19.4.06
Espólio
Um restolho que passeia na memória,
o espólio do tempo fugido.
Na máquina do tempo
as imagens percorrem a tela
fogem quando as quero reter
por uns instantes.
Recordações
que fazem esboçar um sorriso,
ou
experiências dolorosas,
quantas vezes de uma dor procurada
como caçador furtivo
persegue a sua presa.
Eram tempos
em que a tristeza
não queria viver abandonada.
Tempos
do ar plúmbeo
cores carregadas com as sombras
sempre presentes.
Desse tempo
guardo feridas já saradas.
Revejo as cicatrizes abertas
o vermelho carmim do sangue exposto;
revejo-as
património da indecisão,
o fausto manjar da perturbação
sorvida com deleite.
Desse tempo
apenas o restolho que foi pousando
com a calmaria dos anos.
O espólio nos meus braços,
enternecedora imagem
do ontem não renegado.
Apenas vontade:
não dedilhar as páginas para trás
deixá-las inertes no seu sono eterno.
Houve tempo que passou:
empedernido
esquálido
emoldurado
numa fotografia que retenho,
o sopro gélido que petrifica a memória.
Só isso,
e nada mais,
quero do tempo ido.
18.4.06
Vulcão domesticado
temerária,
no voo de pássaro.
Mostra a cratera do vulcão
como ninguém a descobre
do sopé da encosta.
Uma larga boca
vomita as fumarolas
que adivinham lava incandescente
a ser regurgitada
– só não se sabe quando –
das entranhas da cónica montanha.
O cinzento
tomou conta da paisagem.
Cobre-se com os fumos
fugidos das frinchas que irrompem
das basálticas rochas.
A montanha troa,
irada,
assusta quem não a conhece.
Os nativos,
habituados ao mau humor do vulcão,
convivem com a feérica actividade.
Não querem temer
a distracção dos elementos:
o arrebatador mar de lava tórrida
ladeira abaixo,
tragando o que encontra
até repousar no fim do declive.
Têm pesadelos:
o vulcão,
furioso,
a vomitar lava que explode
num tétrico fogo-de-artifício.
Na aurora humedecida
olham de relance para o vulcão.
Fitam o cume
na ansiedade de quem clama
pelo sossego da grande montanha.
Sé então,
serenados espíritos,
descem os olhos
pelos contrafortes da montanha.
Há gerações
sempre o mesmo ritual:
um coração inquieto
pulsa veloz
desperta dos pesadelos
com a aura da bela montanha.
Tementes,
orando todos os dias
para que um bom deus os proteja
de um vulcão que promete
despertar.
11.4.06
Mar arrebatador
levo comigo o oceano.
As lágrimas que nele tumultuam
com a espuma fina que se perde
nas rochas enegrecidas.
Todo o sal que cristaliza
nas pedras gastas pela fúria das ondas.
A dor,
a dor sussurrada
pelos gemidos das ondas em dias de tormenta.
O odor da maresia
que invade a ossatura
nas húmidas noites de Verão.
À mistura com o nevoeiro
que se alimenta na maresia invasora.
Desta terra
guardo as imagens do mar tão belo.
Dos pescadores
e da sua imperial paciência,
das traineiras que fogem do rio,
remam contra a embocadura do estuário,
como quem se mete na boca do lobo.
Das gaivotas
em coreografias dementes
na demência de quem busca alimento
entre os restos já desaproveitados.
Desta terra,
o mar,
ou apenas
o longo lençol azul
que se deita na calmaria da brisa.
Longo mar,
infinito horizonte,
o travo ora doce, ora amargo,
demoníaco ou sublime
curador de exaltações singulares.
Partirei,
levando em mim
a lembrança
de toda esta água salgada
que inspira.
Nos meus olhos
todas as gotas do mar imenso.
9.4.06
Roseiras bravias
o bailado de odores.
Ungido pelas pétalas
que foram leito
das dóceis gotas do orvalho
nocturno.
O sol da primavera,
já alto,
fornalha incandescente
que devolve o orvalho
ao etéreo.
Reluzem as pétalas
das rosas douradas,
tingidas num quadro de ostensiva
beleza tranquila.
Singular sabor
hibernação nutrida
na coreografia
das cores
e dos aromas
das rosas.
Para quem as quiser contemplar.
4.4.06
O navio candeia
o navio aportava nas águas calmas.
Trazia no porão
o sal das terras distantes;
a miragem de terras
que nunca hei-de ver.
O navio
com a escolta de rebocadores
extasiados com a visita.
Já não sulcava as águas paradas,
empurrado pelos bravos rebocadores
até ancorar no cais velho.
Mostrava o garbo
da muita mercadoria empacotada
nos enferrujados, sujos contentores.
Ficava parado,
dias,
à espera
da lenta marcha dos estivadores
do langoroso desembarque da mercadoria.
Esvaziado de algum conteúdo o navio
outra se encavalitava
nos corredores desamparados.
Dava o navio
notícias do progresso do mundo.
Para mim
o repositório do navio vagarosamente
entrando no porto
hasteando uma bandeira colorida
que esbraceja tão devagar,
no ritmo de uma brisa
inesperadamente tranquila.
Envelheci.
Perdi o rasto do navio.
Só não sei
se a falta de tempo
– ou a desventura do navio ter fugido da minha vista –
selou o decesso do grande barco.
Não sei
se foi desmantelado
num longínquo estaleiro
nas águas gélidas do Báltico.
Ou se a surpresa reserva mais visitas
que saltam fora da minha órbita.
Qualquer dia
estou de visita ao porto.
Espero pelo navio
como quem espera por regressar
à infância deixada lá atrás.
No tempo do rasto perdido.
3.4.06
Parque das nações
crepita.
Contrasta com a acinzentada luz
das nuvens que escondem,
tímidas,
o temerário sol.
Lá fora,
as pessoas passeiam
digerem vidas atribuladas
esventram as sinuosas curvas da vida
no gelo quebrado pela tepidez
primaveril.
Não as crianças:
na algazarra
só conhecem a inocência da bondade.
Os mais velhos
ora repousam na esplanada
ora palmilham a calçada que adeja o rio.
Dão tréguas aos espinhos aguçados
cravados na garganta sangrada.
A hora do descanso,
refrigério dolente
um tempo que apetece imortalizar.
Não,
os espinhos crivados
não derrotam os sentidos;
só o perfume das framboesas
repousando na boca
no hiato das adversidades.
Oxalá
todo o tempo fosse
captura dessa
bonomia.
(Lisboa)
28.3.06
Perfume
o aroma exaltado das amoras.
Fragmentos,
alva ou ruborizada
apetece tragar as pétalas perfumadas
soltadas de cada poro.
Às vezes adormeço sobre ela.
No vento soprado
vem o hálito que reconheço na tua pele.
Ou nas velas que incendeiam a noite escura
o odor roubado à tez esbranquiçada.
Um percurso sem espinhos,
aveludada avenida,
tactear vagarosamente os centímetros da tua pele.
Ungida pelos dedos extasiados
com a fragrância de morangos silvestres,
tágide que recobras os sentidos.
A pele adormece
saciada nos sentidos
e a cabeça repousa no leito que ela oferece.
Vertem-se as lágrimas enxutas
e a tua pele é o santuário onde os dedos
sabem dançar.
Esboçam estátuas imaginárias
contornam as curvilíneas dobras
que escondem mais mistérios.
Na repetição dos dias
há sempre novos segredos
resguardados na tua pele.
21.3.06
Dez minutos
para dizer poesia.
Para estender a mão.
Olhar bem fundo, nos olhos de alguém.
Dez minutos chegam
para cativar a temperança.
Pequenos gestos
fortuitos ou pensados
espontâneos ou provocados.
Nos dez minutos
em que a nuvem passa
encobre-se o sol
e as cores tingem-se de sombra.
Nem assim,
dez minutos algures e depois,
o rasto da luz se perde no sempre.
Dez minutos
Hão-de tardar senão
em derrotar a sombria obstinação.
Tarefa singela:
Só, e só apenas,
dez minutos de contemplação.
14.3.06
Lampejos da primavera
no troar da cálida temperatura;
anúncio da invernia que se despede,
em breve.
O cansaço do frio que torce os ossos
e da chuva-sempre-demais
– mesmo quando rareia –
apregoa outro hemisfério.
Pássaros
em voos inebriantes
cantam a alegria de contágio às pessoas,
em breve.
Das árvores
desponta um tímido, mas alegre, bouquet
o perfume que abre a porta
do armazém dos pesados agasalhos.
As pessoas soltam-se do acabrunhamento
no aligeirar dos corpos
que querem respirar
por todos os poros abafados pela invernia.
7.3.06
Desintoxicar
no tempo que há
longe da matilha palavrosa
sem saber onde
é o refúgio.
Cura de desintoxicação
e demanda do belo
que rareia
como volúvel é o ar na altitude
da montanha.
A singeleza de pequenos passos
como se o terreno
pudesse ser dedilhado
e todas as pequenas pedras
apanhadas do solo.
Em todas elas
a impureza escrita
do solo pedregoso e sujo;
retiradas ao solo
purificadas na mão hospedeira.
Pequenas pedras
disformes, angulosas,
disfarce da putrescência
que clama o refúgio,
pedras agora debruadas a ouro.
5.3.06
O outro lado do espelho
Os olhos retratam o que vês
deste lado do espelho?
Será um sonho, a visão
deste lado do espelho?
Seja a fantasmagoria
que te acompanha;
ou a fuga do cenário medonho
que te leva a ver as coisas
deste lado do espelho
– quando, afinal, estás do outro lado do espelho.
deste para o outro lado do espelho.
Quando cerras os olhos
e mergulhas no denso sono
duvidas de que lado do espelho
te encontras.
Tudo, apenas,
uma miríade de incógnitas.
Se certeza há é a ausência
da certeza.
És dois hemisférios,
dividido entre ambos os lados do espelho.
Ponhas o pé de um lado ou do outro
inquietam-te as sombras doentias
de te saberes abandonado do lado fugidio.
Percebes as vozes que gritam
do lado de lá do espelho,
a confusão de palavras que se atropelam
a absurda linguagem sem sentido.
No lado em que ficas
só há silêncio
um silêncio que ensurdece
os ouvidos repletos de loucas vozes
que vozeiam palavras vãs.
No sono
a moldura de um pesadelo:
a encenação do que acreditas ser
na vida em que estás acordado.
Quando a aurora te resgata do sono
a inércia da desrazão fala alto:
se quando sonhas
não são apenas sonhos de que sonhas
um turbilhão que te sufoca
em camadas mais densas
de te não saberes existência.
De olhos no espelho
sempre com a inquietante lucubração
de que outros olhos,
porém teus também,
te fitam
do lado de lá do espelho.
Na louca ansiedade loquaz
levantas o espelho:
só parede.
Nem o reverso do espelho
alguma coisa esconde,
a não ser uma tela acastanhada
o biombo do outro lado do espelho
– um mistério por revelar.
14.2.06
Namorados perenes
Palavras frontais que desarmam.
Dedos quentes que percorrem com prazer
O meu corpo.
Quis-te dar tudo.
O sol de todas as cores.
Pintar os quadros mais belos
Pintar a tua pele macia,
um resplandecente sopro
que trouxe pureza de ar.
No teu altar
percebi como as coisas são:
reais, não imaginadas.
Caí em mim
agraciado pela temperança
de seres tu ao meu lado
namorada, sempre namorada.
À noite,
encamisados nos lençóis que nos recolhem
só um beijo
para a renovação dos sentidos.
Parece pouco;
na idealização do amor impossível, decerto.
não é de impossibilidade que careço.
Apenas palavras curtas e acertadas,
gestos sublimes e tão intensos.
Sentir
que há alguém
que divide uma vida
alguém
que franqueou as portas da sua vida
à minha existência.
Uma partilha.
De mim por ti, em ti por mim.
Um travo adocicado
que dá sentido aos sentidos.
Olhares, pele, carícias, palavras.
Ternura.
Um património que soubemos levantar.
Nosso.
11.2.06
Matéria solúvel: cartilha do agnóstico
almas torturadas por divindades estarrecedoras.
Oram verdades inconsubstanciáveis
para o rebanho calar no véu da fé.
A cegueira de quem teima em ver na escuridão.
Os sacerdotes, metidos nos seus trajes,
vomitam a verdade, lava rubra,
como escaldante será à boca do vulcão;
patrulham a vida dos crentes,
uma porta aberta para a candeia dos sacerdotes.
Pregam a virtude a viciosos seguidores:
volúvel prédica, só encher o verbo
tão fátuo como o não foi
todo sangue derramado
em nome de superiores credos.
É a lava fervente que jorra colina abaixo.
Repousa nas ladeiras
Cristaliza convicções
Leva a vida de quem dela espera
terapêuticas virtudes.
Espera-os o remanso da vida prometida
que chega mal os olhos se cerram
definitivamente
numa escuridão relapsa
Torturante nada tão angustiante.
Das fés germinaram sementes de ódio;
pelas fés, espalhadas por todas as terras,
sinais da antítese do que elas reclamam ser:
morte em vez de vida;
ódio em nome de um amor retórico.
10.1.06
Em demanda da ternura
Regressar aos beijos
repousados na tua pele branca.
Soltar as amarras
que enregelam os afectos.
E depois,
pela noite,
acolher-te nos meus braços
residência dúctil para a tua fragilidade.
Sem aprisionar a leveza escondida.
Lá fora,
enquanto sopra a ventania invernal,
escondem-se os fantasmas de antanho.
Braços férreos empurram-nos
para latitudes distantes.
Os fantasmas,
como o vendaval,
escurecem a gélida distância cultivada.
São a bolorenta lassidão dos dias
que se dobram, repetitivos, esquálidos.
Há lugar a toda a ternura de outrora.
Haja força para derrotar
as vesgas madrastas que não ficaram vergadas.
Rancorosas, teimam em fertilizar
a pantanosa existência.
Haja forças; mas encontrá-las,
mister difícil?
Só nas acabrunhadas facetas
do asceta que vive mergulhado
na escuridão de afectos.
Varram-se as lâminas pedantes
das profecias negras que ondeiam;
Enxotadas sejam
e reentre o excitante hábito
de saborear as pétalas adocicadas da ternura.
Outra aventura será só misericordiosa
do pleito pela comiseração.
Camisa-de-forças anestesiante
que faz passar os dias
como se longos minutos fossem.
Perder o tempo,
ele já tão fugaz?
Tontice de um louco
que não escuta a poeira louca
apoderada dos seus sentidos.
Tudo ou nada
– sem lugar ao intermédio.
Ou a nau que parece parada;
no rebobinador da existência,
a consciência que andava, sorrateira.
Inércia letal,
divã de um comodista apaziguamento.
Recobra a quentura em ti,
espolia essa inércia
nas prateleiras do perdível.
Saberás então
que um sussurro lânguido
preenche todo o espaço
que vai daqui até à lua.
Ela, vigilante, espera pela demanda.
31.12.05
A neve, a ardósia e os lírios
Evocações escritas a giz
numa ardósia.
Lá fora
a neve semeia-se
esbranquiçando o solo.
Lembro-me:
do negro da ardósia
e do alvo manto de neve.
A ambivalência dos opostos.
Pelo meio
o amarelo dos lírios
estende uma mão
entre os desavindos contrastes.
Que se purificam
através do amarelo dos refrescantes lírios.
A ardósia serve de tábua
onde vertidas são as memórias
da gélida neve repousada ao acaso.
A mesma neve que refugiou os lírios
na invernal hibernação.
17.12.05
Ilusões de óptica
agitado,
na interrupção de um pesadelo.
Temia o túnel exíguo e escuro
por onde só conseguia rastejar
num sufoco claustrofóbico
a parte nenhuma vai dar.
Ver
que na desembocadura do túnel
lá na porta que o cerra
não está uma enxurrada de água
que me empurra na torrente.
Cabeça mergulhada na água borbulhante
pulmões a sorverem água
que tira a respiração.
Ver
que é um pesadelo,
apenas.
Já consigo ver,
como se fosse o periscópio que rompe a água
e traz a ofegante respiração de volta,
só um pesadelo.
Agora vejo o céu azul, ´
que nunca pareceu tão azul,
tão brilhante.
Vejo
os pássaros que voam
na onda da brisa marinha.
Vejo
um par de namorados,
na solidão refugiada do farol,
que se beija longamente.
Vejo
o areal dourado
que recebe os lampejos do sol.
E vejo
Tudo o que os olhos captam
na convocação dos sentidos.
Vejo
excitações perenes que trazem sentido
à vida.
Vejo
com os olhos
sinal que a vista testemunha
uma vida bem presente.
Não me canso de ver,
tudo a toda à volta,
curioso de mim mesmo,
fosse viandante num cosmos
preso nas minhas mãos.
E, enfim,
vejo.
Ou quero apenas
ver aquilo que vejo.
25.11.05
Folhas outonais
Um eco outonal,
o desprendimento das folhas caducas.
Dantes embelezavam árvores
tingiam-nas de um acobreado mágico.
As árvores despedem-se da folhagem inerte,
paradoxal desnudamento para a intempérie invernal.
Ficam os galhos
a coragem de levitar ao vento agreste
de acolher as pesadas gotículas que sedimentam com o frio.
As folhas hibernam
refugiam-se da inclemência dos elementos.
Folhas inanes de coragem
primeiro perdem o verde reluzente
ganham um vermelho que, carcomido,
se vulgariza num castanho fúnebre.
Caem, enfim, na leveza da brisa imperceptível,
ou fustigadas pela ventania
que anuncia a estação severa.
Jorram das árvores com abundância.
Chegadas ao chão,
são calçada para os pés
viscosa matéria quando nelas repousaram
as caídas gotas de chuva.
Até que zelosos lixeiros as recolhem
deixando à mostra um tristinho cenário
– um nada, árvores despidas, o chão friamente vazio,
o vento que sopra com amargura,
o frio pedindo uma bebida quente.
As folhas vieram até ao solo.
Convidam ao refúgio no crepitar da lareira.
E tal como as árvores se escondem das folhas
– ou as folhas fogem das árvores –
os corpos tiritantes de frio exilam-se
na retemperadora chama da lareira.
Um Inverno
clamor ao deserto das ruas.
11.11.05
O que podes dizer (tanatologia da razão)
que já nem as cores do Outono interessam
as aves ladinas perderam a graça
ou o riso das crianças que entoa a alegria só um rumor
perdido na bruma espessa que mumifica o frio.
Podes até dizer
que o azul do céu perdeu a beleza
as ondas do mar perecem em indistinta monocromia
as vozes inspiradoras gelaram o seu canto.
Num estremecimento apetece-te clamar
que a injustiça é injusta
a escuridão um breu aterrorizador
a insidiosa hipocrisia criminalizada seria.
Mas para além da deriva niilista
algo, poderoso, cativa sentidos.
Misteriosa dimensão
como se fé obscura fosse,
inconfessável, impenetrável
varre negras nuvens de um horizonte que queres
amanhecido em todo o tempo.
Então dás conta da contradição:
prisioneiro do agnosticismo
a esperança que fervilhas sufoca
na mão pesada da razão que se abate.
Achado a meio de uma encruzilhada,
sem saber por onde ir,
vacilas:
ora acertar o caminho por onde as ondas da razão apontam,
ora cegar a ditatorial racionalidade
e partir,
partir rumo ao nada que te espicaça.
És déspota da tua certeza
nos muros pedregosos e escorregadios
que não podes escalar.
8.11.05
Roda dentada
acordaste
da desaparecida penumbra.
Lá fora
o barulho industrial da grande cidade
deixou de martelar a dor de cabeça matinal.
Revivias os lanços dos tempos idos,
revisitação dolente
a que o marasmo te enredava.
Libertação do torpor maquinal
sorvendo um refrescante sumo de toranjas
enquanto fitas o horizonte perdido.
Remexes numa gaveta
sem saber o que buscas;
os dedos tacteiam objectos inanimados.
Da gaveta tiras uma fotografia gasta;
incensas memórias
por ousadia do porvir.
Tempo de mergulhar
pelos nódulos que te atam
à parasitária forma de viver em ti mesmo.
E de procurar a porta da saída,
uma apertada clarabóia que seja
um novo fôlego.
Um novo fôlego
ou a árvore eloquente
que te dá a vereda necessária.
Sabes, com a certeza das coisas férreas,
que espalhas as sementes
do reencontro ao mais alto de ti.
Da harmonia que buscas, sedento,
um esteio de tranquilidade
destino cumprido, enfim.
12.10.05
As asas e o vento
desassombradas miragens
viagem em contratempo.
Sangram, as asas
de tanto vento que as traga.
Persistem,
remam na impertinência
da natureza contrariada.
Nem se perturbam
com os pingos de sangue
esvaídos do esforço irrelevante.
O vento nas asas
fosse a favor
e nada seria uma pletora
de contrariedades.
As asas pelo vento
esquadrias de espíritos retorcidos
flúem com a intensidade do vento.
Que se sente, não se vê:
paisagem insolente
tertúlia da homérica tarefa
de encontrar o rumo almejado.
Asas e vento
diálogo de surdos.
Asas que teimam na rota
não pressagiada pelo vento furibundo.
Nem asas, só vento.
O rescaldo de um desigual jogo
braço de ferro que nunca o foi.
Asas,
condenadas à nascença
dobradas nas forças exangues
extintas no vento obstinado.
Resta
o vento;
as asas, pousadas
na recriação das forças
consumidas na batalha feérica
– e inútil? –
contra o vento.
29.9.05
Projectos desencontrados
nas trevas
o odor macilento
das coisas escondidas.
Tecendo o emaranhado
de uma teia sedosa
descobres quem és
e mais ainda
– um canto invulgar
remoído na parte esquecida
da existência.
Olhas em redor:
nem o vento que sopra
e te leva o cabelo em desordem;
ou a palidez da luz lunar
tragada por uma tímida
unha de lua que escapa ao negrume;
ou essas nuvens
que viajam,
apressadas,
rumo ao nada;
nem a alvorada que se acerca;
nada
traz o bonançoso ritmo
dos antípodas
de hábitos enraizados.
Querer,
sem poder,
diferir.
Na indiferença da rotina
por entre os caminhos
– tresmalhados –
de uma odisseia ímpar.
Sussurra-te uma voz
de insatisfação.
Varrida da memória que dominas,
ata as mãos ao futuro.
O futuro,
errante roteiro que te hesita,
certeza de um passado
que ousarias renegar
– coragem houvesse
para limpar a cómoda,
instalada,
maneira de viver.
21.9.05
Queria
um punhal cravado
tragando o fel que se contorce nas veias;
um doce lábio
pousando na face,
aspergindo a magia de uma ternura incandescente;
uma mão sedosa
navegando nos poros da minha pele
na ciente, poderosa aura de um momento mágico;
um sopro exalando todo o teu eu,
transe interminável,
beco de onde temos saída
– de mão dada.
Queria:
perpetuar o que tem fim;
caminhar por onde andas
na leveza da tua alma;
tecer as teias de uma fantasia sem fim,
leito de uma desgovernada, descompassada
– e, porém, docemente louca –
lava onde cavalga a palavra que nos guia;
e queria,
sempre acesa a centelha
que derrete o gelo teimoso
que vem com a traição do frio
que se apodera.
Sabes?
queria,
muito,
estender a mão do outro lado do mundo
e ter-te ali, mesmo à mão,
como se o mundo fosse um pequeno quarto
onde só nós dois habitamos.
Queria:
desentediar-me das vulgares almas que passam,
olhar-te bem fundo,
demoradamente,
e balbuciar palavras sem sentido,
apenas palavras instantâneas,
frutos de uma torrente imparável.
E não interessa dizer
“não quero que tenha fim”:
pensar num fim com data incerta
tolda o todo belo dos momentos
que deixamos fugir entre os dedos.
Sim, queria
saber que somos imortais almas gémeas
tecendo-se nos seus caminhos pares.
Das profundezas do nada,
para nós exultam os pequenos demónios
de que nos rimos.
Para que no final da estrada sinuosa,
só haja mel,
nozes,
framboesas,
o que quisermos para
cultivar a nossa uníssona sementeira.
E queria,
ainda,
abraçar-te
quando os ossos do corpo
sentem a estranheza da largura
de quem não é abraçado
há tanto tempo.
Abraço extasiado,
prolongado,
feitor da cumplicidade
que soube trazer de volta
o outrora desencontrado ânimo.
Queria:
deixar que o tempo que foge
se emoldurasse no frémito de um instante.
Ou de uma sucessão infindável
de pequenos instantes,
feitos imortalidade,
na voracidade de um sentimento que repousa
sem espumar as cinzas da intranquilidade.
Queria:
um mundo nosso
altivo,
fervente,
uma planura com montanhas ao longe,
para visitar;
nuvens acasteladas, sopradas por um vento
ora frio, ora quente;
árvores de fruto por descerrar,
o mistério das flores a desabotoar
o odor colorido dos frutos nascentes;
e um rio
onde vogam as águas do invernal degelo
aí, onde nos haveríamos de banhar nus.
Queria:
que a teimosia da razão
se intimidasse,
refugiada num canto esconso de mim.
Para poder soletrar a palavra ausente,
soltar as amarras que agrilhoam o calor
que me transcende
ao ver-te.
20.9.05
Dúvida metódica
bem no alto das dúvidas;
no encanto
de as haver.
Em bolandas
de negação em negação
na certeza de que as dúvidas
apimentam a vida.
Tergiversar,
na doce lógica
que empanturra o espírito
dos desafios que se empenham.
Cansar-se-á
da mortificação existencial?
Saberá espaventar fantasmas
que ensombram certezas?
Diluído o suor da exegese
a cicuta é expelida;
revigora-se a sempre jovem cabeça
- a que entroniza juízos espinhosos.
Pudesse esmurrar a teimosia
de duvidar em compasso
com os ponteiros do relógio;
e perderia o encantador fusco que norteia.
Bússola, encandeias caminhos,
quando afinal é deles que foge.
Sempre, sempre
evitar as certezas – o nutriente maior.
Que interessa explicar,
se compensadoras são as interrogações?
Bater as asas para bem longe
da perene, asfixiante convicção.
Labirinto mental
que se tece por entre as esquinas
da vida.
Da complexa desrazão imperadora.
22.8.05
Pós-industrial
revolve-se no indiscreto olhar
do nada.
As convulsões interiores passeiam
a angústia repousante.
Nem a estranheza do silêncio sepulcral;
ou as asas do pássaro ocasional;
chegam para tingir o espasmo
que extenua
paralisa de medo.
Nas cavernas profundas,
longe de tudo resguardados do nada,
trânsfugas do medo contorcem-se
no seu ilusório contentamento.
Simulam-se
novas vidas disfarçadas.
Fogem da poeira mortífera.
Adiam o seu,
inevitável,
sofrido,
ocaso.
23.7.05
Um fado errante
Não sofre:
a dor sobrepõe-se, altiva,
na maneira de ser estóica.
Reclama de si a bravura
que vem servida numa fantasiosa inocência.
A ingénua covardia de se entregar
às dores de parto do mundo
- uma leitura oblíqua das coisas e dos seres,
como se houvesse nascido para as chagas
de todos os males que nele repousam.
Teimoso
punha-se a jeito para as obscuras, lautas
conspirações dos espíritos malignos.
Condoía-se de si
no desejo de outros penarem por ele,
alma perdida
errante
desamparada
nas desventuras dos males maiores.
Desconhecia
que renegava os outros,
eles,
cansados da dor de si mesmo.
Mas insistia,
uma e mais vezes,
na aclamação da dor que o fustigava.
Vivia
dependente da comiseração alheia.
Tortuosas as veredas calcorreadas,
ignorância de vivências diferentes
- a alegria de celebrar a vida,
roteiro para renegar a taciturna forma
de ver as coisas e os seres.
Aos caídos,
entregue nas mãos de um destino infortunado,
ou palmilhando os pequenos passos
de um fundo abismo
- um abismo cravejado de facas afiadas
que o esventram, já ferido de morte.
Cada alvorada
um sacrifício indolor.
Não:
nem a luz alaranjada no horizonte,
ou o azul celeste que vem pintar o céu,
nem as pessoas que trajam um sorriso esperançoso,
ou a simples brisa que refresca a manhã
- nada, nada retempera a doentia forma de ser.
Entregue nos calabouços da aridez,
por ele mesmo edificados,
um circulo vicioso que embala uma vida
cinzenta
triste
enfadonha
carente.
O oxigénio das causas,
só uma ilusão.
Anestesiante fictício
que o acorrenta à acrimónia de outrora.
Prossegue
inane nas motivações do descaminho.
Entristecido e desconfiado do mundo:
Porque o mundo
(que ele edificou)
nunca
o recompensou com a sorte que
nunca
quis encontrar.
13.7.05
Maré baixa
despojos da água recolhida
na timidez da maré baixa.
Os seixos espalham-se, inertes.
Esperam nova viagem
na cólera das vagas alteradas
aprazadas para a praia mar.
Aqui e ali
restos do oceano vazadouro
de coisas muitas:
um pedaço de pau
uma garrafa desbotada
um brinquedo amputado
milhentas conchas minúsculas
outrora refúgios de crustáceos vivos.
No templo da maré baixa
a calmaria emproa-se.
Não há vento
nem ondas
apenas uma suave maresia
que entra na respiração
e limpa as angústias povoadas.
Na maré baixa
o sinédrio do espírito reanimado
que embolsa a quietude.
3.7.05
Frenéticas andorinhas
voos que espalmam a vertigem
do espaço que consomem.
Cruzam-se no pontilhado
de voos desordenados.
Numa coreografia caótica,
regressam ao ninho
quando o cansaço beija a noite.
Nidificam no sossego da luz escura
que se apoderou.
Lá fora
os foliões da noite
entretêm-se entre lufadas de álcool
que anestesiam o espírito.
Não perturbam o sossego das andorinhas,
que se preparam para outro dia
de voos que são correrias desalmadas.
Quando a alvorada toma conta do horizonte
despertam para o dia renascido.
Como renascido está o piar
que se solta com o fulgor do dia.
É a vingança sobre os noctívagos
que salgam os vapores do álcool
no sono para a próxima noite destemperada.
Cá fora
as andorinhas fazem-se à vida:
incompreensível, frenética,
com o doce e rápido bater de asas,
um mergulho no abismo
que, de repente,
renova a harmonia do voo rasante.
18.6.05
As mãos
o cordão umbilical da decência de ser.
Nas mãos
vultos que se eternizam,
sal que perfuma os gestos que somos.
As mãos
não deixam mentir:
pelas mãos
os gestos desnudam a alma.
E as mãos,
nós que apertam outras mãos,
acalorada sapiência da enrugada pele
envelhecida com o uso dos dias.
Sem as mãos,
decepadas criaturas
na diluição das marcas que identificam.
São as mãos
olhos de quem somos;
o mapa engelhado que descobre
as linhas que se tecem, por magia,
numa cartografia irrepetível.
As mãos,
oráculos.
2.6.05
Lusco-fusco
No ar o odor dos frutos
esvoaça em compita com pássaros
endiabrados.
Hora do espírito beber as águas
da tranquilidade.
Aquela hora, do torpor à preguiça,
tonifica.
Vai a luz escasseando.
O sol mirra detrás da copa das árvores.
Cresce a empatia com a noite
desconhecida.
Bucólica paisagem
que se eterniza no o tempo.
Na bondade das luzes que tingem o céu,
avermelhadas.
Solta-se um suspiro profundo.
Traga os cheiros e as cores
que saltam na surda gritaria
aleatória.
O caos ordenado
sentir o indizível
como dizer o insensível:
tresmalham-se os minutos
numa viagem ímpar ao mais recôndito
da alma.
1.6.05
Na sombra do eu desconhecido
Na aventura do que pensamos ser já conhecido
a surpresa
- do outro lado do espelho
uma imagem distorcida do que sempre acreditámos
ser o nosso eu.
Quase nunca admitimos
o que retrata o espelho.
A culpa sempre do espelho
invariável teimosia
de manter o que nos habituámos a ser.
Decerto o espelho terá anomalia;
embaciado, esconde a verdadeira imagem
do que julgamos ser.
E lá volta, a teimosia,
a toldar a vista numa esparsa miopia.
Os vapores diante da vista emudecem os sentidos,
esquadrinham as teias mentais que desfocam
a essência do outro que nos habita.
É como se andássemos todo o tempo enganados
no equívoco que semeamos sem dar conta
- ou possuídos por uma força indomável,
das entranhas,
comandada pelo espírito apoderado
que se recusa a deixar-nos ser algo diferente
na sua espontaneidade.
Enganados,
vista turvada pelo espartilho
do atilado ser que se entranha no seu conformismo.
É como se existissem vidas paralelas
que se separam pelo fio espesso
que impede de assumir o eu reprimido.
De tanto tempo amarrados ao estigma
nem damos conta que um caminho paralelo
anda ao nosso lado.
A vista,
ocupada em mirar a linha do horizonte
que se esboça.
A vista
ignora uma vida subterrânea que se cultiva,
sabe-se lá,
diferente, genuína, intensa, preenchida.
A fuligem acumulada reprime
a vontade de descobrir o desconhecido que somos.
Mas quando a perseverança vinga,
e saboreamos as pisadas do caminho paralelo,
preparados para a revelação do outro eu
que habita dentro de nós?
Habilitados a conviver com a alteridade?
Não será o temor do abismo
a mola para a dúvida na cristalina imagem do espelho,
encanando de defeitos o espelho maldito
que povoa tantas dúvidas?
Irrompe uma angústia assustadora:
sabemos que podemos ser algo de diferente
e o medo do precipício
trava o desejo de provar a pessoa diferente que podemos ser.
Aquietam-se os espíritos:
convencidos que devem preservar
a mediocridade que os invade,
melhor do que descobrir uma diabólica personagem
aprisionada no gume de um engenho manietado.