16.1.21

#1870

[Crónicas do vírus, CDXLII]

 

Ave Maria

cheia de desgraça,

ou “povo que vais descalço”?

15.1.21

Lei da selva

No lanço certo da escada

um esquadro 

para desenhar o consentimento. 

Povoado sem toponímia

uma fábrica de desrazão

e em tudo o que é adverso

manda-se a desratização

castrar o lóbulo promissor da infâmia. 

De um jardim zoológico

plural

diria não ser visitante;

antes o mapa sem lucidez

do que os erros reprimidos,

tonturas excruciantes

que não pegam na lei da selva.

#1869

[Crónicas do vírus, CDXLI]

 

(Variante do #1869)

 

A casa,

outra vez

refúgio do medo.

#1868

[Crónicas do vírus, CDXL]

 

A casa

outra vez,

refúgio do medo.

14.1.21

Fojo

Sabias

em que dormitório

hibernava o biombo?

Era uma matéria venal

um esgar devolvido às sombras

penhor em causa própria

(ou penhor sem casa própria?)

a linhagem vetusta

dos sarcófagos sem paradeiro.

E, contudo,

servia-se o medo

às portas blindadas,

como se se arqueassem os corpos

e, em genuflexões pueris,

consagrassem os estultos sem armadura.

 

Sabias

que a mitologia

se consome na mentira?

Não eram verbos banais

os que chamavam a si a centelha puída.

Desarmávamos as esporas 

que amaldiçoavam os espíritos singulares,

recorríamos aos mais fundos punhais

para sangrar os mastins desaçaimados

que nos impediam de sermos libérrimos.

Na contabilidade prematura

arranjávamos as ferragens 

contra a decadência urdida 

pelos espantonautas.

 

Seria caso

para erguer uma cortina de espantalhos

antes que todo o tempo fosse tomado

por quem o desmerece.

#1867

[Crónicas do vírus, CDXXXIX]

 

Não é um novo vazio;

é a continuação do vazio.

 

(Amanhã, o regresso do confinamento)

13.1.21

Estatura

O acordar:

desembaraço as pestanas;

as sobras de um sonho

esperam à porta

vertidas num vulto

no crepúsculo em vão. 

 

Pergunto pelo dia. 

 

Os braços desarmam o torpor

o sangue sente o raiar

espera pelo rastilho

o acetinado forro da pele. 

O murmúrio das vozes

distante

emoldura as primeiras ruas

como se elas descongelassem

com o estio à medida das almas primeiras. 

 

Agora

as ruas já não têm só as árvores. 

E as pessoas

quase todas contrariadas

avançam 

contra a vontade

contra a manhã intrusa

preparam-se 

para os segredos por vir

sobem ao palco

principais atores

do dia que as tutela. 

 

Segredo um par de sílabas

detetive de meus sonhos

e levanto os corrimões que antecipam a tarde

no resgate da vontade,

procurador indigente dos pesares. 

 

Espero pelo entardecer

refém de um tempo estiolado:

nesta conspiração não tenho voz 

as espadas afiadas dançando sobre a cabeça

coreografando o vento sem algemas. 

 

Espero

que o entardecer segrede

a geografia do sonho de que sou véspera. 

Até ser um corpo passivo

amordaçado pela entrega do sono

vítima, 

ou algoz, 

do sonho estilhaçado. 

 

O acordar,

ato repetido;

ou o corpo dormente

bolçando 

um sonho 

por dentro de um sonho. 

#1866

[Crónicas do vírus, CDXXXVIII]

 

Tem desandado

o negócio dos novos amanhãs,

entrados que foram

numa rua que parece ter fim.

12.1.21

Impressionista

Costuro as feridas

com a saliva que efervesce

na maré alta. 

Devolvo ao areal

o tojo fundido nas varandas. 

O espaço 

é atapetado pelos anciãos. 

À razão do medo

os confettis desembaraçam-se das árvores

em beijos guturais que cauterizam a luz. 

Diziam:

é inútil cimentar as cicatrizes

se a pele não se emudece

na coreografia do tempo. 

Só os tolos

(e os majores risíveis)

estudam os ângulos que anoitecem o medo. 

Antes os melodiosos cantos das horas certas

o crepúsculo amotinado

um vesúvio a crestar na sombra dos mares

a cor mate que traz embaciados os olhos;

antes 

tudo isto

do que a carne viva

à espera 

de curadoria.

#1865

[Crónicas do vírus, CDXXXVII]

 

Não seremos mais

do que mandatários

das cicatrizes.

11.1.21

Moscovar

Não há Moscovo

que nos contente. 

 

Não há

iridescência

que sobre 

para as nossas silhuetas. 

 

Não há limites

que nos afugentem

do rogo da demanda

atirando-a 

umas léguas além. 

 

Não há frio

que nos emudeça

nem neves que sejam

perpétuas. 

 

Não há desidioma

a separar o corpo da fala. 

 

Não há modo sem ritual

nem guarida 

sem arranha-céus. 

 

Não há mosaicos 

em forma de vivos retratos

nem catacumbas tão ilustres. 

 

Não há museu igual

no reverso 

das memórias nocivas. 

 

Não há primavera

colonizada pelo inverno

num marco tardiamente ártico. 

 

Não há Moscovo

se não em Moscovo.

#1864

[Crónicas do vírus, CDXXXVI]

 

Ainda não aprendemos

que o arrependimento

não é a fiança da redenção.

10.1.21

#1863

[Crónicas do vírus, CDXXXV]

 

A confiança

em dose excessiva

é o coro da irresponsabilidade.

9.1.21

#1862

[Crónicas do vírus, CDXXXIV]

 

Um coro de farsantes:

os súbditos,

indisciplinados. 

exibindo-se como súbditos;

e os regentes,

que aproveitam

para exibir o músculo.

8.1.21

Degenerescência

O podre de um regime

não são os seus porteiros;

são as portas

que lhes damos

como legado. 

O podre dos porteiros

não é a vileza que os cobre

ou as meãs manhãs em que se entretecem

ou o coldre vazio 

em que oxalá fossem concebidos

ou a árvore enfastiada em que se entronizam;

é dos que selam o sufrágio

cúmplices em primeiro grau

as mãos que servem às luvas dos porteiros. 

O podre 

é da letargia incandescente

que de mote próprio faz alpinismo

às costas dos súbditos

instruindo-os na apatia.

#1861

[Crónicas do vírus, CDXXXIII]

 

O fio da navalha

rorejando toda a vingança

sobre os frágeis

(que não admite exceções).

7.1.21

Água mineral

Como se de uma barreira de coral se tratasse:

os dentes afiados contra as redes

e o farol centenário

ciciando um pesar orquestrado

que não amedronta os peixes.

Nem do salitre cuidam os barcos

que em águas tumultuosas

sem a guarida do porto

não sobra atalaia 

se não para o sopesar da embarcação.

Os nós enredam-se no crepúsculo:

têm de ser as mãos gastas dos marinheiros

a prevenir a redenção.

Não se diga

que a fartura pretérita se consumiu

nos corpos envelhecidos;

a maresia aspira o sal pelos poros

e embebe-se na ossatura dos marinheiros,

que ganham no tributo 

calibrado na vertigem do tempo.

Deixam as vírgulas esquecidas

num recanto da boca

como se as tivessem salivado

e elas,

sílabas estilhaçadas,

sobrassem,

despojos, 

nas pregas dos lábios.

#1860

[Crónicas do vírus, CDXXXII]

 

Casino ou carrossel

uma certeza embolsamos:

estamos perdedores. 

6.1.21

#1859

[Crónicas do vírus, CDXXXI]

 

Fugitivos

da fragilidade,

empossados párias

sem remédio.

Contabilidade das palavras

Todas 

as palavras

contam. 

É nesta

aritmética suada

que habito. 

E se contam

as palavras todas

subo aos contos

narrador acidental

embriagado

com o vocabulário sedoso,

emoldurado. 

Com

todas

as palavras

contadas

no vagar das sílabas

chamando

os nomes

e as coisas

nelas desenhando

os rostos

os corpos

um amontoado de equações

amanhecidas

na contabilidade das palavras. 

#1858

[Crónicas do vírus, CDXXX]

 

(Uma) 

Tragédia dos comuns 

– e como a expressão

se tomou de propriedade.

5.1.21

Pontos nos is

Pontos nos is

para que vos quero?

 

Pois 

se na Turquia

há is que não levam ponto

e não consta

que a Turquia tenha sido

desqualificada.

 

Pontos nos is

mordaça institucionalizada

a pedir uma re-gramática

 

(pois se 

há quem dispense pontos finais

e outros 

dos parágrafos fazem tábua-rasa

e outros ainda

desconhecem maiúsculas 

como inauguração de orações);

 

pois 

os is mantêm validade

mesmo que venham amputados

de pontos

e ninguém nos pediu

para vertermos os pontos nos is

pois 

tudo ficou aclarado

no cancioneiro do entendimento:

 

nos is sem pontos

que is se continuam a ter.

#1857

[Crónicas do vírus, CDXXIX]

 

O povo

a fazer a vontade

aos adágios que vulgarizou:

à segunda onda

segue-se a terceira,

sem demora.

#1856

[Crónicas do vírus, CDXXVIII]

 

Estamos fechados 

num quarto

e a porta 

só abre por fora.

4.1.21

Floral

Povoadas as floreiras

com o suor ungido

ajardina-se o verbo

nas cicatrizes consuetudinárias. 

Um punhado de artes,

ou apenas o inescrúpulo larvar,

cimentam a pele emaciada:

se dantes 

os canteiros desenhavam as cores

agora

entediam-se com o macilento rosto

da invernia que não se apieda. 

A ossatura entoa os queixumes,

rima com a duração plúmbea

que agiganta os pesares 

pelos soalheiros dias. 

Sozinhos

os dias breves

remedeiam-se 

à medida que as cinzas das lareiras

fazem cama

ao esquecimento. 

#1855

[Crónicas do vírus, CDXXVII]

 

O desleixo dos súbditos

para gáudio dos regentes.

3.1.21

#1854

[Crónicas do vírus, CDXXVI]

 

Alvíssaras

à argamassa 

do povo.

2.1.21

Anátema

A frívola 

facilidade

com que se confunde

felicidade

com facilidade.

#1853

[Crónicas do vírus, CDXXV]

 

Joga-se o trunfo

à espera que seja 

centelha.

1.1.21

#1852

[Crónicas do vírus, CDXXIV]

 

Neófito,

tem autoridade o ano

para a remissão?