29.2.24

Protetorado

Sem a fala amanhecida

os dedos pedem um cicerone

suplicam 

a melhor água de mananciais remotos

até que seja audível a carne

até

que se prometam árvores bucólicas

o tempo imoderado nos espelhos arrumados

um poema improvável

as notas escarlate sobre o veludo da pele

até

que se desatem os medos profundos

e tudo o que seja sobressalto 

venha no rosto caudaloso 

e detestadas sejam 

as algemas que amordaçam as vozes 

– as vozes que têm tantas falas 

em saldo.

Injustiças indocumentadas (305)

Levava muito a sério

não se levar a sério.

Injustiças indocumentadas (304)

Mudam-se as vontades

mantêm-se os tempos.

Injustiças indocumentadas (303)

Pela lógica dos mercados

este bissexto dia

devia valer

quatro vezes mais

que os outros dias.

#3078

Se antes fosse 

saudade

mais tarde seria 

desencanto.

28.2.24

Injustiças indocumentadas (302)

O belo em moldura.

O belo emoldura.

#3077

Enfiou o barrete.

Nunca mais

desaprendeu.

27.2.24

Estado atual: a pregar uma partida a Narciso

Que pareçam balofos

os patriarcas tonitruantes

os que emprestam perfume garrido

à passagem

inebriados

constantemente inebriados

pelo secular espelho que os devolve

em sumptuosas silhuetas

que muito os envaidecem. 

Ainda bem:

enquanto se esgotarem 

na frivolidade das silhuetas 

de que não são mais

não causam grande dano. 

#3076

Onde 

a maldade

se faz miradouro

não é escaninho

é uma gramática assídua.

26.2.24

Eclipse

O eclipse aviva a penumbra

como se as sombras vivessem

nas costas das mãos.

As conchas cadáveres

exibem as praias da sua predileção.

Os mais velhos

sem sono

escondem da noite as rugas

só para a manhã não açambarcar 

os dedos trémulos dos relógios.

Injustiças indocumentadas (301)

Contam-se

as cabeças de gado.

O resto 

(dos corpos)

parece que não importa.

#3075

A régua 

sem o esquadro

também é gente.

25.2.24

Injustiças indocumentadas (300)

Lua 

cheia

de graça.

#3074

O ócio copioso

o óbvio capcioso

o ópio cavernoso.

24.2.24

Injustiças indocumentadas (299)

O que é feito

do tear

do diabo?

#3073

Uns pés que dispensam botas

uns pés a menos

que pesam de mais.

23.2.24

Narizes e matéria nauseabunda

Narizes aduncos

e outros adelgaçados

farejam os interstícios da vulgaridade

assim como porcos usados na apanha de trufas. 

 

A merda gravitacional

não se pondera na hora da soltura. 

 

Diremos:

chiqueiro

 

e não sabemos

mas afocinhamos na balsa fétida

o lugar onde descamisamos linhagens

e ficamos ao nível de uma escatologia sistemática. 

 

Não estranhem

que andem tantas moscas

por aí.

#3072

Antes que seja preciso desconversar

empurram-se os talheres para os dedos

e pergunta-se à lua se vai sair à noite.

22.2.24

Resumo

A boca desenha os frutos

não se importa que sejam 

depois

a medida da podridão:

os frutos também perecem

o que serve de conforto

para o embaraço que é

a finitude aplicada às pessoas. 

 

Os frutos vêm à boca

convocam a madurez 

incógnita para o sangue;

avivamos o magma

com o frescor dos frutos

e não há o que dizer

da boca assim domesticada.

#3071

Eu podia ser

a voz do Inverno

o silêncio dos prantos

o peito sem fronteiras

um poema adiado.

21.2.24

Injustiças indocumentadas (298)

Andar nas bocas do mundo

dá trabalho, e muito,

a muitos dentistas.

#3070

Tramita

o jurisconsulto

no justo travar do locupletamento

repristinando o equânime latejar

convertendo os pirómanos ao sinalagma. 

20.2.24

Partida

O fogo posto

 

tardio

 

convence déspotas

a cuidarem do devir

 

adivinham

que depois do chão

um verosímil precipício

 

inútil o varão que foi 

de torturas muitas. 

 

Fidalgo

 

impenitente

 

desova a possuída tença

da altivez

 

incapaz

de olhar por dentro dos olhos

 

incapaz

 

incapaz. 

 

Já não dorme

(assim sonha)

 

a ceifa sombria em cima dos dias

os dedos trémulos

a voz cegada

só tosse e escarro

 

um espelho

afinal

 

o testamento 

ainda 

em vida. 

 

Os pesadelos:

 

os de outrora

antes do sangue envenenado

pelo medo

eram os sonhos melhores. 

 

Agora

 

a prescrição

prova dos factos

 

a corrosão

 

sobe ao tabuleiro

 

ele

só à espera

de ser peça 

derrubada

 

mera folha 

apanhada

 

no sortilégio

de um vento

 

novo. 

 

O novo


na coroa do velho. 

#3069

Se deus é uma pessoa

tem NIF e CC e passaporte

(e de que país é o passaporte?).

 

[Uma fadista, destas modernas, teve uma epifania a dobrar: deus é uma pessoa]

19.2.24

Dicionário de antónimos

Da matança orgulhosa

não fogem em prantos

os carrascos sem sangue.

Escondem 

as ossadas do saque

e a ferrugem

cobre os rostos dos mercenários

deixa-os com uma pele sem idioma.

Atiram-se à manhã

na extinção do remorso

deles é uma voz sem rugas,

os farsantes que correm 

contra as serenatas sem intenções.

#3068

O presente 

não se conjuga 

no passado.

#3067

Estar na linha de trás 

sossegadamente 

vestido de anónimo.

18.2.24

Corpos entrelaçados

Cobro à noite 

o penhor da carne em combustão. 

Não sei do mais, 

a não ser das tréguas interiores 

que perfumam o tempo. 

Só de ti espero um campo de flores. 

Eu sou o perfume que delas arrancas. 

Só sei da noite a voz fulgurante, 

as tochas ateadas no chão que é pele. 

Até que seja manhã 

e dela a façamos miradouro 

por onde espreitamos 

os corpos nossos entrelaçados.

#3066

As fragas abrem-se ao sol

libertam-se

do seu nevoeiro interior

e falam, 

pródigas como nunca falaram.

17.2.24

#3065

O dedo daninho

dá em dobro

a dádiva do mesquinho.