2.10.17

Dou de mim

Dou de mim
o insubmisso
a cor sem asas
as mãos trespassadas de amor
as palavras-crisálida
a fonte sem finitude
o navio sem sono
o gato treslido
a porta sem chave, entreaberta
o armário sem fundo
a sede do suor cansado.

Dou de mim
prédicas sem ouvintes
viveiro inesgotável
facas sem gume, mansas
flores diuturnas
o fato dandy
ideias sem norte
ideias sem sorte
pianos delicodoces
hábitos sem açaime
o tremeluzente predicado da alma.

Dou de mim
o que de mim vier em legado
sem pejo
sem o cotejo da saliva acidulada
apenas a redenção acautelada
e páginas a eito, devoradas
lauto amesendar no ermo neófito
onde se depõem armas espúrias
se colhem morangos do bosque
e danço os poemas anelados.

Dou de mim
o mais fundo
medula inteira
olhos às vezes marejados
outras, embaciados
e um gesto de ternura
no coalhar do rosto à espera.

Dou de mim
estrofes desarranjadas
o caos com ordem
ou a ordem embebida no caos
montanhas alinhadas no firmamento
os dedos contando os dias por fazer
e as memórias alinhadas no cadafalso.

Dou de mim
alma pura
ou impura
– não interessa.

Dou de mim
a inteireza balbuciada nas cinzas remanescentes
por entre mundos sem limite
ondas que crescem nos braços do mar
numa revolta por dentro
e o sangue em ebulição
irreprimível
contra as paredes meãs
esventrando-as
estilhaçando-as em poeira sem uso.

Dou de mim
o proveito da noite
em apalavradas estrofes sem juramento
no galope estridente de cavalos sem eira
até que tudo o sono cubra com seu regaço
e paisagens de veludo,
por entre os olhos baços
sem lágrimas por perto,
vistam as mais solenes fazendas
para se celebrar
o eu que dou de mim.

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