7.5.18

#568

Não é menor vaidade
exibir abundante modéstia,
em arrependimento pretensioso.

Casa da chegada

A casa 
sem fronteiras
sem telhados vãos
sem veios apodrecidos
a casa acesa
alpendre em espera
a casa do verbo falado:
da infinita alvenaria
o ósculo viveiro
conferindo a cal sobre as paredes
no astuto olhar desembaraçado.

A casa
nascente do amor
e seu estuário, também:
fluxo circular
vitral marmoreado
centelha que se empresta aos corpos
com o jardim por perto
as flores silvestres selando a paisagem
a casa 
onde se entrelaça a alquimia com o nosso suor.

Da casa em congeminação
à casa sonhada
à casa havida
à casa 
com os corrimões
compostos pelo ouro das nossas mãos.

A casa 
pátria dos deslimites
terraço de identidades desenhadas
os fragmentos colhidos do chão
os murmúrios reservados pelas paredes
santuário dos dedos que afagam os lábios
na boca sedenta
no segredo da janela sobranceira ao mar. 

A casa
património do mundo
e o mundo
em sua devolução
resumido à casa fortaleza
onde se ciciam os verbos fecundos
e as palavras sabem a framboesa.

#567

O fugitivo
preso a uma miragem
no sonho incontestável de uma muralha.

6.5.18

#566

A grande fábrica do sal
onde, depostas, 
as lágrimas não têm carestia.

Paisagem acesa

Confiro a metáfora
na paisagem de mel
encanto cerzido na urze ao acaso
e não concedo no dilatório impropério
em que enquistam
os pesares arqueados sobre o dia volúvel. 
Uma desfeita 
sobre as arcadas perfunctórias:
as abóbadas estilhaçadas regressam ao lugar,
depois de o olhar ter errado
depois de ter perdido o compasso
depois de terçada a angústia infecunda. 
Não interrogo nada
nem procuro as respostas impossíveis. 
Antes a metáfora
uma metáfora gutural
os pontos cozidos na pele
na prometida cicatriz que dispensa tatuagens. 
Às voltas com a moldura, 
onde minha aura tem cabimento
sentado em meu lisérgico lugar,
trago da madrugada a boca sedenta
o corpo sem freio;
a insubmissão não é torpe fingimento:
a falésia testemunha o fundo da jura
o encontro das abcissas
e da escotilha vejo
o luar a caucionar o dia
enquanto a algazarra pura das crianças
póvoa estrofes em folhas soltas.
Não quero penumbras desautorizadas
como penhor da vontade. 
Só quero o deleite empossado
o verbo contundente
a maresia imperturbável
e os olhos desembaciados, incontingentes
para leves verem o quadro 
onde se senta
a paisagem acesa.

5.5.18

Turismo

Seria uma bala perdida
o furacão intumescido
a glosa sem vento
uma mão erguida em protesto
o miado do gato presidente
o mar calmante entre paredes 
uma história sem enredo
o mendigo absorto no cais enferrujado
a menina apressada
uma gota de suor misturada com chuva
os livros deitados fora
um russo em pose aristocrata
um assobio (não piropo)
a seriedade do edil
a contrassenha do segurança
a sobriedade da velha atriz
o freio do cavalo atrelado
a sétima vida do rapaz do circo
um adeus que se remete ao silêncio.
Hipótese por amadurecer
o fogo alto em pira amontoada
a voz rude no parapeito da melancolia.

#565

Fiz deste embaraço
alquimia
e deitei-me no regaço da noite.

4.5.18

#564

Aqui: o meu corpo desminado
mártire de prazer
a água toda por beber.

O grande gesto oblíquo

Sussurrei versos ímpares
e os ouvidos inquietaram-se
no desábito da imparidade.
Se ao menos fossem verticais
e não intuíssem
os trovões que assaltam a janela
neles se podia aninhar 
a refrigeração das almas.

Não era o caso:
os versos
rudes
violentos
um ensaio de sarcasmo
eram prova viva da marginalidade
do isolamento metódico
de uma certa desidentidade
que não se esfrangalha no sopé das bandeiras;
maus os modos
de quem desalinha criteriosamente
num fogacho de mau feitio perseverante
na irrisória ilha de que é esteio
nos preparos da loucura insignificante 
– da loucura todavia benigna.

Justapõem-se
razões cimentadas em desrazão
no pueril encaixe da insubmissão,
talvez.
Talvez:
se visto de fora
lente que não é viável juízo
por exterior incapacidade
de saber do sangue fluente 
que toma conta das veias.

Continuo a sussurrar versos avulsos.
Versos-protesto.
Versos-infâmia.
Versos-inocência.
Versos desunidos.
Versos em coreografia contra a contrafação.
Versos carentes de uma nova gramática.
Sussurro-os.
Às vezes, 
em paradoxal gritaria interior
tão estridente
que só as veias combustíveis os ouvem.

O murmúrio
enche-se das cores vivas
na centelha soalheira que reaviva a primavera.
E eu sei alguma coisa
contra o rio imóvel 
que espera pelo tempo impassível.

#563

Da valsa vagarosa
sob os lustres decadentes,
os profetas.

3.5.18

Quartel general

Sob o disfarce da lua
as facas desistidas
sangram suas lágrimas.

boxeur perdeu.
O sentinela perdeu.
O apoderado dos touros perdeu.
Ganhou a viagem sem rumo
e o pudor perdeu-se no escuro do cais
à espera da partida do comboio.

Sob o disfarce da lua
somam-se cardinais mentidos
equações rítmicas no arsenal das ideias.

Ganhou o letrado.
Ganhou a criança.
Ganhou o furor da salvação dos animais.
Perdeu-se a bússola
e a errância ganhou lugar intempestivo
à espera da madrugada tardia.

Sob o disfarce da lua
modas contrafeitas numa passerelle sem chão
atiram as unhas baças contra o parapeito.

Ninguém sabe quem ganhou.
Ninguém sabe quem perdeu.
Nem se intui que seja empate o lábio dominante.
Ganhou a ilógica
na perda do tempero da alma
à espera da continência dos generais.

#562

E os ismos,
todos proscritos
no halo da redenção.

2.5.18

#561

Um perito em história do futuro
é um oráculo do avesso.

Maio com meio século de atraso

Destrato a púrpura chama
na incomum xávega que tomo,
minha proteção contra golpes invisíveis.
Obtenho o distrate
a compensação de um aforro demorado
na subtileza do tempo arrastado. 
Olho para o banco gasto do jardim
e noto na metáfora
de toda uma ideia de banca decadente.
O marégrafo que tenho entre mãos
acinzenta as ondas ainda timoratas;
que ninguém ajuramente
que o estado das coisas tende a melhorar:
à superfície 
uma espuma amarelecida
supõe o contrário. 
Os magnatas já não têm vergonha
ou o maio de sessenta e oito chegou
e silenciosamente
com meio século de atraso
a conspiração dos despojados 
encontrou militância nos jornais. 
No perjúrio da insubordinação,
com patrocínio de outros 
que o poder querem conservar,
um simulacro de equidade
como se pelas janelas 
cruzassem ares respiráveis. 
Desconfio
que na hora dos inventários
as cores continuam 
com os mesmos pergaminhos. 
E o destrate 
não embainhará 
nenhum distrate.

#560

Concentrado de alma:
as almas grandes
são as que medem 
até um metro e sessenta. 

1.5.18

Algodão doce

Imagino 
os corredores brancos
de um labirinto escasso
como escondem dos rostos os garfos gastos
como são hinos madrigais
ejetando balões coloridos para o céu
em contrafeitos esgares matinais.

Imagino
as doces palavras rimadas
os lábios ávidos de as dizer
as espadas despojadas
os moldes da perfeição impossível
os arbustos imersos na neve fresca
os intermináveis beijos quentes
a cama à espera dos corpos
e um compêndio de desejo
subjugado ao vulcão torrencial sob a pele.

Imagino
como são dóceis as crianças
os seus jogos não florais
a querença sibilina
o perjúrio dos chacais
e a habilitação dos tutores das almas
contra a desfeita dos deuses.

Imagino
como não haveria viver
sem o entardecer sobreposto ao mar
e um lugar ao lado meu
que é o lugar teu,
num uníssono apalavrar.

30.4.18

Clareira

Vejo ao fundo a clareira.
Esbracejo um lenço de neblina
até à medula das rochas
até ao musgo inacessível.
As mãos 
que servem para o adeus
colhem os frutos da ternura
na ossatura funda
onde se embainham os sentidos.
As mãos 
seguram esteios
são os próprios esteios 
de árvores fundidas no ocaso
bebendo a água fria
vertida desde a alta montanha.
Ao longe
cavalos nómadas espreitam o entardecer
e a neblina retoma seu lugar
no lenço de veludo 
de novo aninhado em seu bolso.
Da clareira ampla
uma reentrância escondida
cetro basilar dos segredos por contar.
Na clareira
onde se preciso temos o húmus 
vamos 
a despeito do tempo 
contra o imperfeito desenho das palavras
contra a síntese dos ardis disfarçados.

#559

Se ao menos
as espingardas bolçassem flores
e os figurões falassem em poesia.

29.4.18

Relojoeiro

O relógio treslido
o relógio parado:
a reinvenção do tempo
o magma irrompendo da pele
o invulgar atapetar das palavras
o amanhã desagrilhoado. 

O relógio bastardo
o relógio perdido:
a tenaz justaposta à cortina
o improvável desaviso da maré
um navio com as medidas por tirar
o retrovisor estilhaçado pelo herói sem vão. 

O relógio da igreja
o relógio pregado:
a pele rasa no murmúrio de um ribeiro
o cobre gasto no alpendre
o entardecer envelhecido
o deslumbrante desemparedar do luar.

#558

Aqui começa o mar
este lisérgico império
a meus pés.

28.4.18

Coreografia

Vinham as primeiras flores
as velas acesas,
feitas archotes
e eu dizia quantas sílabas tem um sonho
nos corpos contorcidos
tremendo como se fossem terramotos
e no rosto suave das crianças
o prólogo do fim das noites sem pesadelos
a alquimia dos tomadores de almas
sem o medo por perto
apenas o desejo rimando com as mãos
e o adocicado suor 
servido nos poros ávidos.
Já no fim
os destroços das flores tardias
transfiguradas em matéria desidratada
repousando nela 
a sementeira das veias fundamentadas,
orgânicas.

#557

Batemos à porta da madrugada
e sabemos ser miragem
a falésia emudecida.

27.4.18

Às cores devolvidas

Desmaiam as cores
no cruzeiro em destroços
diante do mar.
Se não fosse a urze
se não fossem as pedras fundidas
tornava-me alpinista
e subia aos triunviratos encimados
até me considerar suserano das paisagens.
Se não fosse a cal da noite
se não fossem as ladainhas corrosivas
tornava-me casulo na hibernação noturna.
Mas à janela
cicia um gato faminto;
há, na janela, 
o levantamento sem aviso
a insubordinação das palavras
o peito ardente que se atira à coragem
um fermento à espera de vez.
As cores 
já não estão desmaiadas
e tenho na mão
fechado sobre ela em forma de segredo
o imperturbável rosto da memória
a ousada perna que traga continentes
a boca, 
esteio da madrugada.
Sei agora:
o amplexo de corpos em meus braços
é a lágrima seca de teus olhos
e sei que sou humilde servidor
em sabendo do enxugamento de tuas lágrimas.
Confirma-se:
as cores 
já não estão desmaiadas
elas, uma tela fúlgida
e o vento travado por meus dedos
e o mar
em marés sucessivas
atolado no meu corpo,
eu:
suserano dos mares
sem ser imperador de nada
vassalo do teu recinto enxuto de lágrimas.

#556

Deus
ou é astronauta
ou iletrado.

#555

A mesma náusea
com a mulher do povo que come de boca aberta
e com o arrivista pedante que passeia a usura.

26.4.18

Tive uma ideia

Tive uma ideia.
os tentáculos esgrimindo tinta
sobre páginas imersas no fundo do lago
e as palavras quase todas logogríficas
uma portentosa ideia com sede de aplauso.

Tive uma ideia.
Uma ideia sem costuras
o rodo gasto na usura dos revólveres gastos
um mar sem ondas, domesticado
uma ideia ainda à procura de alinhavos.

Tive uma ideia.
Escondia-a:
evitava o seu sufrágio
contra as decadentes formas de linguagem
os oráculos amadores
os desapoderados de ideias
que vituperam as ideias outras.

Tive uma ideia.
Um natal sem cabaz
um cavalo apascentado no deserto
uma acácia ressequida
o sol que se não deitava
e o horizonte perenemente desmaiado
uma tesoura baça, imprestável
e resmas de páginas ainda em branco
suplicando por um aluvião de ideias.

Tive uma ideia.
Uma só.
A máscula divindade da fecundidade
o acerto de contas com o desmedo
um pêndulo aritmeticamente estimado
o nevoeiro cirúrgico sobre a enseada
os olhos não hesitantes.

Tive uma ideia.
Arrastei o arado entre os sedimentos leitosos
e senti a espuma levitar
entre os nódulos dos dedos
desembaraçando os nós cingidos ao olhar.

Tenho uma ideia.
Mas já me esqueci dela.

#554

Arrumo os estilhaços
e atiro-os do miradouro
regateando seus imprestáveis serviços.

#553

O biombo
clandestino murmúrio
uma venda sobre o olhar intruso.

25.4.18

#552

A descoleção de memórias
no jardim de pedra:
janela aberta ao mar devir.

24.4.18

Boomerang

Jogam-se as personagens
num tabuleiro em forma de palco
jogam dados 
na muralha das probabilidades
no encanto simulado dos fingimentos. 

Um sacerdote dos costumes
denuncia a encenação.

Em palavrosa retórica
esgrime a boca rota dos ardis
a dança de fingimentos
os castelos decadentes 
onde transigem os bacantes
os embaraços que aproveitam aos prazeres
como se distorce a luz à medida dos pretextos
o fértil apascentar de frívola matéria
a língua que desaprendeu o idioma
(e o idioma que deixou de ser língua)
a desindústria de tudo,
os destroços dos tempos
em sua arcada derradeira
as trevas disfarçadas de centelha
e
(que impropério da retidão!)
a lascívia dos corpos 
fundidos no arpão do desejo.

Veio mais tarde ao conhecimento:
o sacerdote dos costumes
participava na encenação.