16.1.20

#1350

Ao longe
o mar
a aurora dominante
o estuque da noite que se estilhaça.

15.1.20

Reivindicação

Diz do dia diamante
o verso e a volúpia
dos amantes. 

Abraça o abrigo
em que são mestres
os lídimos ilustradores do amor. 

Amanhece no amaciado rosto
alisa as páginas do alimento
na incontroversa fala sem infâmia. 

Arredonda as arestas ajuramentadas
no vocábulo vindicado à vibrante pele
e arremata os miasmas com as mãos atadas. 

Apresta-te ao pecaminoso lugar
em dissidência com a diuturna sedição
e deseja o desejo na rima do devaneio. 

Opõe-te à maré macilenta
oferece ao mar uma amarílis fulgente 
e contraria as juras contrárias ao teu vagar. 

Deixa uma deixa como pressentimento
em sinuosos sinalagmas da sede
e expia o escafandro da residual melancolia. 

Descobre a medula destinada
açaima as sucessivas camadas de medo
e atira-te, intrépido, à tez do mundo.

#1349

Jura sem prazo:
não deixar a um marginal papel
tudo o que as palavras não dizem.

14.1.20

O outro lado da trincheira

A regra insinua-se
ditadura de si mesma
no santuário onde colhe suas vítimas. 
Não afrontem os demónios escondidos
os vultos que atiram sombras sobre a lua
não hostilizem os pederastas do futuro
em seus solilóquios perenes
que devastam as árvores frondosas
e a paciência. 
A regra faz-se convencimento
narrativa de autojustificação
a favor dos usos
fazendo cânone em cima de cânone
até que,
obedientes,
sejamos aura sem nome
identidade numérica
pessoas despojadas de rosto
liberdade despojada. 
Conseguimos 
ser guerrilheiros em causa própria
obrigatoriamente em causa própria
e desinvestimos as regras de seu altar
tornando-o a praça indigna
a que cuidamos 
despertencer.

#1348

No refúgio da solidão
somos um corpo descarnado
órfão em demanda de astrolábio.

#1347

Underway.
On their way.

13.1.20

Escatológico

A matilha fareja os arbustos
espera por uma centelha
para o começo da caça. 

Sobeja 
um pouco de fome
nos intervalados esgares do sol
calçados no frio invernal
e a matilha persevera
convencida 
que a demanda não será um logro. 

Batizam as presas
mal as encontram
e elas, 
não podendo já fugir,
constituem-se banquete
nos em breve retalhados corpos
pelas bocas famintas e egoístas
de cada indivíduo da matilha. 

Altura em que 
a matilha deixa de ser matilha
cedendo à plausibilidade de cada ser,
cegos pela fome que urge matar
depois de mortas as presas
feitas presas
para matarem a fome da matilha
antes que a matilha 
seja presa da fome
e assim por ela seja morta. 

*

Rescaldo do documentário.

O petiz pergunta ao pai
se tudo se reconduz
(não terá sido 
o termo usado pelo petiz)
a matar, 
a morrer,
ou a ser morto por algo mortal. 

#1346

Queria a contumácia,
a responsabilidade invisível
(uma espécie de taluda). 

12.1.20

#1345

O homem sobe ao corpo da maresia
bebendo da sua própria
fragilidade.

11.1.20

#1344

O idioma rico
o dicionário do desejo
o desejo.

10.1.20

#1343

Pluvieux,
plus vieux
l’âge de l’hiver.

Calibre

Convoco o estreito pulsar
o sangue avivado no termómetro da sede
em janelas revisitadas no ocaso invernal
e digo
sem pesar
que não sei de mim 
se não no lado estrénuo em que sou
luar inteiro, 
irradiado sobre o jardim de jasmim
onde se congeminam as pétalas do porvir.
Não sei do tédio
nem das gravatas de outrora
agora que me sei desabilitado
na desenfreada sede a que me dou
contra as probabilidades do medo.
Levanto os braços
recolho um pedaço do céu livre
e dele enredo as páginas vocabulares
os aromas válidos
e da boca 
sei balbuciar uns versos estreitos
na síntese do sangue que amanhece em ebulição. 

#1342

Hoje há noite. 
Hoje à noite. 
Hoje, à noite.

9.1.20

#1341

Mal me digam
os apóstolos da decência
se dela me arrancarem ao peito.

Às lágrimas

As lágrimas
são pedras no ângulo vivo do olhar
a defeção da lucidez
ou 
o custo imperativo dos sistemas adaptativos.
Os olhos ruborescidos
provam a incandescência das lágrimas
as suas arestas vivas
o forno lenticular onde se incensa a maturidade.
Às lágrimas
dizem os corajosos um contundente não
escondendo a mitomania em que se debatem
outra tremenda pedra,
desta vez encravada 
onde a alma tem medula.

#1340

O fado venal
órfão de impressão digital,
espelho do tempo contrariado.

8.1.20

Página 43

Procurei o número da página:
43.
Não sei 
por que era este o número em demanda.
Nunca acreditei no sortilégio das coisas
nem dos números
e a cabalística dos algarismos
foi arte que sempre me foi estranha.
43, 
todavia.

Abri um livro na página 43:

O sal quente
no dorso do miradouro
inflama a língua
e em seu intumescer
coabita um frémito
como se nos fosse dado
renascer
as vezes que fosse preciso.

Saltei a página.
Era uma página em branco.
As crianças emudecem 
na parafernália dos lúdicos gestos
a coreografia de liberdade espontânea
que rima
com o desconhecer de muito 
– o seu maior capital de confiança.

Abro outro livro na página 43:

Anotei os versos combustíveis
o estribilho em maré alta
a recusa da fala proibida
a recusa dos corpos ausentes
e trouxe do fundo do mar,
onde se lançaram minhas mãos trémulas,
as sereias fundidas na fina areia
as promessas de ocaso sem dor
o salvo-conduto que não caduca.

Sobrei de mim mesmo
sem despojos
sem ruínas como mostruário de decadência
o corpo enformado na validade distante
e cantei o que me apeteceu
deixei o corpo banhar-se no mar álgido
sem me parecer álgido
e perguntei
se não seria anestesia ou hibernação
ou apenas
a criteriosa evasão do fogo circense
do fingimento indigente,
recolhendo em meus braços
a penúria da modéstia
o sal amestrado da maresia sem freio
o peito fartamente generoso.

Perguntei
e da página 43
do livro consecutivo
transpareceu o segredo:

Amanheci 
no impudor da alma farta
cobrando ao porvir os juros sem tabuada
e no santuário de meu corpo
repousa o suor desejado
a mortalha que esconde a nudez
a boca que segreda os beijos carnais
entre a violência da noite
e o irredentismo do dia fulgurante.
Dei-me 
ao dia imensamente adjetivo
e das páginas ímpares retirei os verbos
só para ler as estrofes mudas
o texto amputado
e, imprevistamente, 
ninho de uma clareza singular.
Amanheci
no amparo de uma mão não minha
sentindo o ardor da carne ao meu lado
e selei 
com a boca sôfrega
o compêndio do veemente desejo.

#1339

O rastilho
por fora
à espera da geada.

#1338

À sorte.
            (Contingência)
À sorte.
            (Chamamento)

7.1.20

Taxa de câmbio

Atiro
a moeda ao ar.
O sortilégio envidraçado,
à espera de ter vez.
Combinação de acasos
no avulso arrepiar 
da gorda desdita
e do obeso fado maior
(para gáudio da igualdade estatutária).

Tiro
a moeda do ar.
Interrompo o jogo
torno-me seu narrador,
que não caibo no estatuto de intérprete.
Estalam as articulações dos dedos
no estirador em que passa a saber o jogo,
talvez 
a maquinação estéril
do medo da sorte
do medo do azar
ou do medo só.

Tiro
a moeda no ar.
A vetusta condição
do artesão que desenha o tempo
contra quimeras infundadas
e angústias infecundas,
contra o malquisto xadrez 
ou o tapete rico em pétalas concebido.

Tiro a moeda.
Que é excedente
e o lugar precisa 
de desmaterialização.

#1337

Limpo o verbo gasto
e eu, na varanda,
aprecio.

#1336

O choro
(alfandegado)
é o antídoto.

6.1.20

Magno

Náufrago
o dia de ninguém
a matriz da miragem a soldo
linhagem sem embaraço
na gentil frase remediada. 
A voz granítica
repúdio das desculpas sem gramagem
o dia impuro
ecossistema da salga sem artesão
ou a armadilha dos despudorados. 
Levanta-se
o sol estremunhado
desembaraçando-se 
das teias que o unem à noite
em conspiração com os confrades da boémia
na instrução obrigatória dos pequenos estroinas
os convictos sacerdotes do incenso vertido 
sobre as costas do dia. 
Porque ao dia impuro
soma-se
a sua proverbial incompletude,
um santuário à espera de geografia.

#1335

Não é a loucura que temo,
é do uso que dela façam.

5.1.20

Provisório

A boca de fogo
sem medo. 

A redenção apalavrada
com verbo. 

A praia como domínio
sem tempo. 

A vastidão servida
com a noite. 

A roda parada
sem rosto. 

O nome improvável
com paradeiro. 

O rio transbordado
sem algemas. 

A cidade sonhada
sem vento. 

A boca da fala
com tudo. 

#1334

Controverso.
Contra o verso.
Compro o verso.

4.1.20

#1333

O infinito é tão longe.
O dia soalheiro
desfaz a distância a um nada.

#1332

[Antepassados]

Ó povo que sais descalço.

[Modernidade]

3.1.20

Modo

Rasurei os olhos
no balcão largo 
onde se convocam os oráculos. 
Não tive tenência do encargo,
que os risíveis desmotivos da alma
são a peça poderosa
o fiel dos atritos não recomendáveis
sem marcação 
no calendário das eventualidades
um esboço de matéria afogada 
na lividez dos sentidos. 
Por acaso 
estava sentado
e não houve como saber 
das pernas rombas
e ao escárnio disse o adeus próprio
da irrelevância. 
Sei que a finitude
cuida do acerto de contas
e impeço que os escombros
sejam o espelho do rosto,
apesar do que possa dizer em seu desmentido. 
Atribuo ao diadema dos lugares
o pensamento escorreito
cristalino
como se fosse o lagar 
onde se rejeita a matéria impura. 
Não combino com demónios
nem rimo com os ascetas da orfandade. 
Prefiro o azulejo gasto
confiável
mesmo que o estuque da parede
aparente decadência. 
Esse 
é um estado que só me diz respeito
uma encruzilhada caiada 
com a miragem 
das não respostas permanentes
a lente vazia, 
aberta à chuva benfeitora. 
Estudo as possibilidades. 
Estruturo o pensamento
na alvenaria das possibilidades
irrompo 
nos interstícios da noite
e sigo o pulso cinzelado 
na lombada das bocas famintas. 
Se for precisa a minha assinatura
sabem onde me encontram.

#1331

(Variação do #1330)

Sou mecenas da minha biografia.