3.10.17

Babugem

Estou impressionado,
azoado – diria:
o senhor mandão
zeloso tiranete local
abespinha-se à conta de
(veja-se lá o topete)
perguntas.

Per-gun-tas!

O senhor mandão
prefere as ideias no singular
e às suas semelhantes.
Mas as perguntas
descosidas sobre seu domínio hermético
intuem o plural,
hedionda impossibilidade.
A tolerância
(insinua o mandão)
não admite perguntas que os calos pisem.
Tem bom remédio,
o mandão:
há especialistas nas maleitas calosas
ou leva com tirocínio no plural
ou remete-se,
prisioneiro da fúria avassaladora,
da fúria reveladora,
à babugem
que das suas palavras se excreta.

#331

Deitei o olhar atrás do ombro
em oráculos do pretérito
e escombros não vi.

2.10.17

Dou de mim

Dou de mim
o insubmisso
a cor sem asas
as mãos trespassadas de amor
as palavras-crisálida
a fonte sem finitude
o navio sem sono
o gato treslido
a porta sem chave, entreaberta
o armário sem fundo
a sede do suor cansado.

Dou de mim
prédicas sem ouvintes
viveiro inesgotável
facas sem gume, mansas
flores diuturnas
o fato dandy
ideias sem norte
ideias sem sorte
pianos delicodoces
hábitos sem açaime
o tremeluzente predicado da alma.

Dou de mim
o que de mim vier em legado
sem pejo
sem o cotejo da saliva acidulada
apenas a redenção acautelada
e páginas a eito, devoradas
lauto amesendar no ermo neófito
onde se depõem armas espúrias
se colhem morangos do bosque
e danço os poemas anelados.

Dou de mim
o mais fundo
medula inteira
olhos às vezes marejados
outras, embaciados
e um gesto de ternura
no coalhar do rosto à espera.

Dou de mim
estrofes desarranjadas
o caos com ordem
ou a ordem embebida no caos
montanhas alinhadas no firmamento
os dedos contando os dias por fazer
e as memórias alinhadas no cadafalso.

Dou de mim
alma pura
ou impura
– não interessa.

Dou de mim
a inteireza balbuciada nas cinzas remanescentes
por entre mundos sem limite
ondas que crescem nos braços do mar
numa revolta por dentro
e o sangue em ebulição
irreprimível
contra as paredes meãs
esventrando-as
estilhaçando-as em poeira sem uso.

Dou de mim
o proveito da noite
em apalavradas estrofes sem juramento
no galope estridente de cavalos sem eira
até que tudo o sono cubra com seu regaço
e paisagens de veludo,
por entre os olhos baços
sem lágrimas por perto,
vistam as mais solenes fazendas
para se celebrar
o eu que dou de mim.

#330

Não fazia infância
um caleidoscópio de memórias
num poço de que não sei fundo.

1.10.17

#329

Banho-maria
Maria no banho
ou Maria sem banho?

#328

O fuzo difuso
sonho sem sono
mandante sem ordem.

Medalhas

As medalhas transluzem à lapela
como o sangue da terra,
vertido nas flores tingidas.

Não sabe de mais nada
menos o ufano das comendas
em tiros convulsos sobre a indiferença.

Talvez queira
olhos ciciados no umbral do dia
um bem-haja desfolhando-se
em páginas circunspectas
árvores beijadas no rosto sem rugas.

Os frutos maduros
escrevem as páginas solícitas.

Não se despe das medalhas
nem nos contrafortes do sono.

30.9.17

#327

O farol entoa um pranto,
insistentemente,
delindo o nevoeiro contumaz.

Rosas-desembaraço

Contam-se as rosas
no regaço cansado
aberto à luz.
A noite não leva o medo
pois o medo já se esvaziou
por dentro da noite.
Dizem que das rosas
se verte perfume;
mas as rosas estão murchas
– será que insistem na proclamação?
As pessoas metem as mãos nas rosas
como se houvesse
uma janela quimérica a desemparedá-las.
Evocam uma esperança
– por assim dizer –
na maré gasta
onde as coisas se consomem
e vêm devolvidas em rosto lavado,
renovadas;
em intensa prestidigitação.

29.9.17

Torrencial

Conversa pé de orelha
junto ao palheiro
por cima da árvore matricial:
as mãos juntas
por dentro da terra
procuram pontos cardeais
soalheiras searas para sentir o vento
embebendo o rosto no sal quântico
assim arquejado.

Acreditamos:
os nós teimosos
não combinam com a detenção da vontade
e a capitulação não terá alvorada;
acreditamos:
no perfume de um cometa alado
em demorada jornada
que não conhece finitude.

Aquecemo-nos junto à lareira
e no crepitar do fogo
sentimos a combustão singular
a deitar-se na maçã do rosto.

Ruborizamos:
não é de pudicícia pela nudez dos corpos
nem pela loucura desaconselhável
(aos demais).

Vamos às raízes de tudo
e na equação formalizada
por entre a elegância do pensamento
e o urgente desejo
damos passo ao sol tardio em passos lentos
deitando a jogo
o jorro da vontade.

#326

Quando dos eteceteras
somos reféns
e da incompletude,
instrutores.

28.9.17

Filhos da pátria oferecem peitos às balas

(Na televisão passa reportagem sobre a angariação de mancebos para o serviço militar)

Diz isso, meu filho,
diz lá
que pela pátria fazes tudo
(incluindo o alistamento 
no já não obrigatório serviço militar).
É assim mesmo:
pinta o rosto com a bravura sanguínea
empresta ferocidade às palavras que esgadanhas
em vizinhança com as altercações na gramática,
faz pose
a tão famosa pose militar
(aquela em que os castrenses fincam as pernas
e deixam uma abertura de trinta graus
entre os pés assim apartados).
Penteia o patriotismo esbelto
do mesmo passo que os generais de ti fazem
carne para canhão,
que é eufemismo para
idiota útil.
É tudo pela pátria
– já sei,
já o puseste na boca com a ênfase dos fanáticos
ou com a indigência dos lunáticos.
Adestra o dialeto das casernas
o fedor dos paióis
não digas “sim”,
aprende a dizer “afirmativo”
pega nas armas
quando os marroquinos nos quiserem invadir
à falta de santas guerras
ou de já não poderes defender as colónias,
lamentavelmente descolonizadas.
Enche-te de carnes rijas
devidamente musculadas
se, entretanto,
não decidires pelo hedonismo
e nos braços dos aloirados sumos de cevada
decaíres
no inglório pleito da boçal pança
contra a lei da gravidade.
Podes sempre
continuar de pernas bem abertas,
a pose castrense,
tão máscula,
à espera
que a pátria te penetre numa desatenção
e por fim descubras
que dela foste pura meretriz,
ó jovem.

#325

A miragem algures
desobedecendo aos sábios conselhos
da mastodôntica razão.

27.9.17

Peritos do pranto

No parapeito do desamparo
onde se apanham sequelas inesperadas,
inúteis,
afocinham os melancólicos
em sua incessante ladainha.
Lamentam-se
de-mo-ra-da-mente
e eu parece-me
que exageram nos lamentos:
os pobres só querem a atenção
de que se sentenciam credores
quando a atenção
(e os outros que a conferem)
dela não os julgam se não devedores
(ou indiferentes,
o que vem a dar em estatuto mais pungente).
São terrivelmente egoístas
estes não parcimoniosos choramingas:
não lhes chegam os padecimentos interiores
bastantes para arrepiarem as lágrimas
contra qualquer parede por onde venha gente;
ato contínuo
alçam o revólver da comunhão
só para destravarem dos outros a comiseração
e acabam por neles verter as lamentações
sabendo de ciência certa
que muitas, desvalidas almas
socializam as a si exteriores dores interiores
deles fazendo suas.

#324

Na contraluz
silhueta simulada
as sombras sem contar.

26.9.17

#323

O navio sentinela
carne incandescente
à espera, em continência.

Ciclo vicioso

A rua cifrada:
coutada tribal
no amparo consumido.

Tiram-se à sorte
as bestas desemparelhadas
no equinócio outonal
no previsível empate das camélias.
Diz-se saber das coisas que há
à falta da ciência sobre as outras
e em sendo o tirocínio da humildade
contraste com o lúgubre ensimesmar.

Não se peçam meças à função
por mais que pareça trivial.

No visível fumo da cidade
escondendo as trevas das alimárias
enganam-se as noites pueris
em lençóis gastos.
No desempate das furnas
sem pestilentos vagares e baços montados
os pastores cansados cantam a saudade
e as velas hirsutas dos navios
ao longe
são maestrinas versadas.

A rua cifrada:
mostruário trivial
sem almas ao desamparo.

Ósculos incessantes
xailes garridos
poemas atravessados
a concreta ignorância de tudo
e as mãos lavadas em águas puras
sem sentido
em sentido
contra os generais
tiranetes compulsivos:
erguem as bandeiras varinas
lotarias ganhas na casa da partida
contra a imponderável desliberdade.

E depois
renasce-se.

#322

Erro pelas ruelas sem atalhos,
e encontro
o compasso por que me rejo.

25.9.17

#321

À vol d’oiseau        
sur le dos des dieux
façade du château fantôme
empire sans pouvoir.

Corsário

Fui corsário
sem apelação
sem sequer requisição
por um inteiro,
longo dia.

Sulquei os mares abespinhados
no proveito do perdão
à espera da convalescença
dieta exigida para a recensão.

Foi de propósito
decerto:
corsário destravado
em naus inventadas
devolvendo lugar às almas sequestradas
na demissão de seus vorazes domadores.

Demanda diurética
na fração condenada
ao açaime das trevas,
corsário sem dó
na exaustão dos comoventes azulejos
onde ladrilhadas estão
as profecias sem lustro.

Corsário
porventura sem mar
sem ira a adejar
sem de ideal ser serventuário,
corsário forjado
mas corsário pleno.

#320

Um parecer com alma a contrastar
a solidão-objeto
a destronar.

24.9.17

#319

Tantas as gestas de almirantes
e os pleitos transformados
em malogros.

Módico

Aritmética à lapela
no esconderijo lacustre
sem estética a perfilar.
Migalhas espalhadas no chão vetusto
o cão desossado uiva no arabesco noturno
e as viúvas entretecem o coro lânguido
como de costume
sem céu vidente
nem na alvorada.
As lápides em seu musgo taciturno
dormem sempre.
A aritmética desmata-se
nos contrafortes do despojamento.
Talvez não sobre nada.
A não ser
viúvas esfíngicas
vertendo sobre as mãos gastas
os prantos da mágoa abraçada.

23.9.17

Desconfiança metódica

Um caos sabido
entre cortinas de fumo
densas cortinas de fumo
e as mãos tateando as paredes
por falta de serventia do olhar.
Tem-se medo
um medo determinante
quase angustiante
quando o corpo se move
sem mapeamento,
às cegas.

Uma voz enigma
sussurra:

há de ser revinda a luz
e deixarás de ter medo
mesmo que as trevas que são tuas
não tenham o selo do temor.

Desconfia do predicamento
em julgando amaldiçoada a voz oculta
sem rosto para oferecer.
As mãos transidas
seguem coladas aos poros da parede
dedilhados um a um.

A precaução
nunca foi julgada
excessiva.

22.9.17

#318

Se pudesse ser uma estação
era o outono:
ardilosa decadência
em promessa de catarse.

Os algozes

O arpão 
sem estribeiras
consome a sede,
vaga-lume gasto. 

Noto
o bruxuleio do rouxinol
e a traineira solitária
em fuga. 

Não adianta
o protesto trovejante
a arrumação metódica
o beijo esboçado. 

As nuvens
escondem revólveres
estribilhos desnatados
líricas vozes demenciais. 

Tudo parece um jogo
simulação contida
por dentro da simulação
verticais, paralelos labirintos. 

Nada parece em jogo
capitulação reverencial
medo sacramental
em ausência perene.

Alguém lamenta:
“oxalá tudo fosse geométrico”
e eu protesto
contra a desambição miúda
a estrepitosa mesquinhez
o embaraço sobre o rosto
a maquinação não notada
a virulenta opacidade
a passiva deriva
oculta recusa da emancipação. 

Não há remédio:
não querem
nem em módica dosagem
a indisciplinada emancipação.

21.9.17

#317

A portagem paga
no apeadeiro da loucura,
investimento de primeira sensatez.

Roleta russa

Em penhor contristado
tiros de pólvora seca
cisma da perseguição
um eu mal resolvido.

Dizem-lhe: “vai à bruxa”.

Revolta-se
em revoadas sucessivas de indignação
trejeitando ira tanta,
a rodos
que dela se alimenta
e nela se consome:

perfeita autofagia.

Dele não sobra
vestígio para narrar história.

20.9.17

Água termal

Ah,
se ao menos soubesse
o estio das ideias
o vendaval noturno das almas sem medo
os gatos disfarçados na penumbra
os dedos acesos contra a luz
os candeeiros do avesso em paredes claras
as orquestras vazias
as cadeiras vazias
as flores sentadas à cabeceira
os livros amarrados ao silêncio
as vidraças embaciadas de suor
as alvíssaras das nuvens furtivas
os lampejos dos ossos vadios
os piões da infância
os sultões das verdades gastas
(e por isso improfícuas)
os tiranetes do hedonismo
os lacres das modestas palavras
os beijos em rostos arrefecidos
os beijos nos lábios amados
os corrimões sem ferrugem
as esquálidas fachadas da cidade frágil
as ruas mostruário
os arranjos da alma
a alma desamarrotada
as guitarras troadas ao acaso
o bálsamo distante
as rosas-água nas jarras perdidas
os navios pérola
o sal desenganado em fúteis diálogos
os deuses destronados
os cálices sem rosto
as viagens anotadas na pele
as tatuagens firmadas em sonhos
as danças sem palco
os mastros irados
as garagens penhoradas
os rivais em rios amigos
as noites sem sono
o sono sem noite
a cozinha aberta e jornais despedaçados
os velhos sem medo
os juros sem matéria
e os dinheiros sem jura.

#316

No aval das circunstâncias
devoro a urgência assombrosa
na curva meã da chuva consagrada.