14.7.18

O pior pensador da cidade

Estreita os garfos vencidos
sobre a toalha contumaz:
dizem que o pior pensador da cidade
não se cansa da vaidade. 

No púlpito deserto
sobram os abutres famintos
no limiar da falésia
onde esperam o cortejo de presas fáceis. 

À míngua de água
arrastam seus corpos exangues,
as presas fáceis,
aturdidas pelo sol açambarcador. 

O vulto do pior pensador da cidade
não capitula;
é como nos piores pesadelos
(ou na lei de Murphy,
já não se sabe ao certo):
o disfarce do deserto
e de seus porta-vozes diletos
(os abutres pacientes)
aparece na forma do pior pensador da cidade 
– como se fosse 
a nódoa 
que nenhum elixir sabe dissolver.

#653

Livro (em) branco.
(O silêncio fala mais alto.)

13.7.18

Prazo de validade

Vem na embalagem:
deixou de ter serventia
e se abrires o invólucro
talvez notes
fungos
podridão
o odor pútrido
as cores adulteradas
um estado comatoso da mercadoria.
Perguntas:
tem remédio
o prazo de invalidade?
Aceita um módico de trapaça?
Não vás ao desengano
que o leito do hospital
e uma desintoxicação
não são pera doce.
Não faz parte da récita
o fingimento
nem tão pouco se recomendam
vistas grossas ao prazo de validade.
Quando te renderes ao prazo de validade
verás
que há muita claridade para arrotear
e muitos prazos ainda dentro 
da validade.

#652

(Variação do #651)
Estado da nação:
considerável matéria-prima 
para oftalmologistas.

#651

Estado da nação:
prodigioso triunfo dos mitómanos.
(Na falta de estado de noção.) 

12.7.18

Plano de fuga

Matriz desenhada
no parapeito do improviso.
Um raio atravessado
na bissetriz do papel 
– uma cicatriz não esperada, amovível.
Compõem-se as estrofes imprecisas
no antebraço da angústia
em remoinhos inseparáveis do sorriso:
pouco há que valha tanto.
E sem pressentimento por perto
escavo as sílabas 
va-ga-ro-as-men-te
não vão as palavras ficar pela metade
e o plano de fuga naufragar
à mercê de um demónio disfarçado.

Ajusto o espelho ao contorno do rosto.
A toalha humedecida
desce sobre o espelho;
não quero que ninguém veja
o plano de fuga 
– ou de como me devolvo
aos labirintos
que são a medula indisfarçável.

#650

Pressuposto.
Pré suposto.
Prece e posto.
Prece, o oposto.

11.7.18

O bom sociopata

Um mergulho no carisma:
pressuposta a carência de admiração
pois o autocomprazimento
é medida exígua para tanto ego
e não conta para as contas que contam 
– lá fora
onde os outros são a légua medidora
o bastão correto
(quando o carisma é por eles tutelado). 
Houve quem sugerisse
que mal não viria ao mundo
se um modesto ensimesmar
fosse o contraponto 
dos corpos que transbordam
e demandam leito fora das margens
(num cosmopolita coletivismo do eu). 
Os desenhos da alma
opõem-se aos nomeados curadores
que sugerem uma certa altivez do eu:
sob pena de acusatório libelo 
na forma do ultrajante narcisismo
recomenda-se que sejamos 
janelas abertas
uma certa simbiose recíproca
a multiplicação de eus 
em outros eus assim expostos
tudo elevado a uma potência sem numerador,
proibidas as cortinas 
que descem sobre uma certa reserva
e a coutada da personalidade.
Não transijo
a recusa em ser 
ator de um voyeurismoirrefreável.  
Termos em que me declaro
orgulhosamente sociopata
sem declinações centrípetas, 
que também recuso. 

#649

O cavalo de troia da nação:
porta-vozes em nome de todos
(sem exceção).

10.7.18

Jacarandás

É a conspiração dos jacarandás:
as cores em combustão
rompendo com a noite
(se preciso for)
deitando sobre o olhar
a cor luxuriante havida por necessária
na contrafação imperativa das sombras.

Só pode ser conspiração:
recolho das pétalas dos jacarandás
um aroma imaginado
que extasia
e reinventa a pele adormecida
e devolve ao sol o acobreado palco
e embebe o mar numa cor desmaiada
e ultraja todos os quadros encarvoados
ditando-os à decadência
em que servem os vultos.

Uma conspiração:
no apego às palavras
em seu lugar reavivado
as palavras
decompondo-se em semântica do avesso
só para ter a medida de uma conspiração 
na antítese das malevolentes conspirações.

Tiro as bainhas
ao quadro diante do olhar:
admito a conspiração
dádiva dos sentidos
e convoco os jacarandás
para uma constante jornada de flores pujantes.
Só para me saber
constituinte de uma conspiração
não cuidada com o punho preventivo 
de punição em coro com o penal código.

Para memória futura
e em apelo aos distraídos,
aos que nunca 
deixaram os sentidos embebidos 
na quimera de um florescido jacarandá, 
e aos provavelmente incultos
(sem culpa formada por essa culpa)
que não sabem da cepa dos jacarandás,
para colherem 
no púlpito do olhar
o frémito da conspiração fertilizada
pela embriaguez de cor dos jacarandás.

Até muito sermos
tutores de conspirações benévolas. 

#648

Deixo o magma ascender
enquanto as veias medram,
em ebulição.

9.7.18

Modus operandi

Insuspeito lugar
uma rosa-dos-ventos não catalogada
catorze degraus até à porta
e uma baía que se abre ao peito sedento.
Vejo um mastro em ruínas:
os despojos de um navio
acastelam-se nas rochas
não cansadas da brutalidade do mar.
Não sei se houve cadáveres
no naufrágio.
Também não sei
se o navio trazia tesouros
(que não fossem
o muito mundo andado).
Talvez os pesadelos contem o resto.
E neles fermentem os mitos embainhados
em rodas vivas enferrujadas
e carrosséis improváveis
(só para gente crescida)
na literata demanda dos farsantes
(disfarçados de eruditos).
A falésia
no seu recorte escarpado
é uma fronteira medonha.
Que se precatem os navios limítrofes:
não costurem a baía alcantilada
ou só hão de contar
para desenhar a metáfora do medo.  

#647

O contratempo é um pretexto
(uma vírgula fora do sítio).

8.7.18

Tiro o chapéu

Tiro o chapéu
(sem conter genuflexão):
o breve, modesto aplauso
à remessa criativa
nas margens de um lago inanimado.
Insubmissos
transbordam das margens
e redesenham os limites.
Tiro o chapéu
(sem conter a genuflexão):
mudar a geografia
não é de somenos importância
(e não é vulgar tarefa).

#646

Na página rasurada
a consciência serve-se fria.

7.7.18

#645

Métrica.
Liga metálica.
Metáfora.
Matemática.
Mnemónica.

Anestesia

Consegui trazer
o diamante em bruto
no periscópio amuralhado. 
Trouxe ao saber
a história que encerra a história
capitel esculpido pelos braços não tementes. 
Não sabia
deslindar as entrelinhas
até descobrir o avesso da página
a escultura indelével sufragada. 
Soube encontrar as sílabas no lugar
as vírgulas diligentes
a gramática 
num lugar não indecoroso. 
Ou talvez julgasse
terem estas sido as ilações
depois de aplacar
o mar tumultuoso.

Agora
já não uso os verbos no pretérito.
Agora
desconfio das coisas
quando se revelam em sua claridade. 

Desmonto as consagrações
os (afinal) volúveis imperativos
os edifícios cerceados 
em seus alicerces incorruptíveis
as balas oferecidas aos provocadores
as atrozes linhas 
perfeitas como leito de palavras 
sem mácula
do mar calmo 
que esconde subterrâneos remoinhos. 
Sob um campo de nuvens
ouço um avião que se fará à pista;
é tudo o que me é dado a saber 
– é pouco e muito, 
ao mesmo tempo. 
Arroteio a sementeira do pensamento
e intuo
(desmentindo lugar a qualquer certeza)
a sua cansável condição
um muro que pretendia coerente,
sem a combustão da sua fragilidade. 

Volto temporariamente 
ao verbo no pretérito:
desenganei o coloquial estatuto do pensamento:
encontrei-o
nómada e sem pertença ancorada
no incerto lugar onde se desmente
sucessivamente. 

Passei a saber
que muito saber
tem pouca serventia.

6.7.18

Manual da preguiça ao entardecer

A gata
ao colo do entardecer. 
Na instrução da preguiça 
enquanto o dia se funde no ocaso. 
Pergunta,
no domínio de seu silêncio, 
se amanhã 
será outro prodigioso dia 
benzido pelo sol. 
Sabe, a gata,
a maioria das pessoas 
está arreliada com o verão. 
Acusam-no de estar envergonhado. 
Exigem um estio como dantes. 
A gata não se importa. 
Desde que o entardecer 
seja cativo do sol desmaiado 
e a preguiça assim acarinhada.

Fugi da cidade

Fugi da cidade
da teia monstruosa de olhares
dos gatos vadios, furtivos
da coreografia de vaidades
do magro destino imerso no vazio
da frenética adulação ensimesmada
das casas sem janelas
dos rostos desapalavrados
da boçal revelação dos habitantes
dos apoderados que tresleem a cidade
da indiferença das almas despovoadas
da imensidão das praças sobrelotadas
das meteóricas aparições dos notáveis
dos notáveis 
(outra vez: dos notáveis
putativos filhos diletos
autoconsagrados embaixadores 
do sentir da cidade,
seus adulteradores máximos);
fugi da cidade
do que se esgrime no trânsito demencial
das árvores enodoadas pelo ar impuro
dos mendigos de olhos encovados
da farsante vacina da modernidade
do turismo panaceia, ou turismo pandemia
do sol embaciado na névoa teimosa
da geografia da cidade
e da sua garbosa identidade
(como se diferença fosse superioridade).
Fugi da cidade.
Agora
tenho uma janela
e o mar inteiro sob as minhas mãos.
(E sinto-me maior que a cidade,
sua provável antítese.)

#644

Se tirar a caução às palavras
elas crescem descarnadas?

5.7.18

Promontório

A sorte do penhasco
é ser promontório soberano
varanda que fratura a paisagem
entre o sopé dominante
e a planície súbdita.
Agitam-se as mãos
enquanto não sobem ao sopé
enquanto não apreciam
o quadro montado num pedestal
a proeminência da varanda alada
mesmo que dê o rosto aos ventos iracundos
e nela todo o frio imponderável
se faça resumir.
Não saberei
se o sabre delicodoce
se pode desembainhar pela imperial pose;
saberei
que de tal ufanar
se esvaecem as veias de sangue 
e em frivolidades arcanas
tudo se decompõe.
A sorte do penhasco
não é a altivez;
não é a cumplicidade com o céu
ali mais junto das mãos 
quase como se num pequeno salto
fosse dissolvida a diferença.
Não cuida,
o promontório,
de assustar os demónios com mitos seus
nem cuida,
outro tanto,
de renegar os mortais que se enfeitiçam
e dele querem exemplo.
Ele há tanta prece,
tanto milagre compósito 
nos interstícios da desrazão,
que o sopé assim vistoso
não pode recusar o estatuto.
Agradeça à geografia
(ou a deus, 
para os que assim quiserem)
o sortilégio da sua centrípeta e altiva
posição.

#643

Perguntei ao sonho
quantas luas eram sua esquadria;
disse-me estar à espera
que a luz se cindisse na candeia.

4.7.18

Morte

Não sei nada da morte. 
A não ser o medo. 
Sinto-me acossado pela morte 
através da morte 
de que me chega notícia. 
A morte dos outros, 
a morte que também me assusta, 
devia ser uma lição. 
Uma lição de vida. 
Para dissipar o significado do tempo 
e assim tê-lo na mão. 
Sabendo que o dia nascente 
é o que está à mão de semear. 
Sem importar
se vem o dia depois. 
Sem importar
se é breve a vida. 
Pois se ela for tutelada 
pela imaterialidade do tempo, 
não se mede pela quantidade. 
A morte devia ser uma lição de vida. 
Para dela sabermos fazer um festim. 
E através da vida, 
esconjurar a morte.

Douro

As minhas mãos sabem 
do aroma de um corpo.
São tutoras de um mapa
nas entrelaçadas vozes de um coro.
Nos raios emergentes da alvorada
a maresia levanta-se na frontaria 
e não sabemos 
do paradeiro dos escombros
dos vultos furtivos;
só tomamos conta
do verbo que sinaliza o despojamento
em estrofes com sílabas dedilhadas
num fundo sem fundo
onde somos património imaterial.
Não é de salvação que se trata;
anotamos num caderno envelhecido
as palavras em falta
mesmo que sejam inventariadas no instante
e delas só sentimos falta
por delas ter havido lembrança.
As gotas do orvalho
desenham diques no vidro da janela;
podíamos certificar
que usando as gotas do orvalho
escrevíamos as palavras em falta
num lado da janela
enquanto na outra metade
combinávamos as palavras sortilégio
as que se soltam do ouro dos nossos dedos
matricial aroma do desejo
no desembaraço dos sentidos hasteados.
Podíamos 
açambarcar o resto da manhã
na quimera à nossa mercê
cingir os corpos em forma de pétala
balbuciar o diadema em transgressão
ou apenas 
capitular no sono heurístico
e na pele dos sonhos 
erguer o sonho mais alto
de que somos curadores únicos.
Diríamos o que apetecesse
contra as convenções
contra os levantamentos 
dos insuspeitos velejadores da decência
a favor da vontade 
da soberania da vontade
sem contracenar com vultos intrusos
e, em total deslimite,
em total inimputabilidade das regras,
diríamos 
como se soletra o amor.
Só para termos mnemónica
e dele tirarmos o alvará centrípeto
as cores imorredoiras
a tábua rasa onde compomos o devir.

#642

Sob os auspícios do lume aceso
o corpo aclarado na fogueira
na noite das rosas vertidas no colo.

3.7.18

D. Sebastião, outra vez

Um garfo hasteado
na gutural encarniçada
ferimento voraz na praça cheia
e, ato contínuo,
um faquir engole os garfos todos
não sobejando do crime prova.
Nem por causa da praça cheia:
a multidão estava distraída
com os néones e o cortejo de solenidades
inebriada com o peso grave da pátria
assim recolhida na praça da grandiosidade
e, todavia, 
aninhada num fausto sem provimento.
O delfim está ferido de morte:
o garfo cortou a gutural
e o sangue abundante 
inundou o chão da praça.
O povaréu não dá conta.
Pisa o chão ensanguentado
como se estivesse a agredir o delfim prostrado
em seu leito de morte 
– caso a populaça desse conta
do chão sanguíneo que pisa.
No dia seguinte, 
véspera de outra solenidade,
a multidão recolhida em seus aposentos.
Era o funeral do delfim
e o fim da esperança da pátria inteira;
era como se o delfim fosse a encarnação
de um rebatismo da pátria
e nem dissidentes houvesse 
para desmentir o oráculo em cal viva.
Maldito o faquir
que perpetuou o mito sebastiânico
e nem teve coragem de continuar vivo
para em julgamento 
dele a pátria se vingar.

#641

O idioma dos chacais
que às vezes apetece abraçar.
(Não fosse a denegação da barbárie.)

2.7.18

Correspondência

O correio 
na maré que rasa
os sentidos.

Cartas abertas
o lacre sem bojo
nas ameias tardias.

Chapéu de gola alta
na apanha do salitre
de juras sem contrato.

A nuvem
assobia pelos pássaros
no teatro sem audiência.

A estrela sem brilho
casa com a montanha
modesta é a boda.

Anoitece
na manhã assaltada
no campanário sem castelo.

O correio resgatado
de ladrões sem siso
como garrafas de náufragos.

No meio do mapa
o estiolado gato
depois de vida em desfrute.

Ao lago
os haveres sem dono
num ecuménico pesar.

Um garrote
segura as veias
contra o açambarcado navio.

Destilam-se
as palavras que se esperam certas
no nó górdio do impasse.

O selo de ouro
no furibundo arrependimento
em golpes exatos de esgrima.

A ponte atravessada
com bilhete caucionado
o quadro sem esquadria por tenência.

Da falésia
o horizonte mais alto
murmura a estrada mais nobre.

#640

Nesta chuva de chumbo
as lágrimas de julho 
num verão pela metade.

1.7.18

O domínio dos sonhos

A voz inexorável
promitente
murmura os poros da pele
enxameados de mel tardio.
Documenta um pesar infundado
a voz trémula
como se estivesse 
transida pelo frio glacial.
Admite o arco-íris como medida
e ajeita-se à cor de um poema
como o pássaro tem o voo como sextante.
À noite
a voz, já cansada,
emudece.
Engolida pelo sono
dá lugar ao fértil império
onde os sonhos são suseranos.