2.11.16

Livro aberto

Era um livro aberto
as páginas escancaradas
gaiola desembainhada dos logros
rutura sem dor
mão sobre o dorso do mar,
acalmando-o
páginas sem rosto nem linhas para escrever
drama sacrificado
aposta contrariada no húmus infértil
ou apenas a fantasia documentada.

Era um livro aberto
sem nada lá dentro.

1.11.16

Do manicómio

Provavelmente
a loucura batia com os dentes
e a pele anestesiada abraçava-se ao afluente.
As manhãs sem tempo
dobravam-se no xisto amparado
sem desnorte que se visse nas redondezas.
Mulheres de meia idade
estendiam a roupa na varanda
enquanto um talvez ministro passava
estrepitoso
com a demais comitiva ruidosa
e um gato imperturbável dormia no parapeito.
Sentado,
sem pressa,
lia o jornal com vagar.
Amanhã seriam notícias iguais.
A repetição da loucura sem rosto.
Da loucura que ninguém repara.

31.10.16

O pirata

Um pirata não furtivo
paredes-meias com as conceções gerais
vertidas em páginas de manuais
declarou o motim
contra os desapoderados do amor.

Um pirata altivo
sem temer descer às coisas banais
desafiava mil comensais
a perderem a indecência do carmim
perseguindo os condoíveis do desamor.

O pirata não esquivo
dando caça aos covardes dos lodaçais
sem saber que terçavam armas desiguais
desfez-lhes as vestes serafim
e contou lanças sem temor.

O pirata afirmativo
depôs da piedade os serviçais
sem esconder em panos finos os punhais
pois não almejava ser querubim
nem patrono do hexa amor.

29.10.16

Paredes cansadas

Paredes cansadas
ou o morticínio das tintas
furtadas à pintura.
Desarte não
apenas fadiga
paredes envelhecidas
carcomidas pelo tempo algoz
afeiam a cidade
triste.
Oxalá método
em vez de alucinação de ideias
ou pregões-preces pelos descamisados.
Paredes cansadas
opróbrio de tribunícios sem palco
desarquitetos a soldo
prisões sem fuga para os vizinhos da cidade.

28.10.16

#85

Gritavas ao ouvido
as ácidas, bolorentas palavras
à espera que se decidisse pelo abismo
e dormias depois um sono ermo
e a eito.

27.10.16

Carbono

Não seriam remédios
a colher no alto das minhas mãos.
Não serias remédio
para as feridas abertas em demanda de cicatriz.
Não seria um remédio
a dar às doenças em lenta mortificação.

Seria, talvez,
um animal ferido
irado
desvairado
cavalgando na onda que sangrava
desenhando óbices severos
sem o embelezamento dos sentidos atilados.

Destruí os campos planos
e as flores entretanto desabrochadas
e levava em mim a leveza distópica
de um urso cercado que não aceita ser presa.
Convenci-me que era um ciclone
e que tudo em redor tinha medo de mim.

Terão tremido os montes
ao saberem do meu grito excruciante.
Terão os rios chegado vermelhos à foz
lavando o sangue vertido.
Ninguém soube.
Ninguém cuidou
de arranjar os remédios precisos.

O dia depois
seria um dia como os outros todos.

26.10.16

Papeis trocados

Trocava as pedras arrefecidas
por uma tocha apagada
mesmo sabendo-a sem serventia.

Trocava um espelho baço
pela embocadura de um rio servil
mesmo sabendo-o anestesiado.

Trocava os dedos amarelecidos
por uma cunha à medida da mão
mesmo sabendo-a uma quimera.

Trocava as balizas tortas
por um arranjo severo das pautas
mesmo sabendo-o improvável.

Trocava as rodas finas
por uma estrada sinuosa
mesmo sabendo-a silenciosa.

Trocava o que sabia não ter troca
por algo que oxalá entoasse um pranto
em vez das ufanas estrofes de um pernalta.

Trocava
em mercancias até sem valor
o desmame de uma alma embrutecida.

25.10.16

#84

O guerreiro bebe o sangue do inimigo
(dizem).
E sangra as lágrimas que suas seriam
se em vez de predador
presa tivesse sido.

Olhar desembainhado

Atirei o olhar
por cima dos montes erguidos.
Deixei-o embebido nas raízes
a saciar-se nos mananciais escondidos
das profundezas do chão.
Atirei o olhar
no jogo simples das palavras sopegas.
Deixei-o medrar
na superfície das ondas calmas
ou na profundeza de um piano gelado.
Atirei o olhar
contra as janelas encerradas
à espera que o olhar delas fosse tutor.
Sem saber,
o olhar veio de regresso
com as mãos cheias de poros aturdidos
na embriaguez de um conhecimento cheio
com anotações embaciadas nos dados jogados
tirando as cordas atadas contra paredes gastas
desgastando os ergástulos com freios
sobre o porvir.
E o olhar refez-se
por dentro das bainhas deslaçadas
reinventando tudo
no ponto de mira de um olhar
não furtivo.

24.10.16

#83

Está alguém à escuta?
Consegue ouvir as cores desmaiadas
de um olhar contumaz?
Alguém à escuta?

Mapas

Mapas circundam a aurora boreal
voláteis,
como as luzes dançantes.

Redesenhamos os mapas
no dorso de um papel juvenil
carregando tinta-da-China
nas linhas que temos por fronteiras.
Decoramos os mapas.
Deixamo-los voar sobre as cumeadas
cuspindo furor em tábuas envernizadas
no contratempo de um tempo virado do avesso.

Mapas muitos
em ordenada forma ciclópica
amparos exigidos na aridez demandada.
E nem os deuses dos algoritmos,
(que sopram o luciferino progresso)
na excitação das ferramentas reinventadas,
devoram a caução dos mapas.

Mapas:
auroras boreais
mares longínquos
desertos inóspitos
cidades emaranhadas.

Ou a palma de uma mão.
Ou paisagens apenas mentais.

Mapas que cristalizam fados escondidos
e embelezam os dedos perdidos
que açambarcam um método
para um fado dardejado nos limites de um mapa.

23.10.16

Adiamento

Seriam os adiamentos bons conselheiros?
Se o fossem
talvez os relógios mentissem
e todos os pontos alinhavados no tempo
ditassem um quimérico esplendor vago.
Todavia,
descobrira-se que os relógios fingiam.
E todos nós caímos no ardil
da apressada maquinação do tempo
sem darmos conta
do adiamento de que fomos vítimas.

21.10.16

Frutos imorredoiros

Paga-se em juros
o apuro dos frutos caiados pelo sol. 
Consagram-se os rostos perdidos
como se fossem os heróis 
de um planalto corrosivo. 
Nada é perdido nos cestos gastos
onde os frutos se acamam. 
Nem as pequenas pedras,
despedaçadas de grandes rochas enquistadas,
choram às lágrimas vertidas em gotas de chuva
pela metade da terra lamacenta que as cobre. 
Frutos serão
até a uma reencarnação próxima
quando frutos semelhantes
vierem no viço da colheita.
Sem esquecer os braços
que resgatam os frutos
e devolvem nudez e melancolia 
às árvores. 
E diz-se
de boca em boca
que as iterações não têm fim
no desembaraço das leis sem explicação. 
Numa anestesia global
e todos maquinalmente aprendizes dos passos iguais
de um torpor sem pesares. 
Contenham-se com os frutos fulgurantes:
os que da sua apanha cuidam
e os que com eles se saciam. 
Do resto
não há preces em registo selado. 

#82

Eu sabia
que o gato poltrão disfarçava
num entreolhar polido
a atalaia do mundo.

20.10.16

Compêndio

Saltei a espuma do tempo
cavalgando na inóspita rua sem fim
que amadurecia na lua sem rosto.
Queria sorrir e consegui.
Sobre a aresta de uma onda domada
juntei os impactos do mundo
numa folha de papel,
sem a amarrotar
sem os desarranjar.
Disse
aos ventos sem rumo que alisavam a onda
que sabia ser marinheiro mesmo sem mar
pois inventei os palcos perenes
onde tudo se transfigura.
E o mundo inteiro
(ou pelo menos o que importa considerar)
veio às mãos minhas
sedentas de o albergar.

19.10.16

Viagem

Uma légua de caminho
a paisagem atarefada desfila pela janela
e o troar do comboio toma lugar
no mapa dos ruídos.
Uma mulher desconchavada cambaleia
contra os solavancos do caminho.
Dir-se-ia,
contrariada
aprisionada no comboio e ao seu destino.

Os olhos cansados procuram refúgio
por dentro das pálpebras.
O maquinal troar do comboio não deixa.
A paisagem é vertiginosa.
Leva consigo o sono vadio.

É como uma viagem pelo tempo
e a roda do tempo que passa,
voraz.
Já diziam os sedentários:
estultas são as viagens
quando um pedaço de paraíso se prende
à bainha das calças.
Discordo.
As calças atadas ponteiam os pés ao chão
o pensamento perde em antiguidade
os olhares ficam em dívida dos seus múltiplos.

O estorvo dos lugares mesmos
pede mapas e viagens e paisagens
numa cornucópia de lugares,
contrariando exíguos, ermos lugares
onde o corpo padece em sua avareza.
Lembrando
para memória futura
que a madurez se entretece
na miríade de lugares.

#81

Não é por acaso
o promontório que alberga sombras
se não no sótão
onde se desperdiçam pensamentos.

18.10.16

O compasso do mundo

Por mais voltas que o mundo dê
atiro-me às searas nascentes
como a água para os sedentos vãos
embelezo-me com tintas puras
corto das árvores as urdiduras infectas
dou folguedo em dias sem calendário
distingo os lugares com moldura
em vez da monotonia de uma hibernação.

Dê as voltas que o mundo der
desaprovo foros da jactância
destrono bestiários vindos das trevas
desalinho estrelas que bebem desordem
dispenso patriarcas conselhos de anciãos
desencomendo vendas para os olhares
desencravo portas enferrujadas
destravo rodas pendidas sobre o abismo
descoloco mapas afinados em parafina.

Em todas as voltas em que o mundo se insinua
venho ao mar receber o sal das divindades
aplaudo trovadores dos mundos anónimos
cozinho músicas no alpendre do luar
apanho comboios sem destino aparente
pergunto às pessoas se me podem sorrir
danço sem saber dançar
e povoo a tela diante do olhar
com petitas apanhadas no restolho das árvores
enquanto sussurro ao ouvido de um cavalo
que as mãos da terra apanham caminhos jurados.

Contando todas as voltas ensaiadas pelo mundo.

17.10.16

#80

(Com ingenuidade)
Não sabia se um hotspot
era uma ilha exótica a meio do inverno
ou outra, de pornografia.

Janela sem rosto

Talvez houvesse pontes meãs
por onde todo o crédito do mundo
viesse.
E das partidas inteiras do mundo,
abraçado a um manto lanífero,
via o que podia
à custa do nevoeiro timorato.
Teria sabido chamar a mim
os gatos sem casa
os mendigos sem medo da noite e da solidão
as mulheres entristecidas
os barcos vazios rio fora:
e teria juntado com as mãos
as pedras preciosas escondidas
na terra lamacenta
para depois as atear ao aleatório céu de nuvens
esperando pela tômbola consequente.

Talvez
o altruísmo seja um ardil da alma.
Uma cegueira absurda
nos deslimites do eu.

E, no entanto,
a pulsão sem freio adestra para a dádiva
metendo outros à frente do eu exaurido.
Dista da ponte aquífera
a equidistância entre o eu razoável
e o eu que transborda dos limites aprazados.

De frente para a janela embaciada
as gotas de humidade abrem estradas no vidro;
talvez,
por esses interstícios,
consiga saber por onde anda a alma.

16.10.16

Filial

Vamos comer gelados
à praia das baleias.
Vamos correr nas ruas
contra o vento que afeia o tempo.
Vamos apanhar amoras
no parque onde se deita a preguiça.
Vamos dançar sem jeito
pela mão tresloucada da música louca.
Vamos fazer rimas pueris
pois somos infantes de mão dada.
Vamos passear na cidade
enquanto não entardece a fome.
Vamos desatar numa correria furiosa
entrar no mar com as roupas vestidas
lançar água ao rosto um do outro
sem depois querermos saber
que a areia adere aos pés e à roupa.
Pois olhamos ao céu
e sabemos
que os cabimentos filiais se intuem.
Sabemos
que não morremos
enquanto estivermos nas mãos recíprocas.

15.10.16

Casario

Estas casas todas
vidros encardidos
postigos decadentes
pintura enrugada
janelas que escondem lares
casas coabitando
com tantas histórias de vida.
Gente
toda esta gente no metro
nas ruas apinhadas
gente triste
gente aperaltada
gente faminta
desalinhavando esperanças pretéritas
metendo as mãos frias nos bolsos
espreitando a lúgubre publicidade
fazendo contas de cabeça
expiando o bolçar quotidiano
metendo as pás do pensamento
no alfaiate do amanhã
deixando no tempo esgotado
promessas que a seu tempo
foram promissoras.
Estas casas todas
desta gente toda
e uma cidade com as veias à mostra
à espera dos feitos do futuro
enquanto aguarda
em desencanto resignado
que amanhã não demore.

14.10.16

Puro

Temos a fome da lua grande.
Apanhamos os frutos maduros.
Bebemos o vinho altivo em cálices finos.
Devemos ao mapa viagens mútuas.
Retiramos das árvores folhas caducas.
Olhamos para o mar sem fim.
Dançamos em singelos passos uníssonos.
Gravitamos nas nuvens brancas.
Espalhamos a ternura que é genética.
Somos outono em prefácio da primavera.
Deciframos os idiomas sombrios.
Cozinhamos com os dedos ungidos.
Amanhecemos no pináculo do sono sem sono.
Dizemos as estrofes diamante.
Suplantamos os estorvos do tempo.
Sonhamos o chão despido sem pés.
Chamamos os sussurros cantantes.
Vestimos os olhos com a equação de um poema.
Juntamos as mãos numa sentença leal.
Despimos os medos em contos singulares.
Assinamos o livro de ouro em linhas vazias.
Deitamos o corpo cansado no corpo vizinho.
Exaurimos a frágil agonia.
Dessabemos os pretendentes a algoz.
Cantamos a pura melodia apurada a dedo.
Somos.
Um amor sem medida.
Um amor levitando na aurora clara.
Um amor saltando sobre o tempo.
Um amor sem peias.
Um amor.
Somos.

13.10.16

Na medida do impossível

No esquadro das possibilidades,
sonhador de cais desembalsados
porfio entre as nuvens de chumbo.

Não desisto
nem que se abatam as paredes sombrias
ou um tira-teimas se jogue contra
ou abutres famintos espreitem sobre o ombro.
Congeminam-se
os palcos atípicos num inverno mendaz
com os mendigos exasperadamente inertes
(como se estivessem de espada embainhada
capitulando a norte).

Não quero saber
das cores desembaciadas
nem das pontes altivas que enlaçam diferentes
nem as terrinas de ouro tão cobiçadas.
Não me importam
estorvos contumazes
médicos sobranceiros
narcísicos com apoplexia dos holofotes
ou eruditos eivados de invencibilidade.

Ambiciono
o doce travo do impossível
ter um oráculo de impossibilidades
e vê-las transfiguradas no possível.
Sem cair à cama doente
se elas não forem fogueira incensada
nem dormir na perenidade do tempo
no acaso de as impossibilidades se confirmarem.

Nada me tira o prazer incontestável
de desenhar impossibilidades.
Sim
podem dizer
sou um iconoclasta das impossibilidades.

12.10.16

Monólogo

Diz
com o tracejado de um lápis
onde fruem os beijos faiança.
Diz
as coisas simples
à mercê do raiar da manhã.
Diz
como se fosse preciso dizer
os fundamentos do sol poente.
Diz
em memória com raiz
que árvores trazem sentido.
Diz
sem o torpor do tempo baço
que cordas se desamarram em altivez.
Diz
sem ter medo das palavras
que vozes se compõem na lua.
Diz
se te ocorrer dizer
os minutos sem peias no irrefreável rio.
Diz
às vozes que sussurram
que guardas na mão o segredo do sono.
Diz
qual é a fonte frondosa
de onde rebenta o manancial constante.
Diz
já sem dúvida
o lugar dessa fonte.

#79

A folha caduca
sonda o chão túrgido
selando a outonal deposição
do mosto do verão.