8.2.17

Obra feita

Ah! as vendas cerzidas nos olhos
bestas em desvirtues constantes
triunvirato:
sede
precisão
perseverança. 
Daqui de onde vejo
estandartes lisos na aurora bastarda
vontades rombas
ironias próximas
pesares desconvocados. 
Aposto no sapato sem chão
apesar das nuvens altivas
apesar dos estorvos encostados ao cais
na miríade de olhares em maré contrária. 
Daqui para a frente
demito as resoluções firmadas
no embaraço das pontes fugidas. 
Não aprovo o sal gasto
que leva vantagem sobre a chuva negra
nem tiro da algibeira as moedas sobrantes
para gáudio dos artífices das justiças
sem deuses. 
Chega-me um olhar:
terno
recolhimento
semente. 
Daqui de onde parto
sei que chegarei a lugar ermo
e seguro. 
Os patamares que se levitam
por cima das nuvens
são o agasalho que espero. 

#135

A manhã desmaiada
curva-se na demora
vertendo o vinho macio.

7.2.17

#134

A matriz quadrada da transgressão
é uma espada fria
arrancada à carne fervente.

Tornas

Nada sem uma parede baça.

Os braços desatados atemorizam-se

O cavalo acobreado ajoelha-se, cansado.

Beatas adolescentes esganiçam cantorias.

O soalho molhado está escorregadio.

O autocarro solta muita poluição.

O senhor ministro assoberba-se.

A ave pernalta beberica algo.

As páginas do jornal não recomendáveis.

O senhor doutor ostenta bata e estetoscópio.

O mendigo operacional vagueia na noite.

Dois documentos perdidos alojam-se na valeta.

A caixa do medicamento no banco do jardim.

O bancário passeia a gravata nova.

A escuridão do dia mete dó.

As mãos que batem à porta, sujas de cimento.

A bibliotecária exaspera-se com o burburinho.

A realidade paralela.

O ócio perene.

A fartura de predicados, justapostos.

Sem adiamentos possíveis.

Só pele pura na alvura da neve.

E a beleza sem peias.

6.2.17

Proveito

Na armadura à prova de lagos
com o sextante no bolso
os óculos de aço embrulhados
o violino que não sei tocar
e o bornal cheio de estrofes.
Tiro as maduras medidas
na varanda do sol.
Cicio umas palavras
– umas quaisquer,
as que vierem ao alpendre –
e proclamo,
com solenidade,
os aventais subidos aos cotovelos.
Talvez não saiba
o que estou a fazer.
Talvez sejam as folhas sujas
(da sujidade das ruas)
que atropelam o pensamento audaz.
Lá que isso não interessa
é a profecia mais célere
que sobe ao púlpito da vontade.
Volto a olhar para o que vem ao olhar.
Apreciando.
Com estes olhos-matilha
inquietos
nunca assoberbados
como se fossem bandeiras lambidas pelo vento
pródigos porta-vozes das distintas medalhas
que esperam por vez.
Às tantas,
digo em silêncio
(rompendo o silêncio armilar):
oxalá estivesse o pensamento calado
furtivo no calado do silêncio.

#133

Podemos dizer
sem que a vergonha escorra da boca
que somos insurgentes no trânsito
do desejo?

5.2.17

Ondas

Já não há ondas iguais
no desfeitio que as premeia
no dorso de um cavalo sem rosto.

Das ondas iguais
sobrou a memória travada
e a sua perfeita infrutuosidade.

Quando eram iguais as ondas
a previsível estátua ditava o horizonte
e tudo era destituído de sal.

Eram as ondas sem sal.
As ondas sem frutos para dar.

4.2.17

Má paisagem

Era só uma paisagem
sem se distinguir
(para não dizer: monótona),
mas ponto de passagem.
(E este “mas” era,
só por si,
devastador.)
Em vez e procurar terreno de caça
em vez
de ir parar à rede em forma de presa
melhor fosse que descesse os olhos
em sistemática procura das armadilhas.
Mal maior não faria
em vez
de apoucar a paisagem repetitiva.

3.2.17

Páginas brancas

Páginas brancas
em respiração maresia
sem cortar as veias à claridade.
Brancas as páginas
barradas as palavras
num silêncio não orquestrado
banquete de frutos falados.
Houvesse o que houvesse por dizer
as brancas páginas não deixavam;
nem era preciso dizê-lo:
o olhar por dentro dos olhos,
terapia bastante.
Um olhar destes
percutindo no olhar outro
o pulsar acelerado das veias
mantinha as páginas em branco.

#132

Paredes-meias com a fome trivial
o sargaço das ondas
no restolho da tempestade
e a evocação de precipícios falhados.

2.2.17

Postiço

Dente maior
em boca pequena
é pólvora estéril
deserta de significado.
Cães magros, famélicos
em uivos sucessivos
gesta da mesma provação.
Mastodontes sem músculo
eruditos à procura de cultura
navio sem rumo em demanda de farol
um naco de pérolas de pechisbeque
e a gastronomia em cima do joelho,
às três pancadas.
À procura de folheto informativo
enquanto oitenta versículos
se ensaiam numa folha amarrotada.
O dente maior
perdeu o maxilar.

#131

Não traves
a lava que incandesce nas veias
ou acabarás por suplicar
o desfreio das mordaças. 

1.2.17

#130

Ah, a cortesia
o cânone inútil
da deseducação. 

Francisca

E agora
que o grande carrossel da vida
se entreabre aos teus olhos,
tens-te num berço
no anteparo do carinho todo
– do carinho de que és credora. 
Agora
que recebes nos braços
o grande carrossel da vida
irradias os mares com o teu aroma neófito
e deitas-te à vida que por ti espera.
Antes que saibas cantar palavras
fazes-te saber pelo choro, 
o melodioso canto
harmonia dos infantes banhados em inocência. 
Um tapete espera os teus pés
e o olhar decerto curioso
intrigado com as coisas novas 
que o fado te destinou. 
Ao teu redor
um bouquet de flores de muitas cores
transpira a beleza 
que do teu sorriso há de fruir. 
Um prontuário para nós,
os (que te são) queridos e te falam à alma,
para reaprendermos os rudimentos de ser
com a tua ainda tão breve e fresca vida. 
No leque de sóis resplandecentes
és, Francisca,
a mais recente musa. 

31.1.17

#129

Nem facas afiadas
nem terramotos tiranetes
nem marés vivas:
nada se opõe
à inteireza-ossatura.

Os eleitos

Das folhas frescas
no parapeito do orvalho
sobra um pedaço da manhã
como se houvesse carestia 
em lembrar a manhã. 
Num amontoado de nuvens rasantes
medra o néctar procurado
os dedos ungidos por préstimos não sofríveis
o peito cheio de vida cheia
um desfiladeiro apreciado desde o fundo vale
um caule decadente de uma flor 
arrancada ao chão
as pessoas de cujas vidas se sabe nada
um nada concentrado nas páginas não abertas 
de livros que esperam vez. 
Oxalá o chão fosse atapetado 
por pétalas lilases
pétalas que derrotassem os pesares amorfos, 
que não capitulam. 
Como se fosse preciso
levantar estátuas imediatas
a heróis sem probabilidade,
eleitos sem eleição
no mais puro hiato
entre a indolência dos povos
e uma soberba linhagem
sem gente por representação. 

30.1.17

A chama

Pois,
a chama.
Delicodoce.
Como um abraço.
Sentinela.
Na atalaia urgente.
Com os braços quentes
sem estiolarem no inverno.
A chama.
No crestar dos ramos secos
a fogueira repleta.
Sem chama vivaz
o pasto mortiço.
E na chama
as sementes loquazes
um esteio escorado
as cinzas testemunhas
o dorso orgulhosamente retesado.
A chama que chama
pelos corpos serenos
em sua feição celeste
domadores dos mares irados.
A chama, pois.
Trezentas noites urdidas
sem a pele macilenta
apenas por dentro dos olhos ardentes
dos olhos que resplandecem
a chama.
Leva os latidos dos cães vadios
levanta o abraseado da alma
limpa os corredores esquecidos do pensamento
nas levadas alcantiladas
nos sopés majestosos
nos luares quiméricos
nos lugares vazios, até.
Sem a chama
condenação ao arrefecimento global.

#128

Contra os testemunhos capazes
mordi a pele dura dos demónios
numa elegia aos contratempos. 

29.1.17

Marégrafo

Será que somos como nós
– a pele escondida
feitios vorazes
cores embebidas
vinho que não se adia
olhares sobre as coisas
corpos transidos?

Não importa
se somos como a linhagem herdada.
Só importa
sermos o que vier na rede
no púlpito da vontade
no sereno beijar do mar às pedras do cais.

Juramos não atraiçoar
a não ser a linhagem reverberada,
de dentro para fora.
Até que os impolutos jurados
sentados na sua sentida cátedra
se desmoronem corroídos por uma podridão
do tamanho do seu atavismo.

Nós somos fautores
dos nós que em nós de desatam
e repercutimos na tela as tenções que marejam
nos interstícios das veias.

28.1.17

Alpinismo

Um dia
subi a um choupo
(logo eu,
que nunca havia trepado a árvores)
um choupo centenário,
a julgar pelo porte.
Vesti
a roupa mais grossa que tinha
(apesar de ser um dia de verão)
e levei dois livros ao acaso
e um agasalho para a chuva
(não fosse demorar-me
no cimo da árvore).
Lembrei-me dos gatos
que sobem céleres às árvores
ao fugir dos cães famintos.

27.1.17

Epicentro

Imaginasse um epicentro
onde todas as coisas abrissem as asas
asas em que fosse possível deitar
e deitado voasse sobre um mapa.
Do epicentro
partiria com sede do mundo
dos idiomas desconhecidos
e dos rios e estradas e paisagens em espera.
Seriam,
esses lugares,
meus epicentros nómadas
em constante mudança
em constante demanda.
Pois o epicentro
é o lugar de onde nos vemos
numa certa medida do tempo.
Seria o trunfo ágil
para uma ataraxia
(que se força)
clandestina.

#127

Não é distante o céu
quando à mão
temos a terra que apetece.

26.1.17

Arco do triunfo

Balbuciam
as cores entranhadas
em coros sem rosto
em árias pontuadas por grilhetas sem nó
em nós,
que sabemos ser ouvintes.
Coram na aposia irrecusável
em iracundo devaneio
contra as paredes estimadas
contra o vento sem freio.

Talvez se saiba à noite
as cordas atenuadas do sopor
as imagens diáfanas de crianças sem maldade
as montanhas sucessivas sem firmamento
e o rio estroina que escarva seu caudal.

Quem sabe
as feridas insanáveis sejam sinal?

Desaproveitem-se
elogios-marasmo
engodos que espreitam nas esplanadas
sapatos sem tamanho para os pés
ideias em saldo
betuminosas personagens desinteressantes.
Os murmúrios quentes
afagam o sono adiado
e os olhos fundos chamam
no chamamento mais fundo de que há saber.

Diante do resto
tudo é menoridade
tudo é pasto sem seiva
tudo é mar sem vista para a cidade.

Oxalá não haja mapas queimados
entre o restolho do outono
e o olhar fundo,
emergindo das funduras da alma,
coabite na perenidade do tempo.

25.1.17

#126

“De fonte segura”
– garantia o plumitivo.
Apiedei-me das fontes em escombros,
as pobres,
sem direito a meia palavra.

Céu limpo

O sorriso maresia
destapou-se do baú empoeirado
na cintilação própria dos predestinados. 
Não queria saber dos dizeres alheios
nem das lotas onde se mercavam rumores. 
Não queria nuvens ácidas
nem bastiões de certezas impagáveis 
nem teclados adivinhados
nem adivinhas sem paredes.
O sorriso desfraldado
(discreto, porém)
era o trono vívido
nas Mecas inventadas ao redor do luar. 
O património inteiro
guardado a sete chaves
dos azougados discípulos das árvores citadas
por cima dos sussurros
na esteira fundeada ao mais fértil chão. 

24.1.17

Fio de prumo

Em tempos
fui arquiteto das estrelas.
Depunha as mãos numa mina seca
e conseguia trazê-las molhadas
deixando água aos vindouros.
Em tempos
cinzelando as arestas das estrelas
fermentei o sal das dunas
sob o olhar inquisidor do sol superior.

À maresia
ia buscar as lágrimas
enxugadas contra as rugas da fazenda gasta.
E nem que visse crianças em prantos
as bainhas da alma se descompunham:
tal era um estado transitório
pois não há água que chegue no mundo
para prantos imorredoiros.

Os tempos
em que fui arquiteto das estrelas
não findaram.
Só que hoje
na bússola do tempo
por entre as traves encardidas dos bosques
e as ruas estouvadas das cidades
vagueiam almas vadias
almas impertinentes
almas que desajustam o tear dos auxílios.
Não precisam de estrelas para nada.

Ainda bem.
Era oneroso ser arquiteto das estrelas
e ter por esteio os lamentos dos outros.

23.1.17

#125

Não, há crise.
Não há, crise.
Não há crise.
Não à crise.

Cabo frio

Sabia o norte tecido
sem as rugas por ilhas
sem órfãos de ideias por perto
nem nas ilhargas sobressaltos outros. 
Tinha tudo ajuramentado
aos propósitos mais elegantes
(se à alma
alguma elegância pode ser adjunta).
Desembarquei entre os demais anónimos
sem saber deles as diferenças
sem me importar com seus fados. 
Ao primeiro golpe da alvorada
estimei sob meu corpo 
as veias crestadas precisas
para uma ignição. 
Não julgava ter o erro de estima
por companhia. 
Não julgava ter de hastear
a bandeira sem cores
a bandeira surda do tempo finito. 
Depois de passadas em revista
as páginas imerecidas
trouxe nas mãos as pétalas violeta
o sufrágio atilado da lua maior

22.1.17

Aquoso

Não era a chuva fantoche
que me importunasse.
Desci à chuva
o corpo suado por ela
em forma de janela aberta
e a chuva a entrar toda
sem pejo
sem limites.
Os instrumentos agraciados
fugiam das mãos
e um sonho vertido em pesadelo
enxaguava a água excessiva.
Tudo lavado
entretanto
e o peito preparado para outras
intempéries.