18.6.05

As mãos

Nas mãos
o cordão umbilical da decência de ser.

Nas mãos
vultos que se eternizam,
sal que perfuma os gestos que somos.

As mãos
não deixam mentir:
pelas mãos
os gestos desnudam a alma.

E as mãos,
nós que apertam outras mãos,
acalorada sapiência da enrugada pele
envelhecida com o uso dos dias.

Sem as mãos,
decepadas criaturas
na diluição das marcas que identificam.

São as mãos
olhos de quem somos;
o mapa engelhado que descobre
as linhas que se tecem, por magia,
numa cartografia irrepetível.

As mãos,
oráculos.

2.6.05

Lusco-fusco

O alpendre acolhe o fim da tarde.
No ar o odor dos frutos
esvoaça em compita com pássaros
endiabrados.

Hora do espírito beber as águas
da tranquilidade.
Aquela hora, do torpor à preguiça,
tonifica.

Vai a luz escasseando.
O sol mirra detrás da copa das árvores.
Cresce a empatia com a noite
desconhecida.

Bucólica paisagem
que se eterniza no o tempo.
Na bondade das luzes que tingem o céu,
avermelhadas.

Solta-se um suspiro profundo.
Traga os cheiros e as cores
que saltam na surda gritaria
aleatória.

O caos ordenado
sentir o indizível
como dizer o insensível:
tresmalham-se os minutos
numa viagem ímpar ao mais recôndito
da alma.

1.6.05

Na sombra do eu desconhecido

Não somos mais senhores de nós.
Na aventura do que pensamos ser já conhecido
a surpresa
- do outro lado do espelho
uma imagem distorcida do que sempre acreditámos
ser o nosso eu.
Quase nunca admitimos
o que retrata o espelho.
A culpa sempre do espelho
invariável teimosia
de manter o que nos habituámos a ser.
Decerto o espelho terá anomalia;
embaciado, esconde a verdadeira imagem
do que julgamos ser.
E lá volta, a teimosia,
a toldar a vista numa esparsa miopia.
Os vapores diante da vista emudecem os sentidos,
esquadrinham as teias mentais que desfocam
a essência do outro que nos habita.
É como se andássemos todo o tempo enganados
no equívoco que semeamos sem dar conta
- ou possuídos por uma força indomável,
das entranhas,
comandada pelo espírito apoderado
que se recusa a deixar-nos ser algo diferente
na sua espontaneidade.
Enganados,
vista turvada pelo espartilho
do atilado ser que se entranha no seu conformismo.
É como se existissem vidas paralelas
que se separam pelo fio espesso
que impede de assumir o eu reprimido.
De tanto tempo amarrados ao estigma
nem damos conta que um caminho paralelo
anda ao nosso lado.
A vista,
ocupada em mirar a linha do horizonte
que se esboça.
A vista
ignora uma vida subterrânea que se cultiva,
sabe-se lá,
diferente, genuína, intensa, preenchida.
A fuligem acumulada reprime
a vontade de descobrir o desconhecido que somos.
Mas quando a perseverança vinga,
e saboreamos as pisadas do caminho paralelo,
preparados para a revelação do outro eu
que habita dentro de nós?
Habilitados a conviver com a alteridade?
Não será o temor do abismo
a mola para a dúvida na cristalina imagem do espelho,
encanando de defeitos o espelho maldito
que povoa tantas dúvidas?
Irrompe uma angústia assustadora:
sabemos que podemos ser algo de diferente
e o medo do precipício
trava o desejo de provar a pessoa diferente que podemos ser.
Aquietam-se os espíritos:
convencidos que devem preservar
a mediocridade que os invade,
melhor do que descobrir uma diabólica personagem
aprisionada no gume de um engenho manietado.

26.5.05

Algum sentido (no umbral da amargura)

Ao que vens?
Nas tonitruantes voltas da vida
a descoberta do degredo.
Às voltas com os desatinos dos dias
as lamúrias dos desejos adiados.
Nascemos
fadados ao obituário.
Percorridos os dias
à espera que a espada desça a lâmina inclemente,
ruminada a modorra dos ponteiros do relógio
na sua vertigem ensurdecedora.
Sem olhar ao belo da vida
sabendo que algum dia
a beleza se consome no negrume da ceifa final.

Ao que vens?
Andar por esta vida,
vegetando num torpor sem sentido?
Haverá laivo de justiça divina
no sofrimento que destapa a almofada da dor?
No desnorte dos trilhos esboçados
restará seguir, como beduíno ordeiro,
na peugada de um horizonte incerto?
Ao sabor do vento
empurrado como frágil folha
que ondeia na incerteza do rumo ventado.

Esperando,
esperando que chegue a hora
de acertar as contas
com os passos perdidos na poeira do tempo
com os projectos adiados
com as frustrações da alma.
Pedindo
escusa da dor,
ao saber a dor o legado iníquo
dos deuses sem rosto.

Ao nascer,
traçado um destino que tece a formatura da vida.
Demore o tempo que demorar
apenas um sentido único,
sem desvios
- ou com desvios que semeiam a ilusão de nos ludibriarmos –
resguardando a seiva da vida que se esvairá
no suspiro final.
É a palavra que amedronta,
impronunciável,
o azedume que afugenta a alegria interior.
Na recusa de um destino irrecusável
o agreste sabor ao fel
que acorrenta à amargura definhante.

Ao que vens?
Vale a pena combater?
É merecedor o tempo do engano de nós mesmos?
Se tudo se consome na avidez do perpetuo momento
que lança a âncora para a definitividade
do que somos…
Essa,
a palavra impronunciável,
séquito de todos os medos
exército não derrotável
tingido das cores mais pútridas.

22.5.05

Instante

Apenas um instante
para tudo recomeçar.
Apenas um instante
saber tudo perder.
E apenas num instante
se glosa a tempera da vida.
Os instantes,
efémeros, imortalizados, prolongados,
a inspiração dos destinos jogados
na roleta vadia.

Apenas um instante,
um instante só,
para tudo mudar.
Basta o instante
encontrar-se na linha certa
ou falhar o instante
e borda fora tragar as águas revoltas.

11.5.05

Pela alvorada, o cansaço dos dias que se repetem

O dia irrompeu
trouxe a energia volátil que anda ao acaso,
dobrada pelos ponteiros do relógio.
Lá fora
as formigas humanas debatem-se
na atarefada rotina dos dias que se renovam.
Como se fugissem de casa
afogueados pelo tempo que escasseia
aturdidos pelo atraso instalado mal o dia começa.
Atropelam-se rua fora:
crianças levadas ao colo
outras palmilhando o caminho de mão dada
ainda sonâmbulas do sono despertado
por pais sufocados pela azáfama.
Curvadas pelas mochilas recheadas de pesados tijolos
- dizem-lhes, carregas às costas a sabedoria aos pedaços.
O asfalto abrasivo recolhe as rodas dos carros
na correria de quem tem pressa de chegar algures.
Silvos frenéticos
insultos esporádicos
a ensandecida escalada que devora a distância
que os separa das masmorras materiais.
Uns atrás dos outros
maquinalmente
ao ganha-pão que alimenta,
sacia vícios,
mostra ostentações reprimidas.
As caras ainda estremunhadas demoram a recompor-se
do sono pouco dormido.
As pessoas cruzam-se
sem darem conta que se entrelaçam em linhas descontínuas.
Fazem-se autómatos que seguem em fila
rebanho mal amanhado num torpor pelo vórtice
de um desconhecido destino que julgam conhecer
como o chão que pisam dias a fio.
Os trabalhadores da construção civil já laboram,
subindo o sol no firmamento;
testemunham passos acelerados dos apessoados.
Já envergam o suor do dia quente que se anuncia.
Suor misturado com a sujidade que enegrece a pele rugosa
nas dobras vincadas que entoam a aspereza física.
Testemunham, alheados de quem passa.
Como alheados andam os que, lá em baixo,
ignoram os anónimos empoeirados que se equilibram nos andaimes.
Respiram o mesmo ar,
o mesmo ar fétido,
um cocktail
de gases expelidos pelos automóveis
do ar abafado vindo do sul
das frustrações dilaceradas pelos caminhantes erráticos.
Na indiscrição do próximo
os apressados passeantes distraem-se
no tempo que passa, célere;
demoram-se no relógio que não se deixa atraiçoar.
Mais tarde ou mais cedo
a turba chega ao destino.
Sem lugar ao repouso
que outras tarefas, urgentes, esperam
- como tudo é urgente na lufa-lufa diária
de quem se aprisiona na hedionda rotina.
A rotina que faz de cada dia
uma indiferenciada imagem
uma nebulosa penumbra
obnubilada sombra
das aspirações que somos
e deixamos escapar no lento-demorado correr
dos dias que não se cansam de repetir.

Nuvens de Juno

Na densidade das nuvens acasteladas
o sonho do impossível.
Aprisionadas no ar gélido
as faces ressequidas deliciam-se
com os castelos que se amontoam.
São belos
levitam com a leveza dócil
dos rebanhos tresmalhados.

5.5.05

Despojos da primavera

Cinzas de um Outono tardio
destapam a lucidez dos elementos.
Voltam
com a luz renovada.
Campos que se extasiam na embriaguez do sol.
Repetitivo
o mesmo ciclo.
E contudo os sentidos ainda inebriados
com os odores que dançam no ar
as cores que semeiam a paisagem
a vida libertada da hibernação.
Almas revigoradas
testemunham a cadência primaveril.
Novo fôlego que desperta
a vida escondida pela letargia invernal.
Só à espera
que o estio se consuma no seu cansaço.
Só à espera
que a indolência dos elementos
se recolha na saudade de outras estações.
No débito da memória
retido fica o sabor ácido do tempo
que se repete.
Fuga da rotineira passada
que tomou conta dos bancos do jardim,
sabendo que depois hão-de regressar os ventos
que outrora já passaram.
No desassossego que os ventos de agora
sejam varridos por nuvens sopradas
de outros meridianos.

1.5.05

Dia da mãe

No mistério da gestação nasce um amor intemporal.
No embalo no teu regaço os nove meses que partilhamos:
o teu nutrir, o teu oxigénio, um amor maior
- a vida que se forma.
Hospedeiros do teu corpo aprendemos a sentir o amor
que inspiras numa torrente infinita.

Nascemos:
és a água onde saciamos a busca de carinho.
Nos pequenos gestos, pequenos afagos
que ensinam a densidade de um laço
- já não umbilical
agora revelado na magia do olhar
e da ternura que traz a recompensa do dia.

Crescemos:
sabendo que em ti encontramos lugar onde lançar âncora.
És porto de abrigo que acolhe as nossas ansiedades
com uma palavra que alenta.
Como se fosses um íman que nos atrai,
ao sabermos que há sempre o conforto maior
que nos recolhe na pequenez do nosso ser.

Não é a maternidade condição vã:
fonte da vida, mãe senhora da imortalidade;
pela vida que geras
pelo nutriente que levas ao filho no ventre
pelo carinho sem medida numa vida inteira
- mãe, milagre da vida, oráculo intemporal
dos vestígios que não se apagam com a bruma do tempo.

Há poeira que se acumula nos livros.
Lá dentro, emolduradas, as imagens não se eclipsam:
todos os beijos
os doces minutos de colo
os murmúrios que soam na véspera do sono
embalados pelo calor dos teus braços
a ternura com o cheiro maternal
que nenhuma flor consegue imitar.

Em ti, um santuário
onde expiamos a fragilidade que somos.
Num regresso ao passado
quando em ti havia o nosso sustento:
traços umbilicais que se eternizam.
Por magia de seres mãe..

28.4.05

Minho no seu pior

Os dentes do burro são a foice da tenra erva
que cobre o pasto.
A populaça zombe do burro
não sabendo que não é o burro
que pede meças à inteligência.

No folclore garrido
tijolos de ouro vergam o dorso
das mulheres que calcam chancas dançantes.
Gritam, na voz estridente;
são o esteio do que não é a estética.

Às voltas com sinais de pertença:
verde Minho, verde vinho
bebedeiras tingem de vermelho
as faces esponjosas de varonis seres
- de um vermelho que desdiz o Minho verde.

Arrotem, brutamontes,
império à flatulência
que adora o troar do foguetório risível.
Liberta-te Minho, traz o campesinato
para as praças
e mostra como o povo se diverte.

Aos outros:
escondam-se da gargalhada colectiva da boçalidade.

27.4.05

Pudesse o desejo vingar

Outro dia
e jamais o que antes aconteceu
dobra a esquina invisível

Decepções gélidas
apenas rumores que esventram
as pálidas cores da vida

Agora, como ontem,
suores retidos desprendem-se
tutelam as bandeiras que ficaram por hastear

Oxalá
os remorsos tivessem uma janela sem vidros
um panorama espraiado para dentro

Oxalá
os silvos das aves fossem cantorias de embalar
e mostruário do verde refulgente dos vales.

Daqueles vales
que se adivinham para além da montanha
Escondida

21.4.05

As pétalas emancipadas

Desfalecem as pétalas de uma flor moribunda.
Não tarda, tombam com a leveza do nada
que as consumiu.
Nem assim a chuva de pétalas
(que esvoaça numa dança terna)
perde a lucidez das coisas belas.
Tocam no chão;
e fazem-se férteis no solo que as recebe.
Não perderam o branco vivo que as reveste.
Ainda no chão tingem-no com uma capa
que cintila na perfulgência dos raios do sol.
À espera do definhamento
no acobrear que traz a despedida.


20.4.05

O que dirás

Dirás que uma nova espuma
veio com a ternura caiada a branco.

Dirás que o enternecimento
foi a fogueira que te aprisionou os sentidos.

Dirás que o voo rasante das aves
traz à memória a intensidade dos corpos.

E dirás que amanhã
te cumpres,plena, no tanto que te quis ofertar.

19.4.05

O espalhafato dos circenses

Odes ao ridículo
e os seus fautores acham-se nos píncaros.
Não é coisa que a vista alcance.
Tombam no ridículo
tanto se expõem às luzes feéricas
aos néons abrilhantados.
Trepam uns nos outros
enquanto desfilam a covardia
de se dizerem amigos.

Cambalhotam.
Troçam
e depois vem a penúria
dos que desferem a facada fatal.
São a fatiota excelsa
palavras arquitectadas
(ou, diria, engenhadas)
e bazófia militante.
Esquadrinham poses que desbravam escola.

Exemplos de que muitos querem ser
e a negação da imagem que exalam.
Aventuram-se em tarefas espartanas
das que vão além das parcas capacidades suas.
Arrastam-se
num penoso calvário
aplaudido por uma trupe de medíocres
- como eles, por aqueles venerada.

Ah! pessoas bonitas
das nossas bandas,
fátuo circo de vaidades ocas
chapéus engalanados com o mundo ilusório
que vendem a uma horda de seguidores,
tão sofríveis como os idolatrados.
Pobre circo, o que nos cerca.

Haja força para cegar:
só nos instantes das luzes da ribalta
que se espraiam nas altezas que temos.
É a míngua de uma realeza decente,
uma realeza que faz sonhos idílicos
dos consumidores de papel cor-de-rosa.
Um prémio ao divino espalhafato da inconsequência:
solta-se o troféu
e, nas andanças pelo ar,
aprendizes de ilusões vácuas debatem-se
em saltinhos cândidos para ficar com o prémio.

É a glória do momento para o escolhido.
Tantos os olhos que repousam na sua tez
passada a pente fino pelos ditadores da cosmética.
Milhões de olhos não desgastam a pele dourada e desenrugada.
Encantam o ego do artista de variedades sociais
para delícia dos seguidores
incansáveis
insaciáveis do glamour
imperturbáveis no aplauso contínuo.

As palmas das mãos também não se gastam
na populaça arruaceira que anseia pelo estrelato.
Que hoje está mais democrático!
O ruído das palmas não cessa
perfurando os tímpanos
quase até ao limiar da loucura
de quem não desviar a atenção.

Somos isto:
um tanto que promete tudo
que se resume a um tristonho nada
deserto tão cheio de fealdade
refém da inanidade.

14.4.05

Na vertigem

Uma correria ensandecida.
Noite fora,
no rasto do tempo
que nos fugia, temeroso.
Tínhamos uma loucura saudável:
perpetuar os fugazes instantes
de uma vida que sabemos breve.

Era um remoinho incandescente:
levava-nos por um túnel escuro
sem fim que a vista abraçasse.
Sabíamos dos riscos;
o incitamento pela atracção
do impossível.

Retemperadas as forças,
regresso à vertigem nocturna.
Íamos atrás do tempo,
querendo aprisioná-lo.
Empenho para emoldurar a noite,
eternizá-la na lucidez
que se diluía numa acanhada inanição.

Paradoxo:
as energias sem fim
em cada esquina dobrada
nas longas noites;
o vazio que se apoderava de nós
estancada a febre venturosa.

Nem assim o ritual cessava.
Na lassidão do silêncio
esperávamos na paragem
pelo carrossel frenético.
Que vinha com a noite.

A noite:
miragem recorrente
viagem sem fadiga
que repelia a alvorada.
Não houvesse um desejo ardente
de imortalizar a juventude;
e os corpos nunca exangues
teriam sido mortuários
de um destino destemperado.

13.4.05

No reverso da memória

Ao teu doce ouvido
um sussurro.
Sabes
o que o sussurro
te segreda.
Podem as voltas da vida
torcer a vontade.
Que para além
do que a vista alcança
está o dever da entrega.
Da sombra
solta-se a tua voz.
O elixir da presença,
saber-te o alicerce
que empunha a bandeira
da vereda a palmilhar.
Haja as voltas que houver
acordes na outra almofada;
de um esteio de quem existe
à recompensa dos que porfiam.
Nem os queixumes,
nem os devaneios,
ou os silêncios pesados,
ou as palavras agrestes
- nada, nada volteia
a espessura do destino que é nosso.
Nem mesmo
quando os nossos curadores
parecem adormecidos.
Nem ali se estanca a torrente
que um dia fez de nós
a vida para deleitar.
Se é no enlevo
dos suspiros da alvorada;
ou no trinar dos sinos
ao pressentir a tua voz;
ou na quietude da poltrona
que nos acolhe,
já noite entrada.
Sem o peso esmagador do temor.
Sem o estigma agrilhoado.
Sem ceifar a liberdade.
Nem calcinar o quem que somos.

No que somos:
de sermos ambos,
apenas e tanto,
parcelas de uma vida.

10.4.05

A colina

Ao subir a encosta
palmilhar o restolho
que crepita, audível.
Remoer na altivez
daquela colina a seguir.
Encher o peito de ar.
Avivar os instantes
da verdura silenciosa.
Entregar-se no remansado
gorjear das aves.
E deixar-se ir
com o desprendimento do tempo
que cessa de ranger no alto
da colina.

6.4.05

Rumo esquivo

Sempre à escuta,
um orgulho néscio
confunde-se com a confiança ausente.

Canibalize-se a terra que pisas;
outrora aragem de bravura
hoje sinal de descrença.

Amanhã serás uma pífia imagem,
um estertor que se agiganta
na imensidão de uma galhofa colectiva.

Às voltas com a tragicomédia
apertas os atilhos, entretido,
enquanto em cima esvoaça o amanhã que se perde.

Garboso, golpeias os dedos
com a mesma faca que fere a digníssima
verborreia dos outros.

O sangue que jorras é gélido,
contraste do calor que se espalha
pela terra lusa.

Ri-te de ti mesmo,
ó Portugal desnorteado,
para encontrares o teu rumo.

5.4.05

Descaminho

Sabias
que os ventos batiam asas
na cegueira do horizonte.
E teimavas
no bolor dos dias que estão para vir.
Rasgados na dor,
um punhado de ascetas
velavam a tua sombra desesperada.
Eles, como tu,
algures perdidos na imensidão do nada.
Perturbado,
acreditaste num devir frondoso;
algo te dizia,
- uma misteriosa voz cavernosa -
que o amanhã estava entre os teus dedos.
Fruíste o momento,
doce ilusão
de um porto miragem
que sabes não conseguir acostar.
Na dor do travesseiro
passeias a insónia que te consome.
Aplaudes a dor que te mina as veias,
nutriente da singeleza de uma luz evaporada.
Chega enfim o sossego,
laivo de descanso perturbado
por sonhos que prolongam o sacrifício.
Sono corre depressa
ao encontro do ar fresco matinal
que te devolve o mundo
- como ele é.
Desvanecidas impressões
de um quadro pintado com as luzes luminosas
de um sentir adiado.

21.3.05

Dia da poesia

As lentas palavras ecoam na solidão.
Encontro marcado na opacidade dos sentimentos
nelas, há um ruído perene
que tinge as paredes com as cores
que queremos.

Uma pena flutua, dança sobre si.
Na imensidão da planura
perder de vista, no ruminar da alma.
As ternurentas ideias esvoaçam
sem freio, gentis.

Na encruzilhada busca-se um sentido
– o sentido –
fulgurado por um turbilhão incandescente
que desvia a vista.

Doentia a busca por uma resposta.
A bravia demanda choca de frente
contra os olhos que insistem
em esquadrinhar um terreno árido.

A saída comprometida.
Um esgar de desconfiança.
Sinais vitais de um saber que se perde
entre o nevoeiro tardio que demora,
teimoso, entre as faúlhas da véspera.

15.12.04

Torrente imparável

Espreitas.
Olhas para as cores do mundo
com a curiosidade de quem desbrava caminho.
Estendes a mão.
Um dedo bem apertado,
é manancial de ternura doutra dimensão.
De ti a vida jorra sem cessar.
Um repasto arrebatador
que tenho entre mãos.
Não sei o que sentes:
nesse frémito de aprender a ser,
nesse bolear eterno
que traga as cores, os sons, as sensações
- a imagem de que não sabendo
sinto que pulso contigo.
Batidas compassadas,
articuladas,
dois corações em uníssono.
De em ti em mim,
de mim para ti,
num refluxo sem cessar:
até que sejas tu mesma.
Missão inolvidável:
Fermentar uma vida
sem saber que ela seria
a semente da reinvenção da vida do inspirador.

10.11.04

Devir

Enternecido.
Contemplar a alvura da pele,
os olhos semi-cerrados que vagueiam
em sonhos perdidos.
Encontrado.
Com o meu destino,
uma vida preenchida
num olhar alheio.
Finalmente.
Um rumo que não se perde
na bruma das erráticas veredas.

Ao acordar,
o olhar que persegue as sombras
escondidas na luz feérica.
Um esgar de espanto
numa vida que aprendes.
Olhar para quem te criou
e beber com os olhos o enternecimento supremo.
Reconfortada.

Parar o tempo.
Nos instantes em que paro diante de ti,
admirado com os mistérios de que és essência.
Também aprendo a viver.
Reaprendo,
com a tua inocência,
com a serenidade que exalas
nas pétalas perfumadas que os teus dedos
aspergem.