18.1.17

#124

Uma viagem
sem esporas nem mapa
as mãos desatadas
e os olhos sem sono
desembaciados. 

17.1.17

Desordem

A desordem
é a ordem dentro da ordem
o buço mestiçado em ária incapaz
dentro de uma tina de vinho tardio. 
Pelas costuras da desordem
sobe a pulso um oxigénio remoçado
duro como carbono em fibra
na atalaia constante dos operativos mastins. 
Se na desordem houver fronteira
abracem-se as virgens enquanto for tempo
mergulhem cabeças intempestivas
nos licores salgados
dancem os velhos trôpegos.
E, nos interstícios do teatro hasteado,
num intervalo das pontes fruídas,
todas as arengas dissolvidas
no libreto da desordem. 

Noite sobre noite
sem tempo que chegue para a luz diurna
em promessa
com a desordem por notária. 

#123

Se eu te contar um segredo
prometes
que só mo contas a mim?

16.1.17

Dormente

Dou o ouro que há em mim
sem a água rasa das minas
com as lágrimas engolidas de fiada
com o pé largo do mundo sem rasuras.

Grito.
Grito surdamente
como se o grito deslaçasse o fio negro
e as botas aprumadas no caudal
se revezassem na orla estimada dos céus.
Mergulho a cabeça na água
como se isso fosse predicado
como se fosse segredo em danças sem sal
em provectas imagens de uma claridade rara.
Dou as mãos às algibeiras
pois parece que,
tementes,
precisam de se abrigar do frio madraço.

Não acabo sem perguntar
às lombadas alinhadas
desde o sofá solitário
se os arranjos do tempo explicam os acidentes
as cósmicas congeminações à margem de deuses
as árvores nuas no inverno sem luz
os rios aparatosos no coice da chuva imparável
a noite anestesiada
o rombo nas páginas enrugadas
a contrassenha dos segredos sem segredo
a tiragem contínua de uma ideia gasta
a romagem ao cemitério das rotinas
o fausto de caudilhos de si mesmos
o ar pesado nas imediações das fábricas.

Grito
outra vez
sem me ouvir.
Grito às ruas por onde arrasto o corpo
mesmo sem saber se as ruas se importam
se os deuses que guardam o tempo
se importam.

Se ao menos
não tivesse dado
o ouro que se guarda em mim
hoje seria a misericórdia da miséria.

#122

Tirei uma dúvida
e às dúvidas devolvi
eu sei lá quantas interrogações. 

15.1.17

Skydiver

Dizem as palavras insinceras
entorses ao que interessa saber?
Talvez não
se das mentiras se guardarem segredos
e a palidez do quadro se resolver
em esquadria aceitável.

Name and shame the winners.

Empresta-se a cortesia aos ábacos
usados nos cálculos despidos de erro.
E depois
antes que o derrame das lágrimas
se pressinta
antes que o chão se empape em lama
e as viúvas entreteçam suas lamúrias
veste-se a couraça
e voa-se para o céu despojado de nuvens
o céu de onde está montado
o miradouro sublime.

14.1.17

Repentino

Feita a angariação do futuro
no convés suado do navio
sobram para jornadas distintas
os olhos teimosos do viandante.
Nos frutos acidulados
pendidos de árvores vistosas
sente-se o troar das divindades.
Dizem
(as divindades)
para terçarem os mantos enxutos
contra os sequazes oráculos
deitados ao deus-dará por feiticeiros.
Dizem
(os simples mortais)
que apenas interessam
a esquadria dos dias planos
o desembaraço dos rios caudalosos
o bolçar remissivo de aves varonis
os lençóis impecavelmente brunidos
a fogueira que derrota a invernia
os óculos que são caução do olhar;
sem reter os brasonados alvores
nem os amanhãs sem fundo.

13.1.17

Duas léguas

Duas léguas
consideráveis
demoradas
em rima esforçada
em desafio
ao frio
no estio
com todo o brio.
Duas léguas
bastantes
para um poema nidificar
no bolbo jugular
das léguas outras
as demandadas e das por visitar.
Consideráveis as léguas duas
em demanda das demandas
sem comenda nem águas brandas
em verso ou prosa
ciciando ou no mais puro grito
no fevereiro sombrio
no abraço outonal
à espreita no singelo umbral.

12.1.17

Perecível

Soberano querer
mais alto
do que as mais altas montanhas
orgulhosamente mostrado
sem peias
aos trovadores das algemas
sem medos nem freios.

Soberano querer
sem limites
sem vidros estilhaçados
sem portelas embuçadas
sem vozes caladas
sem embaraços por perto
sem o nó górdio de esbulhos ao acaso.

Pois ao querer soberano só importam
os deslimites
as cores anátema
os uivos esfuziantes
as pedras colhidas entre o musgo fresco.
Enquanto o nada for perecível
e a tudo vier a impressão
do imorredoiro.

#121

À boca túrgida do pesar
sem caução para visita
os dedos emproados em desafio. 

11.1.17

Jogo clandestino

As cartas gastas
as luvas embotadas
os olhos marejados
o coração fraco
o dorso arquejado
os sentidos desmaiados
as esperanças desvalidas
e o jogo clandestino;
lampejo fátuo
preces sem deus
sentindo as veias incandescentes
e a rigidez da honra esquecida
um coração acelerado
os olhos vertidos no jogo
as mãos aquecidas
e as cartas ligadas pelo húmus dos dedos.

10.1.17

Atestado

Da escola perdida
entre os estorvos do tempo
parecem braços atados ao vento
perecem as ardósias gastas
e há luzes efémeras beijadas no estendal.
Os vidros partidos
selam a perda de outrora
de um tempo junto nas mãos
agora áridas.
Ao fundo
a vila anestesiada
um velho dormindo sobre o cajado
enquanto arrefece o banco do jardim.
A bússola diurna levanta os ecos
desarmando os rituais inertes
devolvendo às pedras brancas
a chuva eterna.
Sobram as vinhas douradas
e o peito inteiro nelas deitado
ao fundo
o rio maior
em rima de amor
(em rima com o amor)
varrendo as margens que o não interrompem.
Uma alma angariada
entre montes íngremes e cascalhudos
sem medo dos lacraus
sem medo do relógio transido
sem medo da gente meã
ecoando no rumorejo do rio distante
como se o ouvisse em sussurro junto ao ouvido.

9.1.17

Farol promontório

De um farol promontório
as luvas macias da relva-musgo
e vultos inesperados em coreografias
levantando as ondas do mar.

De um farol promontório
a noite clara na embocadura do cabo
desassisando prometidos fantasmas
em voos sem rosto.

De um farol promontório
em vez de cortinas rasgadas
em vez das profundezas da penumbra
uma centelha de ouro lídimo.

De um farol promontório
cinco minutos de cada vez
sem a espera mutilante
em relógios vazados e sem ponteiros.

De um farol promontório
às voltas com demandas excruciantes
em pelejas indemonstráveis
pedras leves nos mastros ao longe.

De um farol promontório
sinais de fumo orquestrados por um solitário
e os marinheiros penhorados
inclinam-se na rota serenada.

8.1.17

Pensamento

O chapéu de aba riscada
fermenta no lugar do pensamento.
Levanta o vento mortiço,
torna-o impertinente.
Esse é o lugar do pensamento:
um sobressalto contínuo
que se desembacia do torpor
um abalo telúrico
à procura de chapéu em ideal combinação.

7.1.17

Temporário

Ocasionalmente chuva
(penumbra)
ocasionalmente o mar
(sargaço)
ocasionalmente medo
(pesadelo)
ocasionalmente as dúvidas 
(penhor)
ocasionalmente o saber
(adestrado). 

6.1.17

Depois de amanhã

A tela refém
à medida dos estroinas
que despojam as páginas
enfim alvas,
enfim nuas.
O amontoado de ruas iguais
estreita-se na severidade de uma avenida
e os mendigos limpam o suor
mostrando as rugas como feição.
Não se descobre o ouro vadio
nem promessas de deleites:
o tempo veloz amotina-se
contra
os lingotes cerrados
as mãos duras e contrariadas
as luas esquecidas
o tónico servido em copo de fino pé.
Das impressões restantes
uma talvez luva aveludada
rimando com o rio assoreado.

5.1.17

Cálculo

Jogo o jasmim
na boca do fogo
onde a rendição espera
na letargia da noite.

Abraço as abas
na lenticular nuvem
onde a radiação se coalha
no embaraço das sombras.

Reparo os rogos
na diurna água fresca
onde os rudimentos se albergam
na vertigem dos animais sem freio.

4.1.17

Moço de recados

É a chuva intermitente
a barcaça a apodrecer no lodo
sem um ocaso que se veja
sem um pressentimento estimado. 
No fojo longínquo
fugindo de um falcão destemido
esgueira-se entre os arbustos rasteiros
fazendo lembrar argumentos repetidos
(eles também rasteiros). 
O moço de recados,
intermitente como a chuva,
mostra a torpe coluna vertebral:
fala com a voz do dono
a voz que mais pagar os favores desejados. 
Afirma as desafirmações de outrora
com a desmemória que entontece
os lençóis retorcidos sua vitualha. 
A chuva continua intermitente. 
O mundo segue por todo o lado. 

#120

De que serve ser livro aberto
se não há olhos e mãos
que nele se deitem?

3.1.17

Interrogatório preliminar

Notas o aroma
que adeja sobre a cidade?
Sentes os ramos das árvores
a tremeluzirem na orla da noite?
Concebes o dia cansado
na sua estação meã?
Aproveitas o dorso do cavalo
sem medo sequer de teres medo?
Medes o estalão dobrado
que se encerra no fogo estiolado?
Assinas o livro de homenagem
ao personagem de alma estilhaçada?
Foges dos sobressaltos epistolares
até dos que se alteiam sem pré-aviso?
Abraças destemidamente
quem julgarias não poder abraçar?

Tens como hipótese
a dilação dos pressupostos?
Tens como hipótese
a fruição dos frutos sazonais?
Tens como hipótese
pegar o céu com as mãos marcadas?
Tens como hipótese
beber daquele vinho recusado?

Apetece-te apenas levantar os braços
e gritar contra o muro da noite
como se fosse urgente em expulsar demónios?
Apetece-te sufragar os desejos
numa piscina sem janelas?
Apetece-te confirmar a pele
que se congraça na tua?
Apetece-te o irreprimível pulsar
que vem por dentro de um retrato?
Apetece-te
apenas o que vier à colação de um apetite?

Apetece-te levantar o véu
a outras demandas semelhantes?

2.1.17

#119

Resgatei uma lágrima 
do mar em convulsão
enquanto me contratava
na moldura de um instante. 

Em formação contínua

Perfeita a constelação diurna
descompondo as bravatas inúteis
no chão frio.
Diria,
sem suposições frugais,
que os olhos entediados saberiam
que calendário escolher
que precisa folha do calendário
escolher.
Mesmo que estivesse escuro no quarto
e as mãos arranjassem espaço
por tentativa e erro.
Por mais
que os mastins orquestrem
a noite imorredoira
e os tomadores de chaves desfaçam
o ponto de Arquimedes
e maçadores incontinentes da palavra
furtem o silêncio esperado,
sobejam nas ogivas rejuvenescidas
as orquídeas sem tempo
à espera de vez.
Na perfeita constelação diurna,
onde as estrelas se intuem 
nas sombras do avesso,
levando ao colo
o ciciar dos pássaros
e as ondas sobrantes da maré imposta,
sem rumorejo leniente
ou arcadas disformes,
o peso do rosto levita no dorso da mão.
Quente e simples
no verbo alado de estrofes amuralhadas
admitindo as portas estroncadas
onde se queima a amálgama de lugares-comuns
e de lugares-feitos.
Até que,
com a bênção da aurora radiante,
troféus inanes não sejam disputados.

1.1.17

#118

God blind the queen. 
(And the queen became enlightened.)

Rouca a voz distante

Rouca a voz distante.
Mercê de coisas quiméricas
arrebatamentos não banais
vistas atiradas para páginas depois
pele adestrada para o frio das estepes
refeições singelas comidas no parapeito
algas colhidas ao acaso na embocadura do mar.

Rouca a voz distante
mas suficiente para o demais:
as proclamações vertiginosas
os cálices verticais
os olhos sambados
os arbustos cheios de mel
as areias recebidas no luar
as estrofes que desaproveitam preces
os beijos desatados
os filhos servidos em ouro
os braços maduros pelo entrelaçar.

Rouca a voz distante
mas voz
e
portanto
presente.

31.12.16

Pontes sábias

As pontes sábias
tangentes ao suor carregado
secam as lágrimas marejadas
vertidas em arcádias outonais. 
As pontes sábias
amarelecem páginas cansadas
ao ritmo do vinho velho
para serem mestres tutoras dos esquecidos. 
São sábias
as pontes desaproveitadas
sob os pés de gente enquistada
nos terríveis patamares da insídia. 
Sobram as sábias pontes
que recolhem no seu antepasso
os exilados das cores desmaiadas. 

30.12.16

Pecúlio

Arruaço
as ideias matrizes 
contra os embustes disfarçados.
Sem ousadias militantes
(a não ser
dedilhar os farsantes
acobertados nos lugares-comuns). 

Desajeitam-se os calibres
os pesos que precisam de contrapesos
os esquálidos contrafortes da igualdade
o verso e o reverso
as faces diametralmente descasadas. 

É pouco. 

Procuro janelas
que se desdobram em janelas outras
múltiplas janelas
abrindo-se de par em par
abraçando-se às aragens diversas
as que têm origens acima das contagens
janelas de ogivas férteis. 

Procuro corredores largos
onde o pensamento se espraie 
em seus deslimites. 
Corredores
atapetados pelos olhares múltiplos
em sintaxe esperanta 
no desembaraço de espíritos desacorrentados.

#117

God slave the queen.
(And the queen became atheist.)

29.12.16

Demiurgo

Um plano misturado pelas mãos
enquanto os ossos das montanhas arrefecem
e os bastardos penhores do fogo
montam cerco.
Não saberia dizer aos olhos ávidos
se não fossem os montes à mão de semear
como se a mão neles pudesse pousar
a agarrá-los.
A paisagem não foge.
As mãos trémulas
têm de a encontrar
num sortilégio a desfazer.

28.12.16

Arrefecido

A mostarda ao nariz
o mastro arrimado
as nuvens escurecidas
o amuo no estirador
e a culatra em pulgas.

Não adianta.
O nariz já se consumia
em sua perfunctório ensimesmar.

As regras encavalitadas
o suor sem préstimo
as imitações pueris
os poços poeirentos
e as maças apodrecidas.

Não adianta.
A camisa-de-forças
era estertor bastante.

27.12.16

Sobreiro professoral

Debaixo das cicatrizes
o velho sobreiro medra
um invejável elixir.
Não sabem da poda
os poltrões citadinos
disfarçados em farpelas
congeminadas por bisturis.
De hoje para amanhã
dandies ocultos fruirão
nas margens dos montados.
Deem-lhes bolotas
que já estão habituados.