13.10.23

Espingardas fátuas

Contam as silhuetas

os nómadas que não dormem

contam o que não sabem

antes que sejam 

párias da consciência. 

Afugentam a pele furtiva

obcecados 

pelo estreito incumprimento das regras. 

Aburguesaram-se

contestam outros

dissidentes

que deixaram de os ter em conta boa. 

Como aburguesar

não merece a atenção do código penal

o pleito é anedótico

um burburinho de primos incompatibilizados

um entretém frívolo 

de que não reza a importância. 

Os párias 

embebidos no nomadismo

não desaprenderam as coisas tribais

por mais que os desavindos os acusem

de se enamorarem pelas coisas triviais. 

 

Se marcassem encontro 

numa ágora inspiradora

conseguiam rematar as dissidências

com as pazes a deixar aberto 

o horizonte da comunhão de meios?

 

Agora

as suas peles têm diferentes tatuagens. 

Embarcaram em comboios diferentes

e usam mapas que são a antítese. 

Dantes

ainda fingiam unidade.

Agora

evitam as mesmas ágoras

e deixam para os outros

o ónus que dividiu uma em duas casas. 

Estão mais longe 

do que estavam dos demais

antes de terem angariado 

a cisão.

#2929

Muito se aguarda

no plantão dos iludidos

sem conceder que é um alçapão

que mora atrás do horizonte.

Injustiças indocumentadas (201)

Entre(m),

aspas.

12.10.23

Até logo

O objeto é abjeto.

 

Ir a Marte não é amar-te.

 

A métrica é assética.

 

A congruência faz lembrar o congro.

 

A tirania é uma espécie de tia.

 

A tirana é a que tudo tira.

 

O artificial não é (nada) especial.

 

O algoz é um capataz.

 

A pureza é uma indelicadeza.

 

O bocejo é matéria do desejo.

 

A aliteração soa a aletria.

 

O robe não é um nome inglês.

 

O contumaz deixou de ser capaz.

 

O périplo é como o pirilampo.

 

O estilhaço não precisa de vidro.

 

A bala precisa de demência.

 

A igreja não tem nada que se veja.

 

O estupor também é doutor.

 

A toalha não coalha.

 

Cada guerra é um lugar sem terra.

 

O amante é um armante.

 

A clepsidra é uma sidra cleptomaníaca.

 

O entulho é parente do esbulho.

 

A maresia amacia.

 

O vaidoso vai doloso.

 

O vate deve variar o verso.

 

A escumalha não sabe da escumadeira.

 

A aia só diz ai-a, ai-a (sem se saber quem é “a”).

 

A sílaba é sibilina.

 

A cordilheira não tem arnês.

 

A chuva dispensou o chapéu.

 

O sono é mais logo.

 

O gato perdeu o sapato.

 

O petiz é tão feliz.

 

Já o velho cavou o cenho.

 

O rouxinol só canta por conta do sol.

 

A sereia é um cabo de sarilhos.

 

O trovador encontra a dor.

 

A erudita gostava de ser da comandita.

 

O estouvado diz estou vago.

 

A atriz mete o dedo no nariz.

 

Há costa de quem não se gosta.

 

E luditas que emigraram para o Luxemburgo.

 

Sinais de fumo, sinais de fumo.

 

E o candeeiro gasto, sem mecha.

 

Fronteiras viradas do avesso.

 

Passaportes que passam os portos.

 

E didascálias, para os utopistas.

Injustiças indocumentadas (200)

Fez do gato sapato 

– mas o gato 

não tem sapato.

#2928

Usara a usura

contra tiranos piores

essa era a melhor costura.

11.10.23

Pleito

Dei de mim amostra ao magma inteiro

uma pletora de rios fundos e de frias águas. 

 

Ontem 

arrastei os ossos contra a maré

desviei os prantos de colisões desnecessárias

e os furtivos ventos alisaram a descompostura

antes que de mim se hipotecasse

um grama de alma. 

 

Os provérbios fogem pela escotilha

juntam-se aos procuradores da decência

aos sacerdotes dos costumes 

(têm de ser bons)

e levitam as mãos ateadas 

deixam-nas suadas a saber do frio da noite

sem ouvir a voz mecânica que assalta os sonhos. 

 

Dizem que há profetas que ocupam um lugar. 

 

Devem ser invisíveis

ou puros fantasmas

o porvir continua a desafiar as probabilidades

arquiteto da sua gramática

insensível às sensibilidades que se entrecruzam

dos luditas que trazem em si

as ansiedades ilícitas. 

 

Os campos atravessam os rios

e somos nós

marinheiros despojados

que arrefecemos o aquecimento patológico. 

Às vezes

damos as mãos por cima das redes

é quando os sobressaltos fazem alpinismo

e nos esquecemos do arnês. 

 

Não importam 

os apocalipses prometidos com solenidade;

os curadores que juram curas a eito;

os mercadores de sonhos que começam pelo telhado,

as vozes surdamente cegas em delírios sintomáticos;

a desbeleza a concurso, a banalização da fealdade;

todos os embaraços à sofreguidão da vida:

em mil páginas de inventário

cobram-se honorários usurários

e já não há doutores das almas que cheguem

na invasão das águas mordazes

que contaminam o dia constante.

#2927

São apenas corpos,

ou é o idioma bastardo

a besta que colonizou o Homem.

10.10.23

Injustiças indocumentadas (199)

Fogo no rabo

não é homofóbico.

Honoris causa

Abertos os envelopes

sobravam em salvos-condutos

o que fazia falta em senadores. 

Uma terra não é ninguém

se não estiver habilitada

com a sua reserva 

de senadores. 

É um pouco 

como catedráticos sem catedral

mas do avesso;

como não há lugares sem gente

(perguntem ao Bodin)

não se ocupam sinecuras

se desertos houverem ficado 

os concursos. 

Ao demais

morda-se nos costumes

traga-se a terra desossada de notáveis

que do conceito se faz palavra vã. 

Em vão

terá sido a passagem do ano a vau:

finge-se um parêntesis do tempo

como fingem as lápides 

antes de serem ensaboadas com elegias. 

Prometam antes epitáfios

que os deuses solares andam extraviados

e fazem do Outono uma mordaz encenação 

– tal como funciona 

com as senatoriais sumidades

à espera de um honoris causa,

à falta de melhor.

#2926

Ao acudir o degelo

o caudal desamparado

a gramática 

dos excessos prístinos.

9.10.23

Dívida em forma de poema (ou poema em forma de dívida)

Devo um poema

a não sei que credor

é destas dívidas obituárias

em que verto amianto

antes que sejam perenes

e nem o aforro alheio 

seja refrigério.

Mal que seja maior

o de depositar um poema líquido

os débitos não choram futuros

e os espelhos cobram honorários

pela honra amesquinhada.

#2925

Bebemos os milímetros 

da paisagem irresistível 

para a apalavrarmos 

nas memórias intemporais.

#2924

Dividimos 

para anarquizar

e ninguém 

nos pode censurar.

8.10.23

Islândia

Foi preciso

avivar a ira dos deuses

para bela ser a obra

das suas mãos genéticas.

5.10.23

#2923

Dividíamos sarilhos

para nada ficar ao acaso

e depois celebrávamos.

4.10.23

Descompetência

Diz 

que são matinais 

os suores perdidos

no prefácio do dia. 

As ruas 

vão ganhando gente

ou dir-se-ia

vão perdendo o silêncio

matricial

enquanto a luz adolesce

e já não há corpos domados

pelo sono. 

Sobe

na pura verticalidade

um sangue paradoxal

feito de letargia e vontade

é o motor de arranque da cidade

que não espera por luares quiméricos

não espera

que sejam visíveis 

as palavras sem estribilho. 

O peso de uma nuvem

cerca a claridade;

o vento que a trouxe

deita-se na pele descaucionada

as miragens também têm 

rostos paradeiros

sem que se exilem 

num ontem fantasma. 

As pessoas 

são forasteiras entre si

não falam

entreolham-se na curiosidade furtiva

ou num arremedo de lascívia

o óbice de consciência que não se esconjura

metodicamente 

desconfiam até da sua desconfiança

como se fossem 

apátridas uns dos outros

que são terra sem linhagem. 

O retumbar dos carris

à passagem dos comboios suburbanos

o zunido soado por condutores apressados

(a confirmação

do princípio geral da despontualidade)

a vozearia de um bando de rapazes 

o rumor de fundo da cidade:

já tanto se descompõe a quietude

que doentio seria o silêncio. 

De que verbos fala o silêncio

se o desconhecemos 

na gramática em uso?

Os madrigais

pedem meças a um estado original

todavia irremediavelmente desvirginado. 

Está é uma doença sem redenção

chamem-lhe 

um coma vertiginoso

ou estado terminal 

se apetecer procriar uma especulação 

apocalíptica:

o senso nunca foi comum

cunhado por portas enviesadas

por onde entram 

os que afocinham na subserviência

nos contraplacados 

vendidos como madeira nobre. 

Ficamos 

com o dia entre as mãos

e não sabemos o que fazer com ele 

– o que fazer dele. 

Somos reféns 

da imperícia.

Injustiças indocumentadas (198)

A voz.

Avós.

A vós.

#2922

Partidário

da militância

de nada.

3.10.23

Embaixador

A luz violeta atravessa a pele enevoada

abraça o cansaço vertido na penumbra

e mesmo os boémios fartos esmorecem

ficam à mercê do arrebatamento dos sonhos

despojados dos seus espelhos feéricos

derrotados pela rima convulsiva dos opulentos.

 

Se a tarde não fosse esquecida

voltavam todos à esplanada

onde foram escansões das almas avulsas

a sua maior impertinência

desde o pequeno furto não documentado

já que o rescaldo da adolescência foi pueril

e inocentemente pacato.

 

Agora

as bandeiras brandidas desassossegam o palco

entram punhais mastigados pelas úlceras 

e todas as palavras se arrependem

as noites não dormidas sobem à boca de cena

como se um luar imprevidente convocasse

a redenção imperativa.

 

Eles não acreditam na redenção.

 

Se acreditassem

estavam em delirante negação do tempo 

e não têm coragem de costurar tamanha bainha.

 

Os corpos partem no etéreo enamoramento

mal suam contra as veias ateadas

as bocas falsificam os silêncios achados

verberam as falas mansas que soam a ardil

e depois

antes que uma dobra do tempo seja selada

na lombada da memória

esconjuram os meãos que tomam conta do fado

sublevam-se contra as vozes ordeiras

compondo o hino matricial do caos

porque se as pessoas são um ideal

se elas se aposentam na sublime destemperança

de quem desalinha do medo institucionalizado

não respondem por hinos ou bandeiras

não respondem à ditadura de velas aluídas.

 

Desobedecem galhardamente

porque sabem e precisam

de ser gente de si mesma pária

mas legítima diante de um espelho alheio

sem importar que esteja desbotado.

Injustiças indocumentadas (197)

Águas furtadas;

e ninguém se queixa.

#2921

Que meças as meças

antes de as pedires.

Injustiças indocumentadas (196)

Cansados

à primeira

vista.

2.10.23

O maestro que erradicou a melancolia

Erradicaste a melancolia

com o alto patrocínio da UNESCO.

Os teus pares

 

(e os ímpares também 

– que não és de discriminar 

por feição aritmética)

 

rasgaram os maiores elogios

e tu ficaste sem saber aonde estacionar;

não é de agora

nunca soubeste abraçar as loas

tu que, amoedado na humildade,

sempre habitaste na penumbra

e nunca aceitaste do desanonimato.

 

Hoje dizem-te

que por “serviços inestimáveis à comunidade”

vão imortalizar o teu nome

na toponímia da cidade.

 

E tu

que outrora erradicaste a melancolia

aos outros prestando o serviço 

agora sujeito a menção honrosa,

vês-te preso 

nos insidiosos barbantes 

de uma odalisca chamada

angústia.

Injustiças indocumentadas (195)

Prescrita uma quinzena 

na mais pútrida das trincheiras

a quem usar a expressão

“teatro de guerra”.

 

[Teatro

não se pode casar com guerra 

como sua palavra sucessiva]

Injustiças indocumentadas (194)

Sem carne

não há canhão.

#2920

É o cobre que cobre 

a pele desprotegida,

o antídoto contra 

a modernidade.

1.10.23

Baunilha

Ontem esteve um vento arrematado

um vento de ir aos ossos

e num instante ao acaso

deixei que o sangue subisse a eito

podia ser que apanhasse as rédeas do vento

mesmo que fosse sinuoso o vento

e deixasse em apneia

as consumições terçadas por vultos 

sem remorsos.

#2919

O contrabando perene

arrevesa a autenticidade.

Ninguém se importa

com a farsa dos sentidos.

#2918

Não é a meia-haste 

o nervo atraiçoado.