21.2.17

Máscara

Uma máscara
descida sobre as mãos nuas
uma reticência
rasto assombrado dos vãos desditos
sem supor o viés de tudo.
Tirando os dementes
que cursam a apoplexia dos dias
talvez sejamos o pasto verdejante
dos poderosos
– e sabemos.
Não se reclamam os impropérios
na endemoninhada inércia dos membros
como se uma anestesia geral tivesse chovido.
E, porém,
somos apenas de nós mesmos
(em pertença falando)
no jogo que se joga nas balizas da vontade
sem o jugo exterior
sem a paráfrase dos poderosos
que se deita sobre a nossa vontade.
Máscaras
usam-nas os que se escondem
nos ardis do poder.
Nós,
tutores do despoder
não carregamos máscaras
a não ser o rosto nas rugas transientes.

#143

A bombordo
no bom bordo
o bom bardo
aborda a boda
e a barba à borda.

20.2.17

Entronização

Sem saber nadar
atiro-me para dentro dos teus olhos
o poço de águas leves
a carne quente onde repouso
no beijo macio que traz tempo de volta
e os olhos que marejam no cais sentinela
algures numa lua sem freio
onde somos despojados por decreto nosso
sem as vestes por defeito
apenas corpos em entrega
e o mergulho nos olhos recíprocos
com o sal quimérico
o suor doce
as camas desfeitas
as roupas perdidas
as montanhas transfiguradas em planície
os navios dos nossos olhos quentes
onde selamos o baluarte de nós
desatando os nós túrgidos
as alfândegas a destempo
as flores metidas no seu avesso
os lençóis frios à espera de fogo
em tempo sem tempo de que somos reis
num palácio sem mapa de que somos tutores
sem mais nada lá fora
a não ser o que os nossos dedos desenharem
num dote ímpar.

#142

Ouvir as folhas que estrelejam,
andarilhas no fogo fingido,
e beber os vinhos próximos do rosto.

Medir o pulso

É este o teu pulso
a moldura sem freios
penhor de todas as coisas
em compasso com as flores campestres?

O quebrar das ondas
sussurra aos destemidos arrais
sobre o dorso cansado dos mercadores
que vêm ao mercado de vazias mãos.
Julgo saber
(das horas escritas em finas pérolas
dos contrapesos em orações derramadas
com a grave servidão das lágrimas)
que a multidão se inclina às solenidades.

Que interessa a grandiloquência
se continuarmos sitiados pela gravidade da pose
sem a pose quadrar com o avesso das costuras?

Não sei
se hei de convocar os súbditos distraídos
ou proclamar versos sem forma
ou apenas jurar aos ventos futuros
que o pulso imaleável é venal.

19.2.17

Desdeus

“(...) because God won’t do it and we are going to play God here.”
Tennessee Williams, The Night of the Iguana.

Não faças as perguntas venais
as que enxugam suas próprias lágrimas
sem o remédio dos patronos verificados.
Não dependas de juras largas
nem de oxalás penhorados
em lençóis de fino linho.
Não julgues que a bússola se avariou
na temente exaltação das respostas a tudo
sob a pena do arquiteto mor
do dom da omnipresença.
As empreitadas por fazer
e a gente toda à espera de um sinal
de um milagre
e da empreitada que se resolve por si.
Desenganam-se.
Descobrem que elas estão no papel
que esperam da divindade.
Não podia haver
maior demissão de deus.

18.2.17

Ábaco

Os frutos sobrantes nas árvores
depois da safra
antes de apodrecerem
antes de as folhas caducas
despirem as árvores. 
O outono cicia nos ramos frágeis
no exato estertor de amantes trespassados
pelo rumorejo incessante do rio ao longe. 
Os frutos senescentes
não são cadáveres sem proveito:
fundem-se no húmus 
em presságio de quimeras extasiantes. 
Que os amantes trespassados
não protestem com prostrações ocasionais
(que o desamor não é elemento constante). 

17.2.17

#141

Não temos ideias soalheiras:
se não andamos de cartola
como sabemos dos coelhos?

Palco

Atrás do palco
onde as nuvens respondiam pelo nome
“sombras”,
sem os estorvos da decência
nem os sobressaltos da heresia,
as nuas pessoas tiravam das vestes
um módico de singeleza.
Depois
quando o palco voltava a ditar leis
e as vestes eram verniz baço
sobejavam as coisas artificiais
as palavras urdidas
os passos projetados três casas à frente
a genética soberba de tudo o que não conta
e o esquecimento de haver atrás do palco.
Quando foram procurar o que o palco escondia
encontraram um amontoado de cinzas
vidros estilhaçados
e o rigor mortis do oblívio.
Depressa desaprenderam
o que havia atrás do palco.
Até que o palco se tornou lugar único.

16.2.17

Suor frio

Éramos
tangência imparcial
uma concentração absoluta de vontade
émulos dos heróis que víamos por dentro
monumental simplicidade ao vento
tronos à espera de vez
sentados nas cortinas ajardinadas.

Éramos
suores lavados nas fontes
correria fruída na praia deserta
corpos exsudados no miradouro trespassado
estrofes tingidas pelos lírios atónitos
sem medo dos medos
com a audácia da destemperada idade louca.

Éramos
donos da voragem do mundo
arquitetos do tempo aprisionado entre os dedos
tesouros desembainhados na foz do rio
desvarios eloquentemente lúcidos
tradutores de almas tresmalhadas.

E agora
somos ainda mais.

#140

Diante do ocaso
como se fosse o avesso da alvorada
estimo os pesares sem caução. 

15.2.17

Desafio

Subiu a parada.
Não aceitou a esmola
insinuando indigência ingrata.
Pegou no corpo
quis levá-lo longe,
onde nunca fora.
Não havia aspiração desenhada em papel
nem loucura bastante
para tirocinar empreitadas vãs.
Que fosse um desafio
– como desafios vêm ter a toda a gente.
Não contou a ninguém.
Seria um segredo
dentro do cercado que era seu limite.
Subiu a parada.
Ao começo
sentia o pulsar acelerado do sangue
como acontece com o desusado.
A decisão estava tomada.
Subida a parada
exigiu-se responder à altura
sem ser refém da timorata indecisão
sem se intimidar
com o chamamento de retrocessos.
Subiu a parada
e já não havia nada a fazer
a não ser levar o corpo ao seu encontro.

14.2.17

SMS (Save My Soul)

Âncoras que reluzem impecáveis
sob o sol duro do estio durável.

Ou apenas
navios que não gastam o mar
enquanto dão as mãos às ondas vadias.
Gémeas almas
entrelaçadas nos nós macios do amor.
Gémeas almas
que cruzam olhares
deitando feitiços nos objetos entesourados
olhares que consomem desejo.

Ou apenas
um beijo atapetado no rosto suave
um peito aberto como cais
um livro inteiro com páginas consagradas
o ouro cheio na garrafa guardada
e o mar que enche a janela sem freios.

As homenagens são-nos tributadas
na multidão que somos nós
sem os embaraços dos rostos fugazes
com a medida certa da inscrição que deitamos
num poema fervente
num poema em feitura contínua.
Pois somos a medida inacabada
do todo que congeminamos em mar perene.

Não desejamos ao tempo
se não a mesma ânfora vivaz
que nos traz numa constelação sem adjetivos
a não ser o substantivo inderrotável do amor.

E eu,
no promontório prometido
penhor da quimera onde me tenho
na gratidão sem fim ao amor que me tens.

#139

Tiro a água do chão
com as mãos descarnadas
dos invernos cautelares. 

13.2.17

Velhos

A quadrilha dos estonteantes velhos
pratica estragos.
Contra os açoites das artroses
dos ossos cansados e das vigílias desamparadas
perseveram no umbral dos relógios
denunciando a conspiração que se orquestra
(a conspiração que sussurra a decadência).
A quadrilha desmonta
o pueril arsenal dos jovens
a arrogância viril
os artefactos desarmadilhados
o fogo de vista que nada incendeia.
Atira-se em pose terrorista
contra os aldrabões do império
que congeminam contra a senescência
– o fio de cobre que ata a vontade
quando ela sucumbe ao trovão mestre,
o chamamento sem recusa.
Em quadrilha
hasteando os frugais, mas estatutários,
estandartes da experiência
rebelam-se contra
a indolência
a anestesia geral dos estados servis
a lã lavada em fontes imprestáveis
a preguiça do pensamento
a indiferença do conhecimento
o sal mendaz das litanias próximas
o coágulo tirano não coado.
A quadrilha dos estonteantes velhos
prova
que os velhos,
os legítimos velhos,
se albergam algures
nas paredes falsamente frondosas
e, todavia,
destituídas de interior.
E gritam,
os membros da quadrilha:
só à velhice darão de barato
quando a morte lhes ganhar no braço-de-ferro.

#138

Not at all.
Not a tall.
Not a toll.

12.2.17

#137

(Dia de rosto caído)
Da gramática perfeita
paisagens escuras, rombas, vetustas
acabariam por ser extintas.

Código de conduta

Derramado o vinho fundo
nem os panos novos serviam
para costura das veias sangrantes.
Li
de trás para a frente
os manuais a preceito;
reli
os parâmetros dos instrumentos interiores
só para ter a certeza
se as bainhas quadravam certas.
Se ao menos
o vinho derramado tivesse aproveitamento;
se ao menos
o palheiro ermo não desautorizasse o porfiar;
se ao menos
no fundo vítreo do copo
os resíduos do vinho fundo
tivessem reinvenção:
a auréola das quimeras
seria página certa das inscrições tumulares
e os despojos sem emprego
retornavam ao parapeito das visões estrelares.
Não haveria luar profundo
nem noite madraça.
Apenas o eu inteiro
e a promessa
de não ajuramentar promessas.

11.2.17

Caça fina

Contavam-se entre as rugas dos dedos
as manhãs roubadas
as frutas deixadas ao deus-dará
a água disfarçada
a emblemática ossatura dos freios
a fleuma sem atilhos.
Todavia
um embuste subia a cena
sob o verniz flamífero.
O que de outro modo
se apresentava como pose donairosa
era apenas um devastador ardil
um poço sem fundo onde não havia água
um tremendo nada.

10.2.17

Piscina olímpica

Da espada mundana
em vértices azimutes
os dedos erguidos em carne viva.
Desossada a ira sem mercado
sobram as raízes fundas das árvores,
das hirsutas árvores
prometendo um anoitecer mendaz.
Digam o que disserem,
em estio contumaz
(tirando proveito de vagas metonímias)
os aprendizes desembaraçados,
continua renitente o não às demandas.
Podia ser que as nuvens finas encobrissem
as estátuas solenes dos estadistas pueris
e os pássaros estroinas voassem ao desbarato
enquanto as crianças brincavam aos poetas
– para tudo quadrar numa rima absurda.
Tudo teria sentido alferes
sem o caos edificante das coisas serenas
ou o verniz das fábulas com a dobra do mofo.
Do dia para a noite
vieram paulatinos penhores do que diziam ser
a verdade;
era escusado:
as espadas irrompiam das nuvens finas
dando cerco à feitura dos compêndios,
tirando estima à medida da verdade.
Sobravam as páginas em branco.
A alvura
à semelhança da neve prometida.

#136

(Dia sorridente)
Sentinela
do deslumbrante, inesperado teatro
que desfila à frente dos olhos.

9.2.17

A outra margem

Um rio-ponte
desfaz-se no remoinho das pedras varonis.

Deixa de ser ponte.

E,
todavia,
um clarão-surpresa
confere a centelha das ideias.
Não intimida,
o caudal voraz:
as braçadas serão fortes que cheguem.

Dirão que só um endemoninhado
mistura o corpo com aquelas águas
irascíveis e geladas
possivelmente refúgio de rochas pontiagudas
rochas de atalaia
prontas a usar o punhal
que das extremidades se funde com o caudal.

Não interessa o que possam dizer.

Em boca de cena
contra os gemidos de amedrontados curadores
mesmo com a roupa em cima do corpo
mergulha na correnteza desenfreada.

Em sendo mais desenfreado
venceu no braço-de-ferro.

A outra margem era apetecível.

8.2.17

Obra feita

Ah! as vendas cerzidas nos olhos
bestas em desvirtues constantes
triunvirato:
sede
precisão
perseverança. 
Daqui de onde vejo
estandartes lisos na aurora bastarda
vontades rombas
ironias próximas
pesares desconvocados. 
Aposto no sapato sem chão
apesar das nuvens altivas
apesar dos estorvos encostados ao cais
na miríade de olhares em maré contrária. 
Daqui para a frente
demito as resoluções firmadas
no embaraço das pontes fugidas. 
Não aprovo o sal gasto
que leva vantagem sobre a chuva negra
nem tiro da algibeira as moedas sobrantes
para gáudio dos artífices das justiças
sem deuses. 
Chega-me um olhar:
terno
recolhimento
semente. 
Daqui de onde parto
sei que chegarei a lugar ermo
e seguro. 
Os patamares que se levitam
por cima das nuvens
são o agasalho que espero. 

#135

A manhã desmaiada
curva-se na demora
vertendo o vinho macio.

7.2.17

#134

A matriz quadrada da transgressão
é uma espada fria
arrancada à carne fervente.

Tornas

Nada sem uma parede baça.

Os braços desatados atemorizam-se

O cavalo acobreado ajoelha-se, cansado.

Beatas adolescentes esganiçam cantorias.

O soalho molhado está escorregadio.

O autocarro solta muita poluição.

O senhor ministro assoberba-se.

A ave pernalta beberica algo.

As páginas do jornal não recomendáveis.

O senhor doutor ostenta bata e estetoscópio.

O mendigo operacional vagueia na noite.

Dois documentos perdidos alojam-se na valeta.

A caixa do medicamento no banco do jardim.

O bancário passeia a gravata nova.

A escuridão do dia mete dó.

As mãos que batem à porta, sujas de cimento.

A bibliotecária exaspera-se com o burburinho.

A realidade paralela.

O ócio perene.

A fartura de predicados, justapostos.

Sem adiamentos possíveis.

Só pele pura na alvura da neve.

E a beleza sem peias.

6.2.17

Proveito

Na armadura à prova de lagos
com o sextante no bolso
os óculos de aço embrulhados
o violino que não sei tocar
e o bornal cheio de estrofes.
Tiro as maduras medidas
na varanda do sol.
Cicio umas palavras
– umas quaisquer,
as que vierem ao alpendre –
e proclamo,
com solenidade,
os aventais subidos aos cotovelos.
Talvez não saiba
o que estou a fazer.
Talvez sejam as folhas sujas
(da sujidade das ruas)
que atropelam o pensamento audaz.
Lá que isso não interessa
é a profecia mais célere
que sobe ao púlpito da vontade.
Volto a olhar para o que vem ao olhar.
Apreciando.
Com estes olhos-matilha
inquietos
nunca assoberbados
como se fossem bandeiras lambidas pelo vento
pródigos porta-vozes das distintas medalhas
que esperam por vez.
Às tantas,
digo em silêncio
(rompendo o silêncio armilar):
oxalá estivesse o pensamento calado
furtivo no calado do silêncio.

#133

Podemos dizer
sem que a vergonha escorra da boca
que somos insurgentes no trânsito
do desejo?

5.2.17

Ondas

Já não há ondas iguais
no desfeitio que as premeia
no dorso de um cavalo sem rosto.

Das ondas iguais
sobrou a memória travada
e a sua perfeita infrutuosidade.

Quando eram iguais as ondas
a previsível estátua ditava o horizonte
e tudo era destituído de sal.

Eram as ondas sem sal.
As ondas sem frutos para dar.

4.2.17

Má paisagem

Era só uma paisagem
sem se distinguir
(para não dizer: monótona),
mas ponto de passagem.
(E este “mas” era,
só por si,
devastador.)
Em vez e procurar terreno de caça
em vez
de ir parar à rede em forma de presa
melhor fosse que descesse os olhos
em sistemática procura das armadilhas.
Mal maior não faria
em vez
de apoucar a paisagem repetitiva.