31.3.16

Dos olhos famintos

De onde vêm uns olhos sôfregos
vulcões archotes
incendiários da desrazão?
De onde vêm:
talvez de um teatro sem paredes
que se abraça ao vento que transige;
ou
talvez
do mundo açambarcado pela vontade sem freio.
Uns olhos sagazes
que desaguam
na furiosa vitualha de conhecimento.
Anseiam noites de insónia:
temem que é curto o tempo
que ampara o conhecimento.
Olhos tais            
muletas vitais
não se encontram ao acaso.
Olhos tais,
profusamente letrados
alegremente radiosos
pintores das cores à volta,
estão dispostos a tirocínio.

30.3.16

#16

Escrevi o meu nome
a tinta da china
            (jurando alguma eternidade).
Não contei
com a fragilidade do pergaminho.

Preces inteiras

O lenço amarrotado
reserva as lágrimas evaporadas.
De olhos postos aos céus
ensaia um arrazoado sem sentido
promessas solenes de metamorfose
recolhe nas mãos o império dos ventos
deixa para os tempos imemoriais
o sal gasto.

Incessantes
as gotas da chuva invadem a janela
e a humidade toma conta dos ossos.
Junta palavras ao acaso
num papel tingido pela dissipação
sem conseguir formar frases inteiras.
Maltrata a folha rabiscada
vai à janela inspecionar a chuva intempestiva
para gáudio dos cães vadios.
Conta histórias mentalmente
histórias ajuramentadas na poeira da desmemória
histórias empolgantes e falazes
ou as histórias mais difíceis de congeminar
– as histórias benzidas pela lhaneza.

Já não sabia onde eram os pontos cardeais
as ameias do castelo
nem se era noite ou dia
ou se os sapatos estavam bem-postos
nem se as vozes em surdina tinham eco.
Só sabia
que preces algumas
desatavam o nó górdio
que atava a noite.

Antes fosse sardónico
barão altivo num assertivo esgar
na militância de um cinismo ímpar:
ao menos
as consumições não tinham alvorada
e o entardecer aparecia de mão dada
com a aurora a seguir.

Todavia
não havia preces à venda
com tal desiderato.

29.3.16

Meia torrada

Custódia da alma
num penhor imenso
sem um esgar de calma
ensinar intenso.

Não saber de vivalma
nem curar de dores outras
deitando na mão palma
silenciar palestras.

Dantes, num promontório
julgara ser um ancião
dom de adivinhatório
agiota como um sultão.

Enganara-me no feitio
e em álgidos mares azuis
deixei-me na borda do estio
numa moldura que possuis.

28.3.16

Credenciais

Salvamos o que restava do dia.

Metemos as pás aos ombros
extorquimos todo o sal das paredes.
O mapa sem diâmetro
era um assoreado enigma.
A soleira da porta do templo
albergava a rosa-dos-ventos
suplente.
Tirámos as medidas
ao suor do rosto
à pele quente que congraçava o sol agoirento
ao túnel ausente de luz.
Não virámos costas à epopeia
exigível.

Acabámos a salvar o resto do dia.
Metemos as mãos nos rostos
veio fuligem esfarelada nos dedos.
Não foi em vão:
o mapa tomara cores de empréstimo
e o templo deixara de estar em falta.
Fomos domadores dos monstros medonhos
adestrados debaixo dos braços cansados.

Salvámos o resto dos dias.
Alardeávamos pundonor
um módico de audácia;
uma tresloucada coragem
debaixo das unhas.
Não sabíamos ao certo o préstimo
de tudo isto.

Só sabíamos:
salvámos o resto dos dias.

#15

A dança é um impropério:
dois pés maiores que o corpo,
três doses de preconceito
e chegamos à desqualificação.

26.3.16

#14

Queria andar à frente do tempo
esquecendo a janela empoeirada.
Um murmúrio avisou-o.
A tempo.

25.3.16

Duelo sem armas

Podemos disputar as palavras
podemos franquear os dicionários
e vencer o pleito.
Podemos esfregar sobranceria
aos que em nós usam da mesma moeda:
só não podemos
(ou não sabemos)
(ou não queremos saber)
desembainhar os óculos da franqueza
e entregar a taça
aos titulares de oráculos vários.

Combinem-se as vestes sumptuosas
esteios de uma supina sabedoria.
Combinem-se as páginas em branco
para duelos infecundos.
Combinem-se, sacripantas,
peritos nos ardis.

Podemos beber deste caldo
ou podemos meter uns óculos de sol
e ir para a beira-mar apreciar o entardecer.
No fim do dia
talvez entendamos
que o caldo é pútrido
e o entardecer poético.


24.3.16

Casa forte

O adro vigiava a noite.
No sono dos mortais
conspiravam demónios contra o rigor
da bondade.
Não tinham rosto que se visse
nem se faziam anunciar em panfletos;
sabia-se da sua existência
quando os atos tinham consumação.
Por isso
(e contra as conspirações)
patrulhas discretas
luzes sobre as trevas que acoitavam
os fingidos querubins,
protegendo o sono contra a maldade.
A noite metia respeito.
E só o cansaço das jornadas
dava caução a um sono sem medo.
Mais pelo cansaço dos dias repetidos
das canseiras pavimentadas pelas angústias
das olheiras que selavam contrariedades;
não fosse das forças exangues
o sono não tinha leito para ser plano,
sem contaminação dos rivais
que conspiravam o desassossego.
A noite tinha um perfume vazio.
Quase toda a gente
metia os sentidos em hibernação
mercê do sono em sentido.
Nem sonhavam
a contundência dos planos congeminados
pelos próceres da imprudência
pelos maestros das conspirações
os deserdados da ordem constante.
A noite frágil
era seu palco de eleição.
Os vigilantes,
tomando a torre da igreja,
tinham o adro de atalaia.
A menos que fossem vencidos pelo sono.
Ou
que descosessem as bainhas dos sentidos
e o fio de prumo ficasse do avesso.
Confundindo
bondade com maldade.

#13

A saudade
é um embaraço do passado
que embacia o porvir.