22.11.16

Negação

Lavou as mãos.
No detergente mais forte. 
Não queria saber dos restos
pegados em forma de peugada. 
Não queria que descobrissem. 
Era preferível endossar a culpa. 

(Para desconhecidos,
como dizem os códigos das leis.)

Se não chegasse o detergente
métodos mais contundentes:
diluente 
tinta da China
(caso o diluente ficasse aquém)
reparação da memória,
em última instância. 

Não seriam encontrados vestígios. 

Na pior das hipóteses
renunciar à memória
numa mentira ao tempo
que não faria dano maior
(convenceu-se). 

As mentiras só mordem na perna
quando à perna se aviva a memória. 

21.11.16

#94

Na medida do possível
ou 
à medida dos possíveis?
À falta de fita métrica
jurou as costuras do impossível. 

Lágrimas lavadas 

Copo cheio de lágrimas
sem impurezas outras
sem vergonha de virem a púlpito. 
Copo centrípeto
lágrimas larvares
grandeza sem corrupção
o peito inteiro 
onde cabe toda a generosidade
onde cabem 
as raízes do mundo sem estorvos. 
Copo vazado pelos olhos tutores
enxugadas as lágrimas com lenço costurado
em nome que te pertence. 
Copo arrumado
na ciência pura dos braços regados
com a água volumosa 
evaporada no fervor de um olhar. 
Tal como as lágrimas todas,
lavadas. 

20.11.16

Quintessência

Sempre considerei o suor.
Desviei das nuvens a bala perdida
(não fosse atingir o sol,
para tristeza acelerada de uma multidão).
Agarrei com os olhos o creme do bolo
(não fosse perder as bainhas da dieta).
Alcancei com brevidade
as ilhargas dos homens poderosos
(ou convencidamente poderosos)
e continuei a ver o que dantes via.
Escutei demoradamente
as músicas aconselhadas
(à espera de pedagógica iluminação).
Estudei metodicamente os filósofos
(à espera de um sentido à frente dos olhos).
Andei de braço dado
com a carestia dos sentidos
(talvez fosse ilusão de ótica).
Armei o coldre
não fosse um contumaz demónio
assaltar-me as ideias
(se é que elas tinham serventia).
Dormitei em pé
enquanto esperava o grasnar de um ganso
(sem saber por que esperava).
Vivi às diferentes velocidades da vida
(porque não sabia a velocidade certa).
Fui a lugares muitos em demandas várias
nómada sem quartel
(não dando crédito ao que queriam ensinar).
No suor embebido das coisas
no suor vertido em palavras desvairadas
escolhendo a vidraça da diferença
não empunhando bandeiras
nem empenhando as mãos
aos muito beatos profetas da verdade
(do paradeiro da verdade nunca quis saber).
O fumo das chaminés junta-se ao nevoeiro
tornando a luz baça centelha aguada,
por onde o crepúsculo se sufraga.

19.11.16

Prantos

O pranto do rapaz
(do rapaz que parece sem rumo)
percorre as repletas ruas da cidade.
Não as emudece.
O rapaz só chora, sem fala.
Não se sabem os seus queixumes.
Não se sabe como se chama.
Não se sabe de onde provém tanta tristeza.
Um pranto sem fim
à medida que arrasta as pernas frágeis
e limpa as lágrimas aos andrajos seus.
As ruas, repletas,
indiferentes como dantes.
Não se tomam por dores
de prantos alheios.
Chegam os seus próprios prantos.

18.11.16

Cavalo versus rio

O rapaz cavalga no dorso do cavalo
sem medo do rio caudaloso que lhes é paralelo.
A correria
(dir-se-ia)
é contra o rio:
o rapaz a repousa o olhar nas águas paralelas.
Se alguém perguntasse ao rapaz
que serventia era a de tamanha correria
– se houvesse mister de não interromper
a cavalgada desenfreada
e o rosto iracundo do rapaz
– quem sabe
o rapaz retorquiria:
a loucura de um crepúsculo sem aviso
era a corda toda às patas musculadas do animal.
O rapaz
desferindo golpes frenéticos com as esporas
imprimia no cavalo a fúria sua
e o cavalo,
contagiado,
transpirando baba pela boca entreaberta
disparando o coração contra as costelas
de olhos vidrados no concorrente caudal do rio,
aplacava a ira boçal do rapaz.

17.11.16

#93

Deste quarto quente
mãos ungidas pelo mel
e a carne arrebatada
deitando pétalas no desejo.

Online

O sangue nítido
escola antiga.
Movidas as pernas
pesar inquisitorial.
Achas da fogueira
carne tórrida.
As catedrais despidas
preces anátemas.
Músicas sem espelho
coiotes famintos.
Tiara dos imperadores
mãos nuas.
Perfume com cinzas
amanhã adiado.
A praça embalsamada
gelo gentio.
Manjar em ouro
amesendação sonhada.
O sangue fervente
lições intemporais.

16.11.16

#92

Superlativo escarlate
das manhas circenses,
oh, ardil vetusto
e sem arrumação. 

Mãos inteiras

Agarro pelas mãos
o templo onde se ampara a tempestade.
Convido os mestres das nuvens
à contemplação do sol deitado no mar.
Quero que as gotas de chuva cheguem vigorosas
as aves se escondam em seus refúgios
os tiranetes se amedrontem na curva ardilosa
a multidão se silencie.

Agarro o silêncio com os dentes
como se estivesse consumido pela fome.

Mexo no silêncio por dentro
e escuto na antecâmara dos fogos
um esquilo zunindo poemas amestrados.

Trago,
agora,
as mãos incensadas.

Dizem-me
que um fogo fátuo se verteu na colina
e o fumo em espiral ensina os oráculos.
Não me importo.
Tenho as mãos purificadas
e as fontes todas são meu manancial.

Agarro com as mãos os navios longínquos
as traves onde fundeiam os corpos livres
todas as palavras quiméricas
(que não dissolvem o silêncio);
as palavras
que devolvem uma pulsão sem freio
e deixam os olhos marejados.

Guardo as mãos
que muito delas preciso.

15.11.16

Telhado seco

Revejo os telhados escorregadios
onde tive império.
Não tenho ninguém à ilharga,
detenho-me nas fronteiras do tempo.
A apreciar o tempo
a destoar da luz intensa que desce da lua.

Fecho os olhos.
Do corpo sinto uma centelha febril
correndo veias fora.
Ressinto as pálpebras tingidas
no suor antigo que coloriu as lágrimas,
as suadas lágrimas evaporadas
que coroaram os pesares em talhadas.
Nos telhados de antanho
onde já não há rumores transidos
onde já não chega a chuva timorata
onde os pés assentam como esteios fundos.

Nos telhados polidos
os olhos regressam das pálpebras madraças
em volteios sibilinos
aquartelam sonos perdidos em marés noturnas
enquanto nos antípodas ninguém quer um sono.
Não hei de ser tutor dos telhados dantes meus:
os contratempos soados nas pautas rasgadas
assobiam ao ouvido
não deixam a não ser que os pés sejam esteios
– fundos.
No mais fundo de tudo,
tanto que mãos nenhumas conseguem escavar,
espreitam telhados invertidos
gotas de chuva guardadas no bolso
um pastor sem gado que dorme sem reparo
o meu não-sono pelo tempo fora.

Dantes
quando os telhados eram império sobranceiro
perguntava às divindades de atalaia:

que é feito do meu fado?
Que é feito
se não vos tenho, divindades,
por tangíveis?

O corpo repousa nas margens do lago sereno
desarmadilha-se
pacienta-se.
À lembrança
vem a vertigem dos telhados alcantilados
o despautério por onde me esbanjava
à espera que um lago acobreado
viesse em memória com a lua ímpar.

Dos telhados
promontórios adestrados com o ouro das mãos.
Respiro agora
as ondas gastas que colhem o horizonte,
sem cautelas imprecisas
sem o adorno da lucidez imprestável.
Só os telhados e eu,
perguntando
às férteis fautoras das coisas em redor
o que é feito das divindades
se delas não houve saber.

#91

O paradoxo da escolha
é não saber
coser as bainhas da decisão.

14.11.16

Penhor

Contas feitas
os lençóis desarrumados
deixaram a noite sem segredos.

Contas feitas
a noite embebida dera altar ao vinho frutado
bebido com a força das bocas sedentas
sem estorvos outros se não o desejo.

Contas feitas
os corpos depuseram-se
numa fadiga singular.
Nos lençóis
derramadas as lágrimas cautelares
em proveito dos murmúrios fechados.

Com as contas feitas
e as flores despejadas pelo chão
e os despojos que nos deixaram nus
e os azulejos fulgurantes deitados na pele
soubemos
que já não havia números que chegassem
a não ser aqueles prometidos
às coreografias dos corpos inseparáveis.

Podia amaciar o dia no resguardo de mim
enquanto te pedia em vertiginosa demanda.

Não é preciso apressar o tempo
a não ser nos ramos destravados
no altar que nos pertence
e não na espada desembainhada
que tutela o que se não consegue domar.

Devolvi o corpo aos lençóis desarrumados.
À espera de ti e do teu altar.
O sono coroou o sonho existido.

12.11.16

Meridiano

Caminho
no fino fio da penumbra
sob a proteção da lua desarmada. 
Caminho
no fio da água estouvada
sem o escudo de uma barragem. 
Caminho
na esteira de um caminho capaz
sem o acaso as pedras lúgubres. 
Caminho
pelas linhas delgadas de um mapa
sob a luz timorata de uma candeia.

11.11.16

Alfaiate

Um aplauso mortífero
das noivas ululantes em fúria noturna
dos cães vadios em peregrinação errante.
Dizia:
“não quero mais nada”
e eu não sabia o que tanto tinha
para mais nada querer.
Talvez fosse modéstia
ou apenas a ciência do desprendimento;
assim como assim
tinha acabado o combustível das palavras
e as fontes secas não eram bom presságio.
As mãos à cintura
em pose triunfal
esquadrinhavam o desejo das areias lúcidas,
das areias puras sem pedras por perto.
Um volante podre perdido nas dunas
deixava ao de leve um museu de desalojamento
como se as areias não tivessem fim
e uma lareira ardesse por dentro do peito.
Regressava ao aplauso,
talvez sentido sua falta
(ele dantes dispensado).
Uma rosa-dos-ventos com o pé partido
queria girar sob a força do vento:
a decadência não deixou;
a última nesga de metal sem ferrugem
foi contaminada
e a rosa-dos-ventos soçobrou.
Amanhã
terminado o tirocínio das nuvens
talvez
voltem os aplausos incendiários
as areias calmantes
um volante restaurado
e uma rosa-dos-ventos nova em folha.
Talvez.
Sem aplausos.

#90

Um rosto sem maçã
uma maçã sem barba
uma barba sem muleta
e a ginástica no armário.

10.11.16

Fundo do mar

Foi preciso ir ao fundo do mar
tocar nas estrelas depostas
perguntar à areia muda
sobre o sortilégio de ser.

Do fundo do mar
em demorada apneia
trouxe uns seixos dentro das mãos
algas arroxeadas agarradas ao corpo
e um sorriso que não conhecia.

Não vi as sereias desenhadas em fantasias
(pois delas não fui em demanda)
nem vi medonhas criaturas
ou grutas com sonora incógnita à entrada.
Vi a água profunda
peixes em sereno nomadismo
ao longe,
o hélice contorcionista de um navio mercante
ao longe,
sob o teto do mar
o céu disforme.

Sulquei algumas águas
provando do diferente sal que traziam.

Às vezes
o fundo do mar ilustra os segredos
que olhos nenhuns
em terrena digressão
conseguem abraçar.

9.11.16

Romagem

As escadas íngremes.
Uma medida de coragem.
Tiro os dados à sorte
(ou a sorte contra os dados).
Debaixo da pedra
a centopeia esperneia um destino
ao acaso.
Debaixo da pedra
subo ao céu estrelado:
amparo as costas do dia singular.

Todavia
uma centelha fugaz
estraga a escuridão da noite.
Precisava da escuridão.
Precisava de saber que sem luz
as portas se entreabriam
desmontando as ruínas à espera.

As pessoas falam de ordenanças.
Falam de mandamentos
como se houvesse carestia de vontade.
Eu puxo lustro à vontade que é minha
destruo os mandamentos e as ordenanças.
Posso estar na mira dos atiradores furtivos,
mas não me importo.
Tenho confiança
o céu estrelado é meu mandamento bastante
um seguro cais onde o corpo não se cansa
com pedras à mão para o caso de precisar.

Em minha defesa
alego os ancestrais líquenes
onde ficaram vertidos os votos vindouros.
Alego
páginas a eito
algumas ininteligíveis
outras (talvez)
um rasgo de uma coisa qualquer.
Alego em minha defesa
a pureza das palavras
embebidas no peito desembaraçado.

O corpo prepara-se para as escadas.
Uma vertigem incessante não o demove.
Catalisa as denúncias das coisas irrisórias,
desprende-se do chão húmido.
Ninguém sabe o lado oculto das escadas.
Não importa.
Depois da madrugada demorada
as mãos acertam contas com os lábios sedentos.

8.11.16

Framboesas

De um vaso soalheiro
um punhado de framboesas à boca.

De olhos fechados
como se com eles fechados
todo o sumo das framboesas,
num caudal semântico,
combinasse com uma concentração pura,
e o suor afirmasse a doçura decantada.

Uma medida bem tirada
do sangue vertido no vaso das framboesas.

Simples as coisas que valham
no parapeito liso de onde o resto
se desfaz em pequenos fragmentos ao longe,
e tudo se resgata no sentir forense
das espadas que rasuram a usura.

As framboesas são hipoteca dos sobressaltos,
ganham deleite até serem matéria gasosa.

Nelas se esconde o título arpoado
no dorso de um cavalo hirsuto
contra as persianas que,
desfeitas em vestígios disformes,
jamais ocultam o teatro plano
onde ensinam os artesãos das framboesas.

#89

Havia árvores inclinadas
néctar prometido por deusas
embaraços em capitulação
e palavras desejadas.

7.11.16

Radiografia

Deixo o peito descarnado
à luz aformoseada dos moinhos.
Num ápice
entre embrulhos rejeitados no restolho do natal
comprimo os olhos cansados contra as pálpebras
e retenho as lágrimas.
As lágrimas,
contudo,
marejam emoções desatadas,
os apóstolos entronizados na lenha seca
rosnando contra sua mofina.
Deixo o peito descarnado
contra vitais, impensáveis entidades alvares
que empunham bandeiras sem cores
pedras vulcânicas adormecidas
um cálice de vinho podre,
já sem serventia.
Pela alvorada
penso ser um pássaro que voluteia,
errante,
entre os ventos tremeluzentes
e as algas atiradas pela maré enxurrada.
Penso
que não devia pensar
nas alturas em que o pensamento 
se vira contra mim.
De que me queixo,
a não ser de um pensamento voraz
um pensamento foragido
um pensamento prolixo
um pensamento que se consome por dentro?
Os degraus da enseada
apanham as cores sortilégio do entardecer.
Fico sentado nos degraus
as folhas outonais batendo no rosto
e as mãos frias pedem refúgio,
enquanto as nuvens relapsas ciciam
e os automóveis invadem a rua.
Deito o peito
descarnado até ao osso
e fico à espera da noite loquaz.
Para saber
se são harpas que entoam músicas
sem hidras por perto
ou se um cais escondido sussurra ao ouvido
sobre o lugar onde fundear os ossos cansados.
A pele macia,
talvez,
a prova que o peito voltou a ser um só
inteiro e sem compunção.
O peito descarnado é de outrora
refeito por musa que me traz pela mão
em doces acordes de harpas sem fingimento
em estrofes que trazem a alvorada
e dissolvem os lugares pretéritos,
os lugares baços e sem espécie.
Uma musa
em peito abrigada
devolveu a carne ao peito emendado.

5.11.16

#88

Ai, se eu soubesse
tinha partido o relógio
nas trombas do tempo.

4.11.16

Manifesto anti lugares comuns

O jardim suspenso
é porque ficou adiado?
Tiram os dentes podres
e sobra boca;
ao menos, podem falar à boca cheia.
Um endemoninhado mete a faca no alguidar
e descobre a sanidade
ao descobrir o vazio do alguidar.
A faca,
deposta na imensidão vazia,
limpa o sebo onde ficou a loucura do homem.
Agora é um bom partido
(certificam as alcoviteiras);
e se partido é,
em não sendo inteira coisa,
como diz alguém dele ser boa rês?
Talvez se tenham enganado no mercado
e as folhas enrugadas
ofereçam um chão irregular
onde os pés se amedrontam
e o pensamento emagrece.
Dirão
em contagem de espingardas
que o diabo está nos detalhes,
como se o diabo
coubesse em coisas tão pequenas
– fosse desse modo,
quem fugia do diabo
como quem foge da cruz?
(Hipótese inconcebível para um crente,
a quem a morte não tira o sono.)
Talvez sejam os mesmos
que contam com as espingardas que contam
para dissolver os diabos subjacentes.
Só depois do morticínio
podem entrar no jardim do Éden.
Que não está suspenso:
não foi repreendido por mau comportamento.

3.11.16

#87

Num quarto apertado
um elogio
(talvez sincero).
Passei a odiá-lo
como se odeia o sebo de uma enguia.

Piedade

Aprendi com os prantos:
a misericórdia plasmada em pele aberta.
Cuidam os olhos marejados
da piedade alheia
em vez de serem os próprios
fautores de seus remédios.
A espécie está embebida numa consagrada
generosidade:
empalidece a boçalidade
quando os olhos se humedecem
em lágrimas adestradas por lágrimas outras.
Não falta muito,
a espécie acaba chorosa.
Náufraga de tantas lágrimas copiosas.

2.11.16

#86

Fora de água, a cabeça aturdida
um coice lisérgico
e a véspera de um amanhã desamparado,
funambular.
(Até parece que.)