30.1.19

#897

Este apoteótico amanhecer
o mel tingido de uvas
e um perene conforto no regaço.

29.1.19

Sorvete de inverno

A litania dos escorraçados
os vultos seráficos açoitando o riso
por dentro das nuvens
onde tudo é chumbo
onde nada se avista.

À margem
uma frase escrita à pressa
a caligrafia imprecisa
o eco forte de um sino válido
na maré sem estribeira, transbordando.

À luz clara
uma loa sentida
a juba do tempo açambarca o verbo
e todos vítimas de todos
na anulação matemática da culpa.

Que serventia, a convocatória dos escorraçados
se todos se embebem na purulenta sede
e amarelecem na palidez gasta
vestígio de nada
no contragosto de tudo?

Desfaçam os paredões hasteados
contrariem os pederastas da razão
tirem o fio de prumo às raízes fundas
no caldo mestiço dos verdugos
em contemplação dos rios sem rédea.

#896

Domesticada a época
sei que a portagem se abre
aos inspirados uivos da matilha.

28.1.19

Meia-idade

O rosto visível
na sombra dos versos
chama a voz a desmedo
nas sílabas que se desprendem da boca.
Sem a ferrugem do gasto
na mão das palavras casuísticas
e, porém, acertadamente temporais,
esboça-se uma dança sem par
o colóquio antes da tarde
no sopé do peito ufano
autor dos versos escondidos.
Fossem os sufrágios da mesma têmpera
as manhãs um riso sem fim
e as rosáceas não murchassem com o frio;
fosse a jura como a maldição
e as campas sem corpos
a tinta perene, na recarga da caneta,
e os pulmões não cessassem a função;
fosse o labirinto o escol da modéstia
e os furtos, distrações sobre a maldade
as vestes nunca gastas
e os pirómanos transfigurados fogueteiros
à passagem dos comboios fantasmas
nos apeadeiros perdidos
nos rios sem nascente por demarcar
e as guitarras uníssonas ciciando o silêncio
contra o jorro dos geiseres pespontados
no olhar insaciável.
Creio ser pouca a ambição
se segredar que quero tomar posse
do mundo inteiro,
dar à sua volta quatro voltas inteiras
e atar a angústia esmaecida 
nos contrafortes da loucura  
como é privilégio dos argonautas sem sono.
Quatro
as voltas ao mundo
sabendo tua mão gémea da minha.
E depois
na mealha do matinal vento quente
segredar ao teu ouvido
um punhado de palavras quiméricas
antes de sabermos por onde entrelaçar os corpos
e na bica dos suores
escrevermos as estrofes vadias
os preparos do despreparo
a loucura em que fermenta inveja
as orações sem deus outro se não nós mesmos
as mãos juntas
cúmplices
as bocas desenhando-se uma na outra
e toda a fome descontada no singular amor.
Com tudo à mão de semear
as armas que não precisam de guerras
as armas com que terçamos os opúsculos fartos
património que só nós sabemos
tutores das almas que apetecer.
Bebo uma gota do suor
na curvatura levemente ruborizada 
do teu dorso
e sei-a do sabor do meu.

#895

O campo de lava,
rugas que mapeiam a pele do pescador
envelhecido sob o acinte da maresia.

27.1.19

Criação

Apanho a rosa murcha
um vestígio do chão desordenado.
As pétalas caducas desprendem-se
ungindo as minhas mãos.
Cobro da tarde soalheira
o êxtase perdido nas migalhas da luz.
E depois
sopro no ombro da noite
à espera que seja mensageira.
As costas das mãos estão suadas.
Bebem o inverno timorato
e inocentam as árvores nuas
desprotegidos cadáveres 
à espera de um fôlego.
Oxalá se aqueçam os corpos frios
na fogueira que a minha boca acende.

#894

Identidade (também)
por antítese
dissemelhança do que me despraz.

26.1.19

#893

O osso sangrado
a inviável inocência
despedaçada nas breves ruínas.

25.1.19

Torto por linhas direitas

As calendas
o processo reescrito
oximoro vestido sobre o corpo
as regras viradas do avesso 
– e a exceção entronizada regra.

Não sei se
um módico de filosofia do direito
ou um mais geral entendimento do rosto político
é dilema hermenêutico
de quem assim transige
e muda a cor da exceção
para lhe dar o sabor de regra.

#892

Tirando o siso da equação
a matemática volta a respirar.

24.1.19

Logo

Admito as lágrimas
no largo que é seu lugar
não sem advertir os dias lunares,
que convocam lobos famintos,
que se pressentem vozes radiosas
versos de poucas falas
as sílabas compostas no tear arcano
sem notícia da ferrugem
nem a oposição de comezinhos oradores. 
Na conta corrente
raspo o salitre desprendido do mar
e os navios em espera são testemunha,
notários involuntários 
por sua envergadura ser sobranceira 
à minha demanda. 
Não noto a presença de marinheiros
(devem estar algemados ao sono);
naquele momento
sou o único marinheiro em redor
com a vantagem
de não responder perante comandante nenhum.
Hei de fazer com este salitre
um tesouro inteiro
e dele darei conta aos trovadores vindouros.

#891

O crédito malparado
paga multa de estacionamento?

#890

Subo pelo vento
heurístico impulso
na montanha não crepuscular.

23.1.19

Mergulho

Trago o uniforme em dia
não apareça, sem marcação, vistoria
e eu apanhado em falso. 
Era assim, dantes,
quando era impressionável
pelas impressões de fora. 
Agora
tenho a ideia de ser juiz de mim mesmo
não à espera de veredictos de juízes de fora. 
Trago, se preciso for,
indumentária não cuidada
ao acaso dos humores que se sopesam
na virtude do momento,
andrajos se preciso for
(descontado o exagero). 
O espelho estilhaçado fez os demais obséquios:
gratifico o desleixo
uma possível medida da liberdade
o inenarrável prazer de celebrar
o ar respirável que circula em minhas veias
sem estorvos e contaminações
sem olhar às coisas 
se não através do meu olhar. 
Há quem diga
em pungente tom censório
que se trata de egoísmo lesivo
possivelmente uma aproximação à sociopatia. 
Devidamente registado. 
O sono 
continua a ser safra meridional,
o astuto sinal da medida que conta
na equação que vem nos (meus) livros.

#889

Quando se pede tempo de empréstimo
não chega a vontade ao entardecer,
sitiada por adiamentos que definem o nunca.

22.1.19

O vinho

Conferência de imprensa. 

Um ruído de fundo
o vinho em espera
tomando forma. 

Burburinho.

O orador entra em cena. 
Nervoso. 

Os dedos trémulos tingem as folhas;
talvez a mnemónica fique estrábica
e a mensagem, adulterada,
seja treslida. 

Ou não. 
Uma dupla negativa anula-se
e a prédica é não intencionalmente percebida.

Os ouvintes
na sala e no refúgio das televisões
sempre têm o vinho
ainda em espera
não capaz de azedar 
no sufrágio dos contratempos. 

Findada a tumultuosa prédica
não há demandas. 

Estão todos
com o sentido no vinho. 

De pior cepa não será
por temível que seja 
a mistela servida.

#888

Não percebo por que é pejorativo
lavar a roupa suja. 
Os costumes
detestam a roupa lavada?

21.1.19

#887

Vingo a alma do tamanho dos mares
e um pequeno tudo tenho
em erupção no peito:
o bálsamo do amor.

Virtudes

Do leilão de apóstrofes
não se livram os apóstolos.
São as tendências da moda. 
Os apóstolos 
teimam na altivez
e discorrem, demoradamente,
sobre as virtudes da virtude. 
Arregaçam as mangas
e no conciliábulo de imperativos categóricos
ensaiam certezas à prova de bala. 
Fazem apostas entre si,
os apóstolos,
para estancar a hemorragia das ideias,
tão fecundos nas hipóteses de virtude
que candidatam ao lugar cimeiro
das virtudes. 
Digladiam-se uns com os outros
quando as lentes 
depuram virtudes em oposição. 
Outros corroboram-se mutuamente
na linhagem das mesmas virtudes,
apenas misturadas 
por divergências de pormenor ou de estilo. 

Oxalá
uns e outros
não tivessem de esbarrar
nuns exilados
uns reprováveis mastins que desalinham,
categóricos desmilitantes de tudo
que indeferem virtudes 
– indeferem as virtudes. 

Por um momento
até os apóstolos divergentes
convergem numa batalha farta:
dar luta sem quartel 
a esses desapoderados
essas más influências
demoníacas paisagens que convidam
à insurgência. 

Não contavam
com a heresia das virtudes
e sabem do sono hipotecado
só de saberem destes hereges. 
Num salto no tempo
temem a anomia
e, quais santidades vilipendiadas,
unem-se em aliança virtuosa. 

Meio caminho já foi andado
para o deserto das virtudes. 
Que não há de ser
degredo
(em negação dos virtuosos). 

#886

História de um eclipse:
a lua foi resgatada
da (sua) vergonha.

20.1.19

Curadoria dos sonhos

Não sou dos meus sonhos
e por assim ser
equaciono errado serem os sonhos meus. 
Interpelo os sábios
se adejam intrusos
na morada dos sonhos
de modo que eles,
em habitando em meu sono,
sinto serem incursão exterior,
desligados de mim. 
E, todavia,
sou eu que os sonho,
esses sonhos contrariados. 
Está frágil teia onírica
enreda-me
deixa o sono nos contrafortes do inverosímil;
mas não são feitos dessa matéria,
os sonhos 
– um pulcro desideal 
fantasia em febril elucubração
ou pesadelos que pesam 
na fronte do dia sucessivo?
Ainda estou para saber
se os meus sonhos são meus 
se não são de minha tutela.

#885

Cessar fogo. 
À falta de generais.

19.1.19

Perdidos e achados

Não sei que mapa me deu.
A constelação obsoleta
traduz do latim.
O orgulho do pai
trespassa o olhar dos filhos
em lotarias sucessivas sem enredos
na escolta dos nomes achados.
Deixaram de ser perdidos
o paradeiro devolvido à casa da partida.

#884

Escreve os nomes que te faltam
e deixa a folha em branco.

18.1.19

Noite insubmissa

Sentinela
o sono adiado
a flor noturna aprisionada
e um sussurro que ecoa no luar.

Aprecio
o silêncio da noite.
As horas vadias
o tempo que não foge
a baixa densidade populacional
as ruas vazias
o cheiro do asfalto
a litania dos ruídos sem paternidade.

Aprecio.
Pois foram escassas 
as noites neste preparo
quando o sono ganha seu império.

Aprecio.
pela raridade
das noites sem sono.

#883

Deles o aparato:
imprevidentes epicuristas
exibindo a soberba sem fundo.

17.1.19

Metáfora

Deixa-me uma metáfora
o aveludado rosnar entre vírgulas
o verbo lúgubre bolçando páginas evitáveis
no alpendre de onde se avista 
o cais esquecido. 

Permite-me a delicadeza
do favor não configurado
e no eclipse deixarmos a carne fervente
enquanto juram os ministros da lassidão. 

Desconheço a matriz
o volúvel ponto de Arquimedes
a desconstrução de todas as construções
num baú de desperdícios em forma de comendas
e exasperados penhores das solenidades
em seu fulgurante despenhar. 

Pudessem as auroras 
tingir-se do amarelo do ouro
em fábricas abandonadas,
tecidas por artesãos senescentes,
e a provecta idade,
sucedâneo de uma perícia singular,
não seria o venal desperdício sem valor.

Deixa-me uma metáfora
a uso;
uma que seja o retrato claro
o tapete em forma de filigrana
o poema reduzido a um punhado de estrofes
síntese perfeita
do muito que ficou por dizer. 

Uma metáfora:
do silêncio apalavrado.

#882

Atravessei portas
(as blindadas, até)
como se não tivesse saído 
do mesmo lugar.

16.1.19

Simplesmente

As noites impossíveis
cadastro cingido à alma
protestam um lugar.

Desde o nevoeiro hirsuto
uma voz 
teatraliza o fôlego necessário
o cónego desprendido na literacia dos sinónimos.

Habitam as casas vazias.

Acalmam o vinho no cálice em espera.

À desdita 
o rosto oferece o avesso
no imperscrutável arrojo dos imberbes.

A carta não tem remetente.

Na roda-viva do crepúsculo
entre acácias serenas
e o mar como pano de fundo
as mãos são coreógrafas da paisagem,
arquitetas.

Se fosse sabedoria a espessura dos instintos
deitaríamos à janela
os despojos infecundos
a praia cinzelada a carvão
os denodados mastins da volúpia.

Ficávamos
com a volúpia
toda para nós.

Egoisticamente.

#881

(Variação do #696)

Eternidade.
Má eternidade.
Maternidade.