legados da peste (257):
Prudência
como eufemismo
de teimosia
– ou de perpetuação de poder.
Sólidas
as cofragens
que se enchem
na urdidura dos dedos.
As arestas
são aprumadas
que de ângulos mortos se estiolam
angústias sem lugar.
Os rostos
amontoam-se
num mapa sem nomes
sem mosto que seja mecenas
de um inventário de sombras.
As mãos
agarram as sílabas
enquanto a manhã se agiganta
no otimista oblívio dos apoderados.
Sem ser
por remédio
a maré assustada foge
e do mar alto ateia o dia que sobra.
[Crónicas do vírus, CMLXV]
Legados da peste (256):
Um espelho baço
tutela a penumbra,
a herança indesejada.
Qual é
a silhueta
da glória
se nos degraus do sono
habita uma pirotecnia magra
a estulta máscara de si
um rogo de piedade
a recusa gratuita
candeias vãs
e um rosnar.
Qual é
a geografia
do medo
se nos corrimões da água
se denuncia o algoz emaciado
a claraboia sem contornos
um magistrado sem toga
o tirocínio puído
poetas de giz
e um bolçar.
[Crónicas do vírus, CMLXIV]
Legados da peste (255):
Sobra a hipótese
de postergamento da peste
pelos seus tutores
sob pena de perderem o palco.
[Crónicas do vírus, CMLXIII]
Legados da peste (254):
As fragas
nada pastoris
que arqueiam o dorso.
Os mastins
sozinhos
colonizam a cidade.
Deles é
a derradeira palavra
sentenciadores sem dó.
Talvez por serem temidos
muitos aspiram sê-lo.
O poder
sempre constituiu
a maior
(e pior)
embriaguez de todas.
[Crónicas do vírus, CMLXII]
Legados da peste (253):
Cortinas de fumo
insistentemente
vestem os palcos.
[Crónicas do vírus, CMLXI]
Legados da peste (252):
Esplanadas
sem cadeiras vazias
no remoçar da Primavera
ateando as vidas de antes.
Devo as mãos ao asfalto fundente.
O provérbio arrasta-se na boca
é como se
picaretas matraqueassem a língua
e da tortura o sangue falasse
em vez da voz.
Se esta varanda está gasta
vou a outra embocadura
onde o rio seja eflúvio de mim
e as portas sejam altas fortalezas
abertas contra a tirania do silêncio.
Possam beijos dar cor às bocas
e da escotilha segredar as manhãs altivas
nem que a penumbra seja o espelho
em que se acalmam as sílabas.
Ao longe
o castelo
sozinho
desamparado na paisagem secular
sulca as nuvens que aterram no seu regaço.
A partida não é o avesso da chegada
apenas
um apeadeiro
no abundante esmo de apeadeiros
onde se hasteia a escolha.
[Crónicas do vírus, CMLX]
Legados da peste (251):
O manual de instruções
em nova edição
as páginas tingidas
com cor diferente.
Não é plano
selar comendas
aos lados B.
Não é um plano,
anjo zelador
da contingência.
Do lado B
aprende-se o avesso
uma margem
contra a repetição.
São as medusas
o verbo tentacular
agitando estandartes
sem a framboesa noturna.
Nos tabuleiros gastos
os acordes retirados à maresia
importam da alma
as casas prontas a ser morada.
Até que se deita
o dorso das mãos
e lado B cogita
desfazendo conspirações pueris
dos magos peritos no improvável.
[Crónicas do vírus, CMXXXVIII]
Legados da peste (249):
Lotaria,
ou o prolongamento
do jogo por jogar.
Corte-se a eito
a casaca ou a língua viperina
se as varandas forem extintas
e sobrarem os contrafortes a esmo
na paisagem dilacerante.
Corte-se a eito:
volta-se ao princípio
onde o verbo se constrói
em ondas alterosas no auge da tempestade
pois todo o ato criativo
é um verso de tumulto.
E depois
quando sobrar o sono
e de pesadelos não for composto
arrume-se o arsenal genesíaco
e faça-se a contagem do avesso
a contar do porvir que não tem horizonte.
Se a rasura na página
tem o dedo do contramestre
o que dizer da censura
do peso que se arqueia no ocaso sem nome
das bandeiras impostoras que se revoltam
e nos basaltos enquistados se deitam?
Não são desenfreadas, as palavras.
Não são irrefreáveis
nem se acostumam às prisões mendazes
e seus torcionários advogados.
Não é nas entrelinhas
que se abriga o sumo puro
das palavras impuras
o adubo que mente às colheitas desassisadas.
É na contracapa
em poros disfarçados de tinta dourada
como eram dantes as lombadas
um espelho de falsificações
sem se saber da nota da contrafação.
[Crónicas do vírus, CMXXXVI]
Legados da peste (247):
Depois do biombo forçado
o ser pela metade,
vagaroso.
[Crónicas do vírus, CMXXXV]
Legados da peste (246):
As bandeiras
ainda do avesso
vão por gramáticas
desaprendidas.
Rio sem nome
voraz se cumpre
na exatidão da chuva semente;
outono a destempo
ditando para as páginas sem rosto
a álgebra sem mantimento;
vozes escondidas no sótão
cuidando da pele amarrotada
no museu dos déspotas embainhados;
miragens vertidas no olhar
imensas paisagens sem mapa alegado
afogam angústias dantes sopesadas;
vertigem na planície
ajuramentada para ser moldura
antes que seja império o anoitecer.
O ocaso
senta-se ao jantar
nas suadas palmas das mãos
que se refugiam
no silêncio.
Por medo
talvez seja por medo
metendo as facas longas
no espelho estilhaçado
pelo crepúsculo.
Joga-se
a mirífica mentira
no pedestal onde se fruem ilusões
antes que a pele acorde
presa na hibernação.
Não se cuida
a decadência em prováveis regatos
nem a alucinação transforma o sangue
em altivez.
O xisto
não é a pedra tumular
arrancada à falésia matinal
e o peito carnudo procura as cicatrizes
nas estrofes surdas.
Até que o alívio
seja o campanário irrelevante
e as fragas tomem o corpo por semente
sem avisar os deuses de permeio.
Vozes
armadilhadas
templos sem tributo
vozes
sem remissão
sem medo da estatueta do amanhã
irrompem desde a mudez
mudando
verbos e fermentos
à espera
de vozes em seu desalinho
por corrimões frágeis
desatando preces enjeitadas
como se fossem ideias fracassadas
desembaraçadas do outono
desminadas.
[Crónicas do vírus, CMXXXII]
Legados da peste (243):
Uma guerra
para disfarçar outra
ainda por extinguir.
Dentro desta roupagem
pastoreio a aragem
no sumiço do miradouro.
O horizonte não tem fim
e colho no rosto
o frio abraçado no vento
que rasura a pele.
Longe
onde só o silêncio se autoriza
não contesto as vozes que não ouço
e de minhas palavras murmuradas
faço a fogueira que me aquece.
Depois do dia válido
é o lugar onde a terra se ausentou
mais o furtivo clamor da multidão indiferente.
Oxalá o exílio
não andasse por longe
ou a lonjura não fosse a albufeira
onde se desfazem as bandeiras gastas
para da aragem constituir
a levedura de ânimo.
[Crónicas do vírus, CMXXXI]
Legados da peste (242):
O calendário
é uma ardósia
o seu negrume
um destino por revelar.
Arremesso
beócios
contra
diásporas
elementares.
Fogos
guturais
hoje
ilustrados
jogados
livremente.
Mostos
neófitos
olvidados
partidários
quando
resfolegam.
Serpenteiam
todos
úberes
válidos
Xenofonte
(e) Zaratustra.
[Crónicas do vírus, CMXXX]
Legados da peste (241):
Aprendemos
a sorrir pelos olhos
quando não era certo
o incentivo para sorrir.
Parado
a meio da ponte
quase equidistante
pergunta à alvorada
para que margem seguir.
O silêncio é interrompido
apenas pelo vento.
Demora-se.
Talvez à espera de um sinal
o lado da maré
ou uma nuvem esquecida
ou o sol que fala no selo da primavera
uma pista
que seja.
Não podia continuar parado
tanto tempo.
Agora a urgências é um verbo
intransitivo
como se o tempo morasse tarde
e os corpos ficassem sitiados
pela indecisão.
Escolheu uma margem.
À sorte.
[Crónicas do vírus, CMXXIX]
Legados da peste (240):
Biombos inacabados
metem-se no caminho
juras retroativas.
[Crónicas do vírus, CMXXVI]
Legados da peste (237):
Não é contra o relógio
que se protesta o tempo;
ele continua o seu vagar
como se vogasse
em câmara lenta.
As sílabas portavam-se como balas rasantes
sem que a trovoada passasse da alvorada
e as divindades riam-se dos mastins.
Fosse como fosse era do úbere das memórias
que se saciavam as dúvidas embebidas na pele
e não era em amanhãs que medrava o sono.
A armadura escondida estava de atalaia
não fosse a sua presença imperativa
no reservatório das possibilidades urdidas.
Mas a noite acoitava pesadelos
e as mentiras serviam-se nas entrelinhas
contra a insistência das palavras sem fiador.