15.12.20

#1833

[Crónicas do vírus, CDV]

 

Aprisionados

numa noite imorredoira

e nós,

atores do pesadelo encenado.

14.12.20

Traviata

Trago a candeia ao peito

oh!

fazenda minha em vez de sangue

sem sombra da quimera suplicada

apenas o desterro

onde parece que já não sou

onde perecem os fantasmas aviltados.

Cubro com os olhos,

sentinela da noite fugitiva,

as flores adormecidas.

Espero.

Espero que seja madrugada

e os olhos desembaciem a manhã

e aos teus pés me despoje

em toda a nudez impura

réu de um luar qualquer

à espera

à espera da tua mão

e de um lugar.

Vejo um piano

sozinho.

Um piano

à espera de mãos

e eu que trago uma candeia ao peito

condenado ao silêncio

sussurro a música que não sei compor.

Pois no desterro

só há a mudez das montanhas frias

o penhor dos medos desimpedidos

os terríveis monstros que encarvoam o mar.

Mas o piano 

espera pelo luar 

em forma de sortilégio

e espera 

por umas mãos sem corpo

as pétalas

desassombram as puras notas musicais

até que tudo seja 

a síntese da música

nas esperas alinhavadas pela manhã boreal

e ao pequeno-almoço

as madressilvas perfumem o quarto.

Voz a voz

o murmúrio

com a lucidez dos olhos falantes.

Empenho tudo:

não quero nada

a não ser a nudez de mim

escondida

a não ser de ti.

#1832

[Crónicas do vírus, CDIV]

 

Sinto falta

de bocas e narizes

(pese embora

o precípuo da fealdade).

13.12.20

Onda

Deviam fazer

o mapa das mentiras

e depois atirá-lo

às águas mudas do oceano.

 

Deviam esconder

o salitre embutido no cais

e depois guardá-lo

na varanda das verdades.

#1831

[Crónicas do vírus, CDIII]

 

O futuro

não é aquilo

que queremos que seja.

12.12.20

Obra feita

Obra feita,

dizia

enquanto o rosto

se tingia de vaidade.

 

Ninguém

era capaz de inventariar a obra

e de nela traduzir

utilidade.

 

Obra feita,

dizia,

mas apenas nas suas

elucubrações.

#1830

[Crónicas do vírus, CDII]

 

O esquecimento

deste ano

não cairá 

no esquecimento.

11.12.20

Faqueiro

Não compro

o remorso

a navalha arestada

desembaraça o abismo

clientelar.

 

Não adorno

a epiderme

o magma circunstancial

devolve a água

ecuménica.

 

Não desconfio

do estuário

o desencontro pueril

encomenda a estrofe

promitente.

 

Não sublinho

o estudante

a profecia órfã

confirma a impureza

fortuita.

Pot-pourri

Da tangerina

perfumei as mãos

contra as tardes meãs.

#1829

[Crónicas do vírus, CDI]

 

Um projeto

de vulnerabilidade

– ainda há dúvidas

sobre o nosso devir?

10.12.20

Albergue

A instauração dos desmodos

não se afivela na transgressão

onde deixo de saber da mão certa

e, rebeldes, as palavras habitam

diferentes lugares.

 

Podia reinventar a pontuação

mas não é apetite que me dê;

deixo ao sufrágio sem nomes certos:

a vigilância sem ordem.

 

Sei

de viva voz

(a minha, modesta)

que no bairro alto

habitam as páginas desamestradas

os lobos escondidos do dia

poetas sem armadura

nem segredos.

 

Povoam o mais alto bairro

em marejados pregões

despindo a camisa mesmo sendo inverno

chamando um novembro quimérico 

– ou então

deitando-se

ao implacável escrutínio das massas

enjeitados

como amantes da loucura,

irremédios,

marinando no fino recorte do entardecer. 

#1828

[Crónicas do vírus, CD]

 

Depois da peste

saudades do passado

ou reaprendizagem em contínuo?

9.12.20

Aos tempos depreciados, a batuta da História

Povoei 

a pedra-angular

contra o centrípeto estilhaçar

das furnas involuntárias.

Pelo meio de tumultos

abracei os olhos às pontes firmadas

dei-me como garantia

às prevenções contra os lodos em estima.

Desembaraçado

o véu desagrilhoou o obscurantismo

e trouxe ao estuário

um horizonte interminável

as barcas todas em trânsito afável

e o rio

habitável.

O rádio escanhoa o dia desafeiçoado

as notícias debitadas

soam como palavras vazias

uma gramática arcaica

desusada

e a voz do locutor 

como se a de um louco se tratasse

em contínua vozearia,

demencial.

Que as migalhas do pretérito

não sejam desaproveitadas:

Urge

um choque térmico de História

com suas histórias

benevolamente esbofeteadas

nos rostos imberbes 

dos néscios.

#1827

[Crónicas do vírus, CCCXCIX]

 

Avant la lettre,

o oráculo vencido

na transfiguração do medo.

8.12.20

Socalcos

Hoje

converso no parapeito

onde se abriga

o mito sem rosto. 

Desalojo

a incubação da sementeira

os olhos rasos

já assombrados

num limbo sem verbo. 

Recebo

na morada da janela

o beijo sem fome

e junto as mãos

no parapeito da moldura,

à espera 

de um tempo desembaraçado. 

#1826

Crónicas do vírus, CCCXCVIII]

 

Tentativa e erro:

o logradouro dos regedores.

7.12.20

Às prometidas dietas

O genuíno garfo

saltando as searas outonais

exara o salvo-conduto

dos fantasiados ascetas

que derruem soldados.

Daqui a dois bocados

adia-se tudo:

as claras em castelo

não aconteceram;

é preciso pedir (outro) favor

aos galináceos.

Nada disto seria assim

se o bolo tivesse sido comprado

já feito,

ou se, sardónicos,

fizéssemos dieta;

mas somos hienas de nós mesmos

e esquecemos.

#1825

[Crónicas do vírus, CCCXCVII]

 

Num lampejo:

o pesadelo duradouro

a sair da sua hibernação.

6.12.20

A senhora manca na fila do supermercado

Na fila do supermercado

uma senhora manca

manca

e passa à frente da fila.

 

(Destas coisas modernas,

da prioridade para pessoas

com handicaps).

 

Na fila do supermercado

uma senhora manca

paga as compras

e sai

sem ser manca.

 

(Os comentários, 

impregnados de moralidade,

ficam por conta do leitor.)

#1824

[Crónicas do vírus, CCCXCVI]

 

Deixamos os aplausos

almiscarados

em memória futura.

5.12.20

#1823

[Crónicas do vírus, CCCXCV]

 

Uma mortalha de suspensão

(ou um ano inteiro 

na jaula de um parêntesis).

4.12.20

Inversão de termos

Matéria-prima:

o azulejo apessoado

por dentro do olhar antecipado,

em estrofe tutelar

do provérbio em deserção.

A voz do xilofone

ouve-se ao longe.

O murmúrio da multidão

também.

As sílabas sobrepõem-se à maresia

em combate terçado sem gente

apenas no sortilégio das palavras:

das palavras que se embebem

no mar demiúrgico.

Umas, 

malditas,

aventuram-se

como primas da matéria fulcral;

outras, 

mal ditas,

oferecem-se ao ultraje dos ínscios

e constituem-se desperdício,

tumulares.

Os ladrilhos

tocam ao de leve com os dedos

nos olhos extasiados dos forasteiros.

Os nativos,

distraídos,

são os forasteiros

de sua própria cidade.

Não sabem 

do paradeiro dos azulejos.

#1822

[Crónicas do vírus, CCCXCIV]

 

Em choque frontal

utopia

e nostalgia.

3.12.20

Educated guess

“An educated guess”

combina o sexteto boémio

antes que pudesse ser

binómio.

 

E não pode ser apenas

“guess”?

Se cair o adjetivo

a “guess”

fica deseducada?

 

Ecoa um certo património

a balsa que resguarda

tremeluzentes nónios

que afiançam mesuras

um burburinho.

 

Uma voz escondida

em tom de repreensão

adverte:

os cavalheiros ficam a dever

aos pergaminhos

se não forem corteses;

em remate

(sentenciou a voz fantasma)

empregue-se o “educated”

como complemento de “guess”.

 

(Antes que os cavalheiros

deixem os pergaminhos em olvido

e trespassem

as portas do lupanar.) 

#1821

[Crónicas do vírus, CCCXCIII]

 

Espectros

palavras pequenas

a loucura do medo.

2.12.20

O país que não tem sobremesas

Metaforizava

a levedura extática

sem supor que na escotilha

vegetavam espiões

disfarçados de chefes de cozinha.

Uma voz troou

como se acabasse

com a feição dos minutos

e disse

de mote próprio:

este 

é o país

que não tem sobremesas.

As pessoas despacharam a proclamação:

um país que não tem sobremesas

não merece ostentar 

à lapela

o nome de país.

Foi quando um eremita,

conhecido citador de poetas

intelectual de velha cepa

(sem, contudo, 

se lhe conhecer safra própria)

contestou:

um país é como os pais

só que sem o acento tónico.

E quem não conhece pais

que não pedem sobremesa?

Ficou estabelecido

ao cabo de aturadas negociações

que um país está dispensado

de inventariar sobremesas;

ficou registado em ata

que um país

tem direito à dieta.

Não metaforicamente falando.

#1820

[Crónicas do vírus, CCCXCII]

 

Como sabemos

se o pai natal é fidedigno

com as barbas embaciadas

pela máscara?

1.12.20

Distopia

A próxima guerra

preso ao meu pé esquerdo

um sacrilégio

talvez

aposta cega 

no túmulo sem nome. 

 

Amanhecem as sombras tiranas

debruçam-se sobre o corpo

madraço

e em sua meação 

atordoam-no. 

 

A próxima guerra,

uma sem exércitos

nem artilharia,

não deixará a saliva intacta.

Metafísico

Deixaram-nos aqui

sozinhos

(desamparados)

mas temo-nos

uns aos outros.

#1819

[Crónicas do vírus, CCCXCI]

 

As vacinas.

Ou

o corte epistemológico

da peste.