1.2.22

#2286

[Crónicas do vírus, DCCCLVIII]

 

Legados da peste (174):

Uma epifania:

a devolução de um paraíso

como logro que se não gasta.

31.1.22

Diletante

Exonerou o til do bolor

e das lombadas dos livros

varreu a poeira arcaica.

De vez em quando

reinterpretava o seu papel

como se fosse 

ator por dentro de um ator.

Daí extraía o maior enigma

pois se nem ator era.

#2285

[Crónicas do vírus, DCCCLVII]

 

Legados da peste (173):

Fomos 

e somos

náufragos

o salva-vidas

como seguro em dia.

30.1.22

Postulado

Senti os poros do mar 

na semântica do entardecer. 

Não era reparador

e as candeias que esperavam pelo rastilho

faziam de conta 

– faziam de conta que eram másculas

ou feitorias 

por onde espreitavam espiões desarmados

ou amorfos periscópios que espiavam 

a penumbra. 

Do entardecer válido

reuni as mãos por adestrar

no convencimento das noites sem paradeiro

entre o sal sangrado carne adentro

e o povoado chão 

que ardia na silhueta desmaiada da escopeta. 

Dantes

os muros não fugiam do olhar angustiado. 

Dantes

o mar era o exílio. 

#2284

[Crónicas do vírus, DCCCLVI]

 

Legados da peste (172):

A jura da derrogação

como mnemónica da paciência.

29.1.22

#2283

[Crónicas do vírus, DCCCLV]

 

Legados da peste (171):

Do tempo

medrou um gládio

que amanheceu antídoto.

28.1.22

#2282

[Crónicas do vírus, DCCCLIV]

 

Legados da peste (170):

Num lugar público

cercado por rostos açaimados

adivinho a desabituação futura

aos rostos desembarcados e inteiros.

27.1.22

Certidão de nascimento

Sou

vento do Norte

onda refeita no verso da tempestade

boca à espera de loucura

varanda que amansa a paisagem

voz que se levanta na pátria da mudez

corpo comprometido com a tela da avidez

jura infundamentada

fonte de ideias enredadas na desarrumação

posfácio de um epitáfio proibido

montanha adiada sem medo do tempo

verso singular no emaranhado de vozes

caudal em frémito esperando pelo estuário

página iracunda domada no bálsamo da noite

madrugada sem atalaia

a rua rochosa 

sem medo das espadas desembainhadas

sede por dentro das veias

instinto consuetudinário inaugurado no leme vão.

Sou

a desarmante face

de que o porvir é trunfo

sombra no avesso do luar maior

a mão caiada em página nunca gasta.

#2281

[Crónicas do vírus, DCCCLIII]

 

Legados da peste (169):

Despontou uma alvorada radiosa

quando (enfim)

anunciaram 

o fim esperado do pesadelo.

26.1.22

Manifesto anti melancolia

A tempestade

acorda o sangue hibernado. 

As palavras

elevam-se ao sopé da cordilheira. 

A pele

derrama suor nos acordes da ira. 

Os navios

esperam por vez

desenhando o estuário com suas silhuetas. 

A manhã

demora no emaranhado do inverno. 

O mar 

envaidece com a pose tumultuosa. 

A fala

inventaria as palavras destemidas

agora que o sal invadiu a pele

e os ossos rejeitam a melancolia.

#2280

[Crónicas do vírus, DCCCLII]

 

Legados da peste (168):

Num campo branco

sem flores

a partida da paisagem desertora.

25.1.22

Invernal

O degelo cresce na sombra da noite. 

Em comandita, 

os cães vadios varejam as ruas 

– pode ser 

que se façam delas

imperadores. 

O sono fundo das pessoas

traz uma impressão de hibernação

e as ruas são não lugares

momentâneos. 

Ninguém sabe o que povoa

os sonhos que inventariam os fundos sonos. 

Possivelmente

corpos errantes num adro sombrio

eclipsados pela sua tremenda fragilidade

transidos pelo latido da matilha

que se faz passar por uivos de lobos

famintos. 

Neste espessar dos verbos

o suor fala em vez das palavras. 

Os sonhos não esperam pela manhã. 

Sabem que o seu império chega a uma foz

mal a noite é destronada pela manhã

ínvia. 

O sangue

sem dar conta

terça esta batalha

entre um sono que amedronta

e a vontade não escrutinada

de se libertar da tirania dos sonhos. 

Se ao menos 

a insónia se fundisse com a noite

saberia 

do paradeiro da matilha.

#2279

[Crónicas do vírus, DCCCLI]

 

Legados da peste (167):

Às vezes

parece apenas

a interrupção de um pesadelo.

24.1.22

Desigual

As sílabas contam as bocas.

Esperam pela fala gorda

no desprotesto que se cala

na vigésima-terceira hora do dia. 

As bocas cantam as sílabas

e a fala em catarse foge da mudez

no tirocínio do tempo. 

As bocas:

escondidas na pose circense

arrumam-se em gestos pueris

e, todavia,

diplomáticos. 

A muda fala que se muda

e se esforça em estrofes fadadas

mutila o silêncio,

impraticável.

#2278

[Crónicas do vírus, DCCCL]

 

Legados da peste (166):

Ganhamos sentinelas

numa atalaia 

de que somos perdedores.

23.1.22

#2277

[Crónicas do vírus, DCCCXLIX]

 

Legados da peste (165):

Tal como ases autorreverenciais

refugiados em torres de marfim,

postiços apenas.

22.1.22

Naftalina antes do tempo

Deste estilo que se esconde

a impossibilidade do vento

açambarca as palavras vãs.

 

Diz-se:

 

o pensamento é masculino

(porque a gramática assim ordena)

e um pé-de-vento corre o terreiro.

 

O estilo que pressagia o porvir

não compensa:

 

esse é um tempo

que está por vir

e ninguém 

confirma a sua chegada.

#2276

[Crónicas do vírus, DCCCXLVIII]

 

Legados da peste (164):

Os dias ainda baços

que servem para assear

a metamorfose duradoura.

21.1.22

#2275

[Crónicas do vírus, DCCCXLVII]

 

Legados da peste (163):

Desengorda o ego obeso

nos estilhaços 

da sua disfarçada fragilidade.

20.1.22

Decreto a lei do desejo

A boca troveja 

a espuma alcançada

no mar lívido. 

 

Devolve

em dobro

a vertigem

amanhecida  

numa aurora boreal. 

 

No poema majestático

ficam desarrumados

os lençóis:

 

nesta arena

só têm admissão reservada

as armas que os corpos manejam

 

na gramática do desejo. 

#2274

[Crónicas do vírus, DCCCXLVI]

 

Legados da peste (162):

Pagamos

em medo, obediência e conspirações

o legado da peste.

19.1.22

O fim do jogo

Jogados os dados

os dedos são a sua trama. 

Dantes encolerizado

o magma eflúvio transita as veias

e adormece à boca de cena. 

Há um ardor que sobra da combustão

as paredes interiores abraseadas

que quase irromperam em desmazelo. 

Os dados cingiram a temperança

e os dedos,

enfim aplacados,

sorriem por dentro dos ossos

a favor do sortilégio.

#2273

[Crónicas do vírus, DCCCXLV]

 

Legados da peste (161):

O tempo

que se arrasta

fermenta o mosto

da fadiga.

18.1.22

O direito ao mito

A muda do corpo

esta deságua que lava o sangue

lava muda que desagua nas mãos

encorpando as paredes que amparam o dia.

#2272

[Crónicas do vírus, DCCCXLIV]

 

Legados da peste (160):

Uma guerra de teimosos

tende a tornar-se

em beligerância imorredoira.

17.1.22

Elefante na sala

Uma fração do medo

como

o número ímpar que se adia

e depois

arruma os braços

contra o pedestal do fingimento. 

Mas o medo não se divide

e no luar singular

conspiramos por junto

sem remorso

sem capitular 

a menos que os anátemas sejam derrotados. 

Não é o medo

fragilidade que se entoe;

os interstícios das palavras

desembaraçam o medo

que a meio se reduz

a museologia para memória futura.

Anéis que não têm dedos

Todas as fotografias

resumos inacabados, estéreis,

a safra adiada dos tempos com mofo. 

 

Todos os pesares

diademas ancilares, inúteis,

a lua cheia escondida num castelo de nuvens. 

 

Todas as euforias

juras inverosímeis, farsantes,

modo motriz das vias vindouras. 

 

Todos os olhares

colonizadores impacientes, ávidos,

tutores dos mapas à procura de revelação. 

 

Todos os sabores,

bocas e corpos combustíveis, transidos,

no paradeiro que não se invalida.

#2271

[Crónicas do vírus, DCCCXLIII]

 

Legados da peste (159):

As mangas arregaçadas

para obras 

sem prazo de validade.

16.1.22

#2270

[Crónicas do vírus, DCCCXLII]

 

Legados da peste (158):

A pele

ainda não está pronta

para o novo mapa

que é a sua casa.

15.1.22

#2269

[Crónicas do vírus, DCCCXLI]

 

Legados da peste (157):

Os rostos

ainda não são 

passaporte.