31.7.21

Fonte

É a pega 

que agarra o mundo

pelos seus deslimites. 

O santuário onde se respira

o ar que não tem janelas. 

O encantamento 

com o sangue ávido

que transborda as fronteiras do corpo. 

O cais onde se agarram

as mãos que já não são trémulas. 

Os lábios devolvem as sílabas

à medida do caudal que se congemina,

estrutural. 

Que as árvores estão pendidas

sobre o pensamento diuturno

é a legenda que se arrasta em rodapé;

não serão os serões acostumados

à diligente insónia

que desmentem os presságios do passado;

outro tanto dirão das rosáceas

que fermentam os corpos ajuramentados,

antes que sejam apenas uma lutuosa recordação. 

As mãos,

que se dizem ávidas,

recortam os atlas 

por onde se materializa a voz. 

São o aval da invisível consagração

os nomes por haver no tabuleiro das incógnitas

o húmus onde se inventa a fertilidade

a noite sem fronteiras. 

#2091

[Crónicas do vírus, DCLXIII]

 

Quando nos devolverem o que éramos

teremos na mesma

duas pernas e dois braços

dois olhos e dois ouvidos

uma boca e uma pele?

30.7.21

Força bruta

O corso sedentário

transita pela cordilheira sem métrica. 

Protestam contra as distâncias

e o caminho sinuoso. 

Umas vozes avulsas

arrepiam o que parece umas preces. 

Dir-se-ia

preces para apressar

o termo da peregrinação. 

(Ou então

para se convencerem

que é má moeda 

o sedentarismo das ideias.)

#2090

[Crónicas do vírus, DCLXII]

 

Se, 

enfim, 

se pressagia a liberdade,

pode-se,

então, 

reconhecer o sequestro.

29.7.21

Rasura

Qual é a armadura do rumor?

Dispensando as lições de eruditos

prefira-se o rumorejo que cerca o ouvido

à medida que seja o aval da desejada combustão.

#2089

[Crónicas do vírus, DCLXI]

 

Um braço duro de roer

em vias de ser vergado.

28.7.21

Árbitro

O vulto hipoteca-se na maré baixa.

Vozes em surdina condenam-no.

As hipóteses redundantes são marca de água.

As outrora sequelas hoje são reminiscências.

O poço ganhou um fundo.

Abrilhantou-se com as sombras furtivas.

Através delas as vozes falam versos fecundos.

O ocaso já não é uma angústia.

Levita no seu avesso as propriedades valiosas.

Fala, só por si.

Uma impressão digital ao acaso.

Sem vultos por perto.

#2088

[Crónicas do vírus, DCLX]

 

A peste

em vias

de recolher

as balas.

27.7.21

Código postal

O gelo senta-se na memória

converte as mãos em sílabas cortantes

e os corpos ululantes envergam 

uma fala singular. 

 

Levo o fogo perene

às costas da montanha;

não sei se é lava o hálito dos velhos

se as viúvas choram a solidão como conforto

se os cães vadios não têm fome

ou toda a roupa é inútil para abrigar o medo. 

 

É o piano que fala agora. 

Tudo o que diz é ímpar na pureza

cais que dançam em uníssono com as ondas

e um magistério de desinfluência

que assalta os viciados no poder. 

 

Podia ser a água tépida

mesmo no meio da paisagem de gelo

a arrumar as sílabas num santuário sem morada

ou apenas eu

imerso na nudez de mim mesmo

já não contrafação de um algoz sem presa

preparado para a morada sem código postal.

#2087

[Crónicas do vírus, DCLIX]

 

Um salto no tempo:

no anteparo da mudança

ou na irradiação do sempre?

26.7.21

Escrevo de trás para a frente

Escrevo de trás para a frente

a desalma sem modo

que se penhora no desmedo. 

O destempo não se mede

no avesso da fala

nem a mudez se compõe

numa gramática banal. 

Arranjo as flores arrancadas ao crepúsculo

e noto

que o crepúsculo ficou amputado

e só lhe fica bem. 

Escrevo

de trás para a frente

e não é por medo:

oxalá fossem os lutos

a muralha modesta dos farsantes

e das suas lágrimas não tresmalhadas

sobrasse 

o frágil fermento dos fortes. 

#2086

[Crónicas do vírus, DCLVIII]

 

A peste

interrompeu

o tempo.

(Ele há tanto 2020

adiado para 2021.)

25.7.21

Combustível

Sangro

até a alma

ficar nua.

 

Falo

até a alma

crescer lua.

#2085

[Crónicas do vírus, DCLVII]

 

Faltará apurar

se a peste equivaleu

a uns pêsames antropológicos.

24.7.21

#2084

[Crónicas do vírus, DCLVI]

 

Peões

como dantes

mas ainda mais.

23.7.21

Tradução literal

Os tolos

enganam-se

com colos

antes que sejam 

bolos

na paráfrase de seus miolos.

 

Os boémios

não sabem o que são

proémios

e a meio do caminho juntam-se

aos prémios

antes que os forcem a ser abstémios.

 

Os videntes

tropeçam em baças 

lentes

antes que da próxima profecia

os dentes

se partam por serem mitómanas mentes. 

 

Os famosos

tão feericamente efémeros 

levados por invejosos

a meio da peleja com a catadura

dos delituosos

em pária condição dos efemeramente fogosos.

 

Os ufanos

rejeitam

os maus panos

que de fazendas se fazem entendidos

nos canais insanos

onde regozijam com os deletérios arcanos.

#2083

[Crónicas do vírus, DCLV]

 

A águas fundas

o escafandro já puído.

22.7.21

Metafísica de algibeira

Intimo o deus da vontade a falar.

Não espero arranjos a meu favor.

A espera não será civilizada.

Os brutos verbos amontoam-se

numa rua com o chão encardido,

como se estivesse minado.

Intimo o deus da vontade a falhar.

Sempre foi minha ambição

estar ao nível de deus.

#2082

[Crónicas do vírus, DCLIV]

 

Não paramos

de apanhar morteiros

nas cicatrizes dos corpos. 

21.7.21

Arrematação

Bebo

a maresia

dos teus olhos

na manhã remota.

 

Nado

no nevoeiro

dos teus cabelos

entre os lençóis vagos.

 

Respiro

os verbos

selados pelo teu corpo

no jardim efémero.

 

Anoiteço

a aritmética

nos teus sonhos

sob a vigilância da lua.

#2081

[Crónicas do vírus, DCLIII]

 

Documentamos o tempo

com uma procuração

do adiamento.

20.7.21

Tie break

Parto em vantagem.

 

A algibeira recheada de alma

no desfiladeiro onde se desfazem

os medos.

 

Parto em vantagem:

pode não ser modo de o dizer

na folhagem varrida pelo vento

que se arquiteta no chão cansado;

mas digo-o sem disfarce

depois de exorcizadas as farsas

que se alardeavam no céu sem estribeiras.

 

Depois mando notícias

sobre a vantagem

de partir em vantagem.

#2080

[Crónicas do vírus, DCLII]

 

Um vício de autoridade,

para memória futura?

19.7.21

Síntese

Não são os cães vadios 

que mordem nos parapeitos da noite.

 

Não são os peixes sem nome

que anoitecem as areias da praia.

 

Não são os que procuram redenção

que glosam o livro das profecias. 

 

Não são as viúvas enlutadas

que possuem as sílabas claras.

 

Não são aspirantes à fama

que falam com a língua desembaciada.

 

Não são as luzes esforçadas

que colonizam a noite baça.

 

Não são as vozes mortificadas

que ladram o dia em glória.

#2079

[Crónicas do vírus, DCLI]

 

Nunca foi tão forasteiro

estar sitiado

numa torre de marfim.

18.7.21

#2078

[Crónicas do vírus, DCL]

 

Somos 

soldados sem armas

no pecúlio da peste.

17.7.21

Trigonometria dos párias

Diziam ser a trigonometria dos párias:

a misantropia consagrada

imersa numa coroa de hibiscos dourados

e o verbo que contaminava as águas puras

enquanto se apressavam

na estatura que ninguém gostava de ter. 

Na equação entravam insultos, 

o ostracismo indolor

e uma convocatória para a solidão. 

Os párias 

não precisavam de negociar

com esta trigonometria. 

Eram os seus infatigáveis percursores.

#2077

[Crónicas do vírus, DCXLIX]

 

Já não é apenas nos bastidores

que nos refugiamos

na plasticidade.

16.7.21

#2076

[Crónicas do vírus, DCXLVIII]

 

Os braços

aquém da sua 

latitude.

15.7.21

Epistemologia

O poema forma-se no corpo insubmisso.

Não se esconde do crepúsculo

onde capitulam os fracos.

O poema 

é a redenção dos que não têm armas

a beligerância que se atesta em metáforas

o vinho raro na colheita da alma.

Fala sem tutor

na fila onde desmaiam

os da voz empenhada.