17.10.19

Deserção

Deserto
da matilha sem açaime
os musculados mastins do verbo fatal
apequenados no terreiro que os confina.

O deserto:
lugar achado
para sua pequenez imóvel,
os mastins infrequentáveis
capitulam na alquimia do verbo cabal
deixando para memória futura
uma memória sem memória.

Deserto desse deserto
enquanto há tempo
e a virologia não se enamora
de meus poros que se não fecham
ao saber de outros saberes.

É nesse deserto
que afivelo a deserção não tardia
antes que seja tempo
de um penhor implacável
me tomar pela sua vontade
e eu à matilha ser condenado a regressar.

O deserto de onde desertava
era pesadelo com cenário a preceito
consanguíneo ao real.

Livre do pesadelo
tive alta da consumição
e não seria deserção daquele deserto
nem da matilha dos mastins esfaimados
que se banqueteavam no sangue pútrido,
seu e alheio,
que precisava como redenção.

Hoje pergunto:
de onde preciso desertar 
para marcar encontro com a redenção?

(Ou podia perguntar,
em súplica arrevesada 
no tear de um labirinto sem mapa:
preciso de redenção?)

#1228

Ninguém tem outra vida
a não ser aquela 
a que nem consegue dar vazão.

16.10.19

Barómetro

As décadas acabam no fim
e podemos não esperar
pelos planos retrospetivos
se deles formos reféns
e nossa sanidade
também.

Capturem-se
os fragmentos dispersos
a matéria-prima da lembrança
os leitos secos 
que se desabituaram das lágrimas
as molduras cintadas às silhuetas
os muros caiados com tinta invisível
as coreografias dos mudos.

Disponha-se
a matéria coligida
na aritmética do papel
e do exercício lúdico
extraiam-se as baias do orçamento
a frontaria ufana diante dos miseráveis.

Das olheiras sublinhadas pela insónia
a fertilidade das palavras
os comboios atempados
que troteiam carris impecáveis
as estrofes desacertadas do cânone
a liberdade-esteio
no meio da planície sem gente
os gatos que caminham sobre o rosto do cio
e a chuva que recolhe as lágrimas inúteis.

As décadas não podem esperar 
e podemos acabar no fim
deitando-nos à fecundidade do tempo em espera
sem dele sermos réus
em abono da nossa sanidade,
ainda.

#1227

Subo ao dorso
de uma frase solta
e transfiguro-me
em frase à solta.

15.10.19

O corpo aos hedonismos

Participo da marcha sem vesúvios
no quintal aformoseado
onde se detêm os previsíveis mastins,
mortos de sede.
Recuso o pleito:
não tomo partido
e mesmo que tomasse

tenho o corpo como serventia
de outros hedonismos.

Os mastins ficam sozinhos,
em conferência
a espuma infecunda da ira 
esterilizando o chão
povoado de daninhas ervas.
Nem as daninhas escapam
ao iracundo salivar dos mastins.
Aos mastins,
falta-lhes oponente.
Hão de arrastar-se como meras percentagens
ínfimas parcelas que não se prestam às contas
desapoderados
consumidos pelo emudecimento das atrocidades
larvares em sua própria vanidade.

O corpo,
repito,
reservo-a a outros hedonismos.

E contemplo as virtudes gastas
em desfile nas arcadas do tempo
sob um ecrã a preto e branco
impressionantemente puro.
Se preciso for
atiro para lá o corpo
para o resgatar das marés lodosas
e devolver ao campo fértil
dos hedonismos.

#1226

Matinal.
Um esboço.
Diamante não bruto.

#1225

Esvazio o mar
só de nele deitar
o meu olhar repleto.

14.10.19

#1224

Que é do vinho generoso?
É um filantropo,
incorrigível.

Eventos

Um pó de arroz
servido em chávena de chá.

Um legionário
sem comendas,
órfão.

O vento sem parapeito
no sepulcro dos vencíveis.

A viúva sorumbática
visita frequente do teatro
sem prantos.

O amolgado orgulho
do projeto de Adónis.

As costuras lassas
do navio gasto
pelos mares inteiros.

A metralhadora entupida
um hino que devia ser mundial.

A atónito cão
com imprevisto repasto à frente
sem fome.

A bandeira sem cores
a geografia extirpada aos limites.

Um baralho de cartas
a sordidez da solidão
e o estuário em forma de cicatriz.

#1223

Tinha da janela
uma memória sem rosto. 
Tirava à janela
o lugar sem mosto.

13.10.19

#1222

Minerada a alocução
ficou à espera
de rima em genuflexão.

12.10.19

Uma questão de alcova (censurada)

“É a puta da vida. Até quando deus quiser. Até quando deus quiser.”
(Um velho resignado, no café, na mesa ao lado)

Como se define a vontade?
Onde se encontram as costuras
que alinhavam as vidas?

Onde mora deus?
E deus,
tem o seu próprio deus
a quem presta contas?
E o deus de deus,
responde perante uma divindade
ainda superior?
Por que mecanismo físico se explica
a ubiquidade dos deuses?
E se deus tem o seu deus,
que por sua vez um deus tem,
não acabarão os deuses todos 
por se reduzir à inexistência, 
ou pelo menos à pouquidade?

(Termos
em que não andamos longe
de sermos deuses,
se provada for a sua existência 
– se é que uma e a outra 
são matérias que reúnem interesse.)

A vida pode ser uma puta,
às vezes 
ou quase sempre.
Se a vida é uma meretriz
deduz-se que deus 
(ou o sindicato das divindades)
gosta de prostíbulos?

11.10.19

Desconstrução

De estar em estâncias recolhidas
diz-se
que não lavrei conhecimento
das variadas facetas do mundo
e não soube dele recolher
os subsídios incomensuráveis 
para a madurez. 

Não tenho disso 
juízo formado
nem julgo que deva ter. 

Às costas 
peso a gravidade dos dias inteiros
porque 
(isso posso afiançar)
sempre quis 
dos múltiplos ângulos do mundo
ter uma noção. 

Só fechei um par de janelas
mas a quem é dado garantir
não ser de seus preconceitos prisioneiro?

Desde as alcáçovas emparedadas
lancei o periscópio sobre um olhar diferente
e se polémicas houve
que me agarraram pelo pescoço
foi pela denegação de transitar pelo admitido:
preferia saber 
do que sabia ser meu antónimo
como matéria de aprendizagem,
como caução de uma certa
desidentidade. 

E se insistem 
que fui juiz em causa própria
que me alimentei dos poros que conhecia
que não atendi 
as instâncias onde se jogavam os contraditórios
não tenho resposta
se não 
a de remeter o juízo a quem de direito
aos que da minha vida terão
possivelmente
vivido mais tempo do que a vida teve.

#1221

Junto o esbracejar do mar
junto ao rosto extasiado
e sonho com sonhos desassisados.

10.10.19

Fingimento

Auditadas as parecenças
depois de desalgemados os retratos
sobejavam as miméticas rugas
um gémeo estalão 
que não abrigava teoria. 
Seria um jogo de espelhos
ou o contrabando de uma cópia,
farsante,
contra os rigores do original. 
E, mesmo assim,
era a imagem refratada
considerada o aríete. 
Tomou por conclusão
que somos vítimas voluntárias
dos refratários,
dos que se oferecem a pedestais
sem terem 
se não 
a ousadia como passaporte. 

#1220

Se não fosse o arnês
o que seria das nossas vidas?

9.10.19

Caderno diário

É no caderno diário
vertido em verbos válidos
que deixo o aroma do dia.
A combustão dissolvida
nas lágrimas que ficaram por verter
e um corpo cheio de água
transbordando.

É no caderno diário
em verbetes desalinhados
que costuro a usura com os dentes
e às juras deixo uma estrofe só
no parapeito da decadência.
No leito da ternura
enquanto se afagam os corpos
conto as estrelas que se deitam no teto
o mote exemplar da entrega desobediente.

E anoto
no caderno diário
o pulsar incandescente
as veias combustíveis
o sangue vulcânico
enquanto ponho em espera
as imagens transversais da memória.

#1219

Sonho
sobre os ossos sentados
como se fosse a árvore centrípeta.

8.10.19

Almas siamesas

“I’m by your side
I’m holding your hand.”

São as almas siamesas
os que fabricam uma exigência
nos olhos desempoeirados que se atiram
às funduras da lava entranhada.
Sem medo dos unicórnios
dos sonhos malsãos
do ar contrafeito que se insinua nos poros
das naus 
que se despedaçam contra mares tempestuosos
da constelação de palavras que sangram
e cortam fundo 
a carne exposta.

São as almas siamesas
um rumor inadiável
os comboios que não perdemos
as praias que recolhem o suor transido
penhores onde deixamos palavras exangues
as almas siamesas
cavalos sem freio no dorso das paisagens
métricas sem regras a favor dos dias férteis
cabelos que se entrançam 
no sortilégio do vento destemperado.

As almas siamesas:
básculas do impossível
fortuna sem cálculo possível
gestos sem cura 
por não haver dor sentida
um teatro com lotação esgotada
no pulsar das mãos nossas que prosseguem
siamesas.

Podem vir
estradas imponderáveis
sobressaltos sem pré-aviso
fantasmas loquazes
luzes que tremeluzem, 
frágeis
archotes sem casas
uma miríade de pesares sem rosto
ou com conhecido rosto
o servil deitar na preguiça do tempo
a capitulação que parece irrecusável:
podem vir
umas ou outras
ou todas em conjunto
que não se desmaia o sangue combustível
inaugurado,
todos os dias,
nas almas siamesas.

#1218

O céu 
emaciado em seu letargo
adia-se no ventre da véspera.

7.10.19

Lisérgico

Arrumada a chave
o fio condutor fundiu-se no amanhã 
esperado. 
Tiro a viseira à própria luz
e os mais baços dos pesares
amontoam-se na grua enferrujada,
a frágil condição dos decadentes. 
A cada volta dos marinheiros
nota-se um lenço apessoado
contra as palavras que se gastam
ao descer do cais. 
Sentem-se libertos,
os marinheiros desembarcados. 
Deixaram as chaves
ao cuidado do convés sem estorvos. 

#1217

O sangue frio
derramado
mentindo aos rostos seráficos.

6.10.19

#1216

[Nick Cave & the Bad Seeds, “Ghosteen”]

We all get to the
chequered flag.
At some point.

5.10.19

#1215

O espólio
em emulsão
amontoado de dispersos.

4.10.19

Onde a batalha tem praça

Juntam-se os braços
em luta sem quartel
no sopé 
onde não há generais.

Desenham as linhas do corpo,
os braços,
a silhueta dócil que emulsiona o olhar
e os braços pontuam as frases
em espera
no vulcão das encomendas.

Juntam-se os braços.
A luta não tem quartel,
está melhor assim 
– órfã de quarteis.

Na coreografia desenhada
os braços não precisam de generais.
São os seus próprios mestres,
espontâneos
demiúrgicos.

Clarificam os ventres escondidos
e metem-se nas grutas
dessedentam-nas
e saciam-se numa febre provável.

Os braços assim armados
praças fortes dos sete ventos
não aceitam
perder por falta de comparência.

#1214

Como é possível
dar o não dito
se o não dito não se diz?

#1213

Tomara
que a geografia não fosse distância. 
Tomara
um remédio para as dores da ausência.

3.10.19

#1212

Conselho aos emproados,
que em muito elevada conta se têm:
os nomes não passam
de um apóstrofe no meio do dicionário.

Visível

Contamos paredes
os previsíveis desmodos sem coro
seguindo os capitulares desencontros
em formulário irrepreensível.

Alisamos as árvores
sem medo da ferocidade do jardim zoológico
na suposição do amanhã depois de amanhã
em matinés fora do tempo.

Arrumamos as mãos suadas
desfazendo a contrafação dos sentidos
no pueril beijo sem cara
em banhos turcos com o odor da sálvia.

Prometemos os copos solenes
em árias maceradas e caóticas
e não contrariados vamos ao novelo de sangue
encontrar o cimento em falta.

Falamos contra as paredes
agora decapadas de pesares e penhores
e sentados à frente do areal
destravamos as bocas que se fundem nos corpos.

#1211

O rumor ciciado 
contabiliza vítimas
na usura da inverdade.