15.8.19

#1153

Trabalho involuntário.
Alvoroço num descampado.

14.8.19

Névoa

Alguma é a névoa
esparsa
levemente agiganta-se
açambarca os corpos.
Custa respirar:
as gotículas
punhais estreitos
nos confins da lucidez
desembainhadas sobre a dor.
Alguma é a névoa
agora cenário completo
como lágrimas perdidas
ungidas pelos refratários da mudez.
Estes arquitetos
vastamente incógnitos
doenças hasteadas em muitos
podiam perder-se nos interstícios
da névoa.
(Que nada se perdia.)

#1152

Quando estou num hotel
podia pensar:
quantas (e quais) celebridades
vão dormir na cama em que estou.

13.8.19

Selo

Arregaço os olhos
que tem uma enxurrada de mundo
a querer que o meu olhar
queira dele saber. 

Deito a pele ao vento sem freios
que o vento suplica
que minha pele se embeba
nas latitudes por ele demandadas. 

Mergulho no mapa aberto
sem medo que nele esteja maré viva
que o mapa se diz sedento
da minha insaciável sede 
por dele saber os poros máximos a haver. 

Aconchego na boca
os sabores da geografia sem fim
por dela ter sabido
que há muito mais por arrotear
e em minha saliva apalavrar. 

Entrego a alma às páginas por abrir
que delas sinto miríade de apetites
e por elas sei
que me entronizo seu sepulcro
no diadema farto que se liberta de meus dedos.

#1151

As outras vozes
fala com lentes
sem o abismo de um espelho.

12.8.19

Desembaraço

Espero na passagem de nível.
O pólen adeja sobre quem espera
numa leveza que parece feita
de flocos de neve.

Ouço um tonitruar.

Não são as carruagens
em seu metálico cavalgar.
Podia ser um trovão;
o céu intensamente azul
aconselha a não considerar a hipótese.
Podia ser alguém
impaciente pela espera, 
vociferando.
Podia ser o rumorejo de uma romaria
não distante.
Podia ser um marujo
em seu pranto de desamores.

Não tenho pressa.
Um diamante em bruto
está de atalaia em casa
e eu sei que sou feito de ouro
por saber que está no pedestal
de que sou curador.

O comboio demora-se.
Não tenho pressa
pode demorar o tempo que for.
Já soube de vésperas passadas
que a impaciência é improfícua insurgência 
o mal tenteado esboço de um nada.

Não cheguei a saber
a que sabia aquele estampido.
Não interessa:
existe um lugar
com as palavras à minha espera.

#1150

À consideração superior:
o trato cortês
que a boçalidade não combina
com tamanhos pergaminhos.

11.8.19

Inquérito à História

Quantas vezes
a História não é mais
do que o rimmeldos acontecimentos?
Os homens mentem
e com as suas mentiras
mente a História que conta.
Ficamos reféns de uma História
que não sabemos ser mitómana?
Será 
a ausência da História
critério melhor?
Será 
a História confiável
se não sabemos 
se ela vem lacrada
pelo selo de quem a traz 
em intencional papel 
de arquiteto do acontecido?
Não se diga
que devemos virar o rosto à História
que uma parte da identidade 
exige da História conhecimento.
A Filosofia sobrepõe-se 
ao enquistado dos historiadores
às imperativas verdades 
à prova de interrogação:
nada está a coberto 
das interrogações heurísticas
nem a História cimentada 
pelos dedos de artesãos 
não se sabe se mal-intencionados.

10.8.19

#1149

A chave 
desfia a farsa
sob a sentinela do vento.

9.8.19

Consternação desenfreada

Alguém disse,
em jeito de alarmada advertência: 
tiraram as pestanas ao algoritmo. 
Subiram as lágrimas 
talvez furtivas 
aos calcanhares dos bispos 
e os clérigos afocinharam os cotovelos
nas praças vazias. 
Uma equação 
bateu com o focinho no emparedado 
quando soube da avaria do algoritmo. 
Nesse dia 
fez-se constar
que os matemáticos estavam distraídos
(talvez
em conciliábulo com o clero) 
e não puderam sondar
a roda dentada onde se dissolve 
o peito sem mágoa. 
Se ao menos 
pudessem os dedos cantar; 
seria a música a figura de estilo 
dos contumazes? 
Enquanto o algoritmo
continua em paradeiro incerto 
as páginas enchem-se de especulações. 
Tomara que os matemáticos 
voltem a marcar terreno, 
assim como fazem os gatos com cio.

#1148

É deste lugar que me chama
a chama no fulgor dos olhos
e o teu nome, 
sempre aceso.

8.8.19

Conta corrente

No bolso
guardo minha sentinela
em vez do temporal em febril tumulto.
Soube de Eros
e passei a saber de mim
no estorno embuçado em estrofes viris
só para resolver pendências 
com a hermenêutica correta.
Não houve alarme a soar:
deixo a soberba para as capas mesquinhas
onde se deificam
pequenos estilísticos de auto-imaginada
grandeza.
A minha sentinela
resguardada no bolso escondido
conta-me histórias.
Não procuro incarnar as histórias
e muito menos
as personagens que a elas pertencem.
As vozes telúricas
compostas nas caves que se pressentem no chão
estão a contar com as histórias contadas.

#1147

O discípulo
nunca deixa
as fraldas.

7.8.19

Destacamento

Não é nesta roleta russa
que se despenha o corpo.
O sonho sentado
é a tela sem fundo
o fumo à procura de tomada
o tingido rosto faminto,
um paradeiro incerto.
Podia ser apenas
uma montanha
russa,
sinónimo de menor ousadia.
Mas
quem precisa de altos voos
se é no chão enraizado
que filia a segurança?
Assim como assim,
roleta russa:
às minhas mãos
nunca vieram as rugas de um revólver.

#1146

Baixo relevo
orografia do corpo teu,
o mapa que habito.

6.8.19

#1145

Os olhos
(que)
não dizem
nada.

Instalação

Fora de horas
ajeito o cabelo na rima da maresia
e dou às vezes sem vez
sua oportunidade. 
O forasteiro desejo não se esconde
do palco sem inventário
e sei 
que entre o dia e a noite
se sufragam os sonhos nem sempre malditos
as luzes desembaciadas
o insólito murmúrio do vento desamparado. 

É fora de horas
que me sinto,
muitas vezes. 

Não significa 
que esteja a destempo
ou
que no mistério dos calendários
seja destemperada medida. 

As sílabas amontoam-se 
contra os pesares inúteis. 

Desenganem-se
os cultores da comiseração,
que aqui não têm praça:
a última coisa que seria admitida em ata
era a gratuita dor em forma de sangue vertido
o justo convocar do eterno,
o mirífico
inacessível.

Ninguém definiu
que os sonhos eram proibidos. 

#1144

O rastreio da lucidez
desmente
a memória de si mesmo.

5.8.19

#1143

Não morremos
no estampado verbo nosso,
imorredoiro.

Nomenclatura

Calmamente
endosso o dia restante
ao perentório exacerbar da mudez:

há alturas
em que o silêncio 
é a melhor poesia. 

Sem os archotes da sensatez,
diz-se por aí,
os atos são a tresleitura de seus patriarcas
e não é de estranhar
que sucumbam em suas interiores armadilhas. 

Calmamente
recuso o cintado manual da sensatez. 

Sinto
(e concedo que posso não estar enganado)
que fui vítima da sensatez,
várias vezes,
da minha e da de outros. 

Chamo as ferramentas ao meu uso. 
Tenho de afrouxar
os parafusos da sensatez,
à espera que jazam 
espalhados
e sem remédio.

#1142

Disse saber
com que linhas se cozer.
Não sabia 
que usara gastronómico verbo.

#1141

A mão estrangeira
no árido mapa sem rosto
incendeia as bandeiras insubmissas.

4.8.19

Jam session

Deixamos para depois de amanhã
e no rosto do improviso
arranjamos a morada no raiar do sol.
Poderá ser a morada esperada
para palavras sem paradeiro
e diremos de nossa empreitada
ser o jovial acordar de uma noite meã.
Terçamos as palavras ao acaso
só para ver o desfile de frases,
o que têm para nos dizer.
Não guardamos o produto.
A sua solenidade convoca a memória.

3.8.19

#1140

Vassalo ou vândalo
mas não necessariamente
por esta ordem.

2.8.19

Noite fugida

Curto-circuito na noite. 

As trevas capitularam
indefesas 
perante a bucólica luz 
em erupção. 

Não havia ninguém para ser
zelador da noite.

Quase órfã
esticou-se ao comprido
no silêncio pedido de comiseração. 
Os boémios não estavam atentos

(viviam a noite por dentro da noite,
não deram conta do seu esgotamento)

e os demais estavam reféns do sono,
não podiam acautelar as dores da noite. 

Alguém pressentiu
que a insólita luminosidade
era a vaga a que tinha admitida
a noite branca,
já não exclusiva de paragens nórdicas

Também estavam possuídos pela quimera:
mal o verão se foi consumindo
em sua outonal decadência,
logo a noite recuperou o seu viço. 

Já era outono
quando alguém interpelou a noite
querendo prestação de contas
pelas tristes figuras
quando a noite covardemente pedira
comiseração. 

Desviou a conversa,
a noite,
sem coragem 
para admitir as suas fragilidades.

#1139

Não condeno nada
a não ser
as condenações dos outros.

1.8.19

A chave do labirinto

Como se tratasse
de uma belle époque
a vindima rigorosa dos meus esteios
e em casta selecionada
estivesse de vigia
no promontório de onde assento as medidas.
O apuro dirá se foi merecido
o dia em pródiga demanda.
Alturas há
em que deixo ao de fora de mim
o juízo razoável.

#1138

À consideração dos eruditos:
sentar na pedra angular
não será 
a mais confortável das empreitadas.

31.7.19

Charlatães que oferecem apocalipses em saldo

De acordo com as profecias
amanhã 
é outro dia.

Quem diria?

Nostradamus de fino recorte
escaldaram neurónios a ditar o apocalipse
e o dito anda a ser procrastinado 
– quem comete tamanha aleivosia?

Caso para predizer:
o maldito apocalipse 
é poltrão 
– e não é alegoria.

Ou
pode dar-se o caso
de serem charlatães aqueles Nostradamus
ou profetas de trazer por casa
que não passam de fancaria.

Pelo caminho
os amanhãs destrunfam
os Nostradamus desencartados
(quem mais o faria?).

#1137

Valetes que se fazem passar por reis.
(Não aprenderam nada
quando eram peões.)