[Crónicas do vírus, DCCCLVIII]
Legados da peste (174):
Uma epifania:
a devolução de um paraíso
como logro que se não gasta.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCCLVIII]
Legados da peste (174):
Uma epifania:
a devolução de um paraíso
como logro que se não gasta.
Exonerou o til do bolor
e das lombadas dos livros
varreu a poeira arcaica.
De vez em quando
reinterpretava o seu papel
como se fosse
ator por dentro de um ator.
Daí extraía o maior enigma
pois se nem ator era.
[Crónicas do vírus, DCCCLVII]
Legados da peste (173):
Fomos
e somos
náufragos
o salva-vidas
como seguro em dia.
Senti os poros do mar
na semântica do entardecer.
Não era reparador
e as candeias que esperavam pelo rastilho
faziam de conta
– faziam de conta que eram másculas
ou feitorias
por onde espreitavam espiões desarmados
ou amorfos periscópios que espiavam
a penumbra.
Do entardecer válido
reuni as mãos por adestrar
no convencimento das noites sem paradeiro
entre o sal sangrado carne adentro
e o povoado chão
que ardia na silhueta desmaiada da escopeta.
Dantes
os muros não fugiam do olhar angustiado.
Dantes
o mar era o exílio.
[Crónicas do vírus, DCCCLVI]
Legados da peste (172):
A jura da derrogação
como mnemónica da paciência.
[Crónicas do vírus, DCCCLV]
Legados da peste (171):
Do tempo
medrou um gládio
que amanheceu antídoto.
[Crónicas do vírus, DCCCLIV]
Legados da peste (170):
Num lugar público
cercado por rostos açaimados
adivinho a desabituação futura
aos rostos desembarcados e inteiros.
Sou
vento do Norte
onda refeita no verso da tempestade
boca à espera de loucura
varanda que amansa a paisagem
voz que se levanta na pátria da mudez
corpo comprometido com a tela da avidez
jura infundamentada
fonte de ideias enredadas na desarrumação
posfácio de um epitáfio proibido
montanha adiada sem medo do tempo
verso singular no emaranhado de vozes
caudal em frémito esperando pelo estuário
página iracunda domada no bálsamo da noite
madrugada sem atalaia
a rua rochosa
sem medo das espadas desembainhadas
sede por dentro das veias
instinto consuetudinário inaugurado no leme vão.
Sou
a desarmante face
de que o porvir é trunfo
sombra no avesso do luar maior
a mão caiada em página nunca gasta.
[Crónicas do vírus, DCCCLIII]
Legados da peste (169):
Despontou uma alvorada radiosa
quando (enfim)
anunciaram
o fim esperado do pesadelo.
A tempestade
acorda o sangue hibernado.
As palavras
elevam-se ao sopé da cordilheira.
A pele
derrama suor nos acordes da ira.
Os navios
esperam por vez
desenhando o estuário com suas silhuetas.
A manhã
demora no emaranhado do inverno.
O mar
envaidece com a pose tumultuosa.
A fala
inventaria as palavras destemidas
agora que o sal invadiu a pele
e os ossos rejeitam a melancolia.
[Crónicas do vírus, DCCCLII]
Legados da peste (168):
Num campo branco
sem flores
a partida da paisagem desertora.
O degelo cresce na sombra da noite.
Em comandita,
os cães vadios varejam as ruas
– pode ser
que se façam delas
imperadores.
O sono fundo das pessoas
traz uma impressão de hibernação
e as ruas são não lugares
momentâneos.
Ninguém sabe o que povoa
os sonhos que inventariam os fundos sonos.
Possivelmente
corpos errantes num adro sombrio
eclipsados pela sua tremenda fragilidade
transidos pelo latido da matilha
que se faz passar por uivos de lobos
famintos.
Neste espessar dos verbos
o suor fala em vez das palavras.
Os sonhos não esperam pela manhã.
Sabem que o seu império chega a uma foz
mal a noite é destronada pela manhã
ínvia.
O sangue
sem dar conta
terça esta batalha
entre um sono que amedronta
e a vontade não escrutinada
de se libertar da tirania dos sonhos.
Se ao menos
a insónia se fundisse com a noite
saberia
do paradeiro da matilha.
[Crónicas do vírus, DCCCLI]
Legados da peste (167):
Às vezes
parece apenas
a interrupção de um pesadelo.
As sílabas contam as bocas.
Esperam pela fala gorda
no desprotesto que se cala
na vigésima-terceira hora do dia.
As bocas cantam as sílabas
e a fala em catarse foge da mudez
no tirocínio do tempo.
As bocas:
escondidas na pose circense
arrumam-se em gestos pueris
e, todavia,
diplomáticos.
A muda fala que se muda
e se esforça em estrofes fadadas
mutila o silêncio,
impraticável.
[Crónicas do vírus, DCCCL]
Legados da peste (166):
Ganhamos sentinelas
numa atalaia
de que somos perdedores.
[Crónicas do vírus, DCCCXLIX]
Legados da peste (165):
Tal como ases autorreverenciais
refugiados em torres de marfim,
postiços apenas.
Deste estilo que se esconde
a impossibilidade do vento
açambarca as palavras vãs.
Diz-se:
o pensamento é masculino
(porque a gramática assim ordena)
e um pé-de-vento corre o terreiro.
O estilo que pressagia o porvir
não compensa:
esse é um tempo
que está por vir
e ninguém
confirma a sua chegada.
[Crónicas do vírus, DCCCXLVIII]
Legados da peste (164):
Os dias ainda baços
que servem para assear
a metamorfose duradoura.
[Crónicas do vírus, DCCCXLVII]
Legados da peste (163):
Desengorda o ego obeso
nos estilhaços
da sua disfarçada fragilidade.
A boca troveja
a espuma alcançada
no mar lívido.
Devolve
em dobro
a vertigem
amanhecida
numa aurora boreal.
No poema majestático
ficam desarrumados
os lençóis:
nesta arena
só têm admissão reservada
as armas que os corpos manejam
na gramática do desejo.
[Crónicas do vírus, DCCCXLVI]
Legados da peste (162):
Pagamos
em medo, obediência e conspirações
o legado da peste.
Jogados os dados
os dedos são a sua trama.
Dantes encolerizado
o magma eflúvio transita as veias
e adormece à boca de cena.
Há um ardor que sobra da combustão
as paredes interiores abraseadas
que quase irromperam em desmazelo.
Os dados cingiram a temperança
e os dedos,
enfim aplacados,
sorriem por dentro dos ossos
a favor do sortilégio.
[Crónicas do vírus, DCCCXLV]
Legados da peste (161):
O tempo
que se arrasta
fermenta o mosto
da fadiga.
A muda do corpo
esta deságua que lava o sangue
lava muda que desagua nas mãos
encorpando as paredes que amparam o dia.
[Crónicas do vírus, DCCCXLIV]
Legados da peste (160):
Uma guerra de teimosos
tende a tornar-se
em beligerância imorredoira.
Uma fração do medo
como
o número ímpar que se adia
e depois
arruma os braços
contra o pedestal do fingimento.
Mas o medo não se divide
e no luar singular
conspiramos por junto
sem remorso
sem capitular
a menos que os anátemas sejam derrotados.
Não é o medo
fragilidade que se entoe;
os interstícios das palavras
desembaraçam o medo
que a meio se reduz
a museologia para memória futura.
Todas as fotografias
resumos inacabados, estéreis,
a safra adiada dos tempos com mofo.
Todos os pesares
diademas ancilares, inúteis,
a lua cheia escondida num castelo de nuvens.
Todas as euforias
juras inverosímeis, farsantes,
modo motriz das vias vindouras.
Todos os olhares
colonizadores impacientes, ávidos,
tutores dos mapas à procura de revelação.
Todos os sabores,
bocas e corpos combustíveis, transidos,
no paradeiro que não se invalida.
[Crónicas do vírus, DCCCXLIII]
Legados da peste (159):
As mangas arregaçadas
para obras
sem prazo de validade.
[Crónicas do vírus, DCCCXLII]
Legados da peste (158):
A pele
ainda não está pronta
para o novo mapa
que é a sua casa.