31.3.18

Skin deep

Como uma tatuagem
a tinta da China em pele minha
a tua pele.
Não a segunda pele
pele parte de mim
no estuário largo onde nos depomos
na filigrana forte dos vasos
onde o sangue nosso entra em combustão.
Recolho da pele funda
o eu que sou tu
fusão a quente
diadema incomensurável
avenida de perder de vista
o colo em minhas, tuas mãos
vinho fértil espreitando o calendário
promessa resgatada no peito quente
selada na mais funda pele
regada com a carne imparável de desejo.

#522

Whether the weather is better
talking the weather is whither.

23.3.18

#521

Sobre a falésia
sobra a emenda ajuramentada
a grande farsa.

22.3.18

Contador de histórias

Oxalá
as pedras perdidas
contassem histórias.
Oxalá
as pessoas por que passo
fossem histórias avivadas.
Teriam o aval dos curadores da memória
e apreciação bastante nos círculos demais.
Pois de histórias somos feitos:
no esgar de um sonho embaciado
no parapeito da imaginação agitada
na púrpura luz de que é feito o outrora
nos enredos, patranhas sem maldade.
Oxalá
as histórias contadas com arroubo
fossem a avença do tempo
e não houvesse lugar para ocupar o resto.
E dos corpos transidos
autêntica anestesia de tudo
se desprendessem
palavras fétiche
palavras armadura
palavras sem medo
palavras verossímeis
palavras serpenteadas
palavras
no estonteante precipício das emoções.

#520

Os olhos fundidos no mar
colhem a maresia
o lenço que enxuga as lágrimas. 

21.3.18

Corda desatada

Imitação sem fundo
os bolsos fartos do esquecimento. 

Não tira sono a morte
que nela o sono já não importa. 

Mordo as paredes da bondade
e aprendo a agridoce ingenuidade. 

Mantenho as teimas
na estrutura em escombros feita. 

Dos espelhos na penumbra
retiro os versos tumultuosos. 

Na linha contrafeita da vontade
configuração imprevisível de um devir. 

Anoiteço com a alma leve
assenhoreando-me dos gramas em conta. 

Devolvo ao corpo ganhos sem número
na recusa do implacável dia consecutivo. 

Amanheço sem mordaças
o apetite inteiro pela úbere do mundo.

#519

Metido no nevoeiro
diametral labirinto sem chave
da baça luz uma claridade mareia.

#518

Qualquer semelhança com a realidade 
é coincidência.
Qualquer coincidência com a realidade 
é semelhança.
Qualquer realidade com semelhança 
é coincidência.

20.3.18

#517

É esta roda demencial
imperfeição perfeita
síntese de tudo,
aplauso.

Paisagem

Recorto os dedos da paisagem
na água indomável do rio
no castigo indolente da pedra alcantilada
no sossego imposto pela genesíaca tela
o alimento que se dá aos olhos.
Da paisagem
recruto a pequenez de mim
por mais que a desenhe com os dedos túrgidos
por mais que de olhos fechados a cante
e nas estrofes vindouras tenha repouso.
Não reclamo elegias
nem inverosímeis enredos
ou fábulas pueris:
altar é o palco certo
uma escadaria ao desafio
as mangas sem cansaço
fotografias incessantes e, todavia, singulares
cada qual na protuberância de um lado
de um ângulo escondido do olhar
deixando
à paisagem desenhada ao longo da paisagem
o recobro em extinção das angústias.
Paisagem em postal belo,
sem o embraço dos homens,
apenas paisagem
no néctar da solidão
vertida nos claustros da convalescença.

#516

Vem nos jornais:
a primavera meteu greve
e as flores têm medo de não renascer.

19.3.18

Nihil obstat

Não pergunto nomes
não conto silhuetas
não fervo no restolho de trevas
não sei do verbo proscrito
não vejo as acácias moribundas
não antecipo a ilha furtiva
não tenciono a mortalha movida.
Não digo não apenas porque não
no sim que não é simulacro
apenas dupla negação;
e se as matemáticas regras colherem
uma dupla negativa
soergue-se no altar de um sim.
Não digo aos girassóis a hora do entardecer
não anoiteço no rumor das ondas
não tropeço no ciciar das rolas
não dou o avesso aos labirintos
não mereço o imerecido
não sou tudo o que nunca falei.

#515

Aprendi com o abismo
a saber cair
num espelho de água.

#514

Vi as horas a passar por mim
sem ter passado
pelas horas que passaram por mim.

18.3.18

Serviços secretos

Estoicamente
a palavra não reprimida
o desapalavrado silêncio
a esbarrar na estocada metálica. 

Indigência sem ramificações 
óculos perdidos no chão algures
sabendo
das áridas ideias 
no contraponto do mapa
na estéril luz amanhecida. 

O fogo
consome as pinhas apanhadas;
da sua crepitação
compulsam palavras mantra
uma metáfora metralhada
sob os auspícios
da irritante música bolçada pelo carrossel.

Nem espiões adestrados
sabem de cor
a cor das flores vertidas na jarra
na mirífica esplanada
onde os sonhos se digladiam.

#513

A cadeira
centrípeto
lugar
logro
desmentido.

17.3.18

#512

O corpo diuturno
antídoto experimentado
na paráfrase sem limite.

Contraluz

No agasalho do inverno
verbos sentados nas linhas abertas
uma constelação de estrofes
sem adjetivos.

(Os adjetivos são a matéria gorda
o impropério em vez do embelezamento
uma farsa
evitável.)

Remexo no baú bolorento
com a ajuda da cabeça desempoeirada
procuro os verrinosos maços de passado
sem o vestíbulo passado nos passos repetidos
sem a cortina descida sem ser a pedido:
talvez
seja o norte nos interstícios do sol
ou
a mão invulgar no amparo inesperado;
ou então
um vulcão adormecido
pela penumbra que se deita sobre o olhar.

16.3.18

Planície

Desse dessa água a beber
a meus lábios insaciáveis
no sopé das acácias
e eles estornassem o estio desafiado
e as águas nadassem
entre as muralhas do inverno. 
Assaltasse os tesouros sem nome
no parapeito do sangue voraz
em sentidos penhores do arrependimento
só para sufragar as cadeiras vazias
e com meu corpo dar-lhes vida. 
Fossem poupanças
o verbo do meio
desalinhando os números exatos
bebendo das guitarras arranhadas
só para entesourar as estrofes fundas
o beijo demorado no alpendre da vida. 
E então
até a temível bancarrota
seria púlpito
as portas entreabertas
com a força da vontade.

#511

Gatos sem freio
tomam conta das ruas
desmentindo o protesto da casta.

15.3.18

#510

A lua namora a noite
ajeitando o orvalho
que se embebe na madrugada.

Autobiografia

Sou feito
da trovoada que medra em mim
desta matéria explosiva
constelação onde todas as estrelas
se aninham
o lago amplo com nenúfares de ornamento
a palavra vertida num cálice
forrado com a alma sem freio
a convulsão labiríntica
e a seguir o céu plano
de onde irradia a claridade sem embaraços.
Feito
desta matéria visível
e da que invisível se esconde
nos contrafortes da montanha desemparedada
da matéria que busca alimento
nas águas velozes dos regatos
onde a neve tardia se fundiu.
Sou feito
da chuva sibilina
e dos prístinos lugares
onde os ossos aprenderam a ser
a funda, estrutural matéria
versada nas estrofes diligentes
nos olhares desembainhados das teias larvares
nos arcanos pesares
na poesia como casa forte.
Sou o penhor de tudo o que me abraça
a bússola esmaecida e, todavia, prestimosa
o húmus rico
as rochas duras que se dão ao peito
eu
sem fingimento
sem algozes admitidos a concurso
só no dorso das caravelas desenhadas
na intemporalidade que se cinde num instante
(ou no instante formulado em intemporalidade).
Colho dos braços das árvores
a água escassa, mas valedoura
e deito os braços ao rio como se fossem remos
só para tomar em meu colo
a mais pura essência que sintetiza meu ser.
Sou feito
de uma aurora boreal
original remate da alvorada
hormonas sem equação como rima
e sigo nas asas do dia
um dia de cada vez
no proveito da vida inteira.

#509

Na pior das previsões
uma janela
varanda abraçada ao mar.

14.3.18

Singularidade

Esta é a nossa honraria:
a decadência contumaz
a volúpia praticante
as virtudes alistadas no escol do hedonismo
a usura do dia corrente
a correria a favor da maré cantante. 

Este é o nosso opróbrio:
a decência arquitetada em dóceis cálices
o respeitoso tributo ao poder
a obediência sepulcral
a verdade militante
o compromisso com o devir comum.

#508

Pois que o mar assim o quis:
sublevação tumultuosa
a dramática mercê pré-apocalíptica.

13.3.18

#507

Apostilha da revisão constitucional:
amor mínimo nacional
(proposta do sindicato do desamor).

Maré viva

Guardo no bolso
um pedaço da carne honesta
em segredo escondido
do olhar sem peias.

Guardo em mim
as armas por terçar
armas nunca bélicas
no parapeito da alma não frugal.

Guardo no avesso do olhar
as frondosas pedras cinzeladas
no rebordo das palavras vorazes
preces sem audiência à espera.

Guardo em estiradores gastos
o esboço impossível
e reservo um esgar desmaiado
na indiferença metodicamente alinhada.

Guardo na janela forrada pelo mar
o luar que veio parar às mãos
um sorriso pueril
contraponto da reincidente fuselagem.

Guardo
em memória futura
a cartografia dos sonhos vertidos
os ramos dúcteis no preparo do dia
a bastante competência
a distração dos contratempos.

Guardo-me das intempéries
do flagelo intemporal
da repressão do dissídio
dos embaraços sem remédio.

Guardo-me.
Porque sei que
“moro no rés-do-chão do pensamento”
e agrada-me
porque do pensamento se cuida
na quadriga de minha atalaia.

#506

Remexemos o fundo,
arrastão telúrico,
dos vendados olhos em rugas.

12.3.18

Demónios desamparados

Ah, estes demónios de veludo
barba rala e anéis vitupério
numa correria frontal
contra o comboio da lógica
enxertam suas beatas ainda acesas
na boca distraída dos amolecidos.
Os demónios amestrados
são risíveis
ninguém os leva a sério,
a não ser como contrafação do termo.

Não é como dantes:
no pelourinho dos pesadelos
demónios apalavrados
lançavam as sementes do medo
uma vergonha imensa
como se do lago viéssemos untados
com as penas rosadas dos cisnes
e toda a gente escarnecesse.
Era isso:
tínhamos medo do palco
onde troçar dos nefelibatas era passatempo.

Os demónios tinham rosto
nem se transfiguravam atrás de máscaras.
Mas pesadelos desta leva
eram dantes.

Podia-se alvitrar
que os demónios hodiernos
são de fracos pergaminhos.
Desengano:
seus motejos desvitais
à mercê de infundadas cominações
– e o sono é à prova das conspirações
dissolvendo a legitimidade dos demónios
na água pestilencial que se verte nos bueiros.

#505

Inventariei as memórias do futuro
e verti as alíneas 
num chão de espelhos.

11.3.18

Escape livre

Não sejam
as negras nuvens
mortificação:
ao menos
têm uma densidade.
Por labirínticas que sejam
por serem tutoras de dilemas surdos
por serem respaldo do desencontro;
mas densas.
São corredores baços
paredes não tateáveis
palavras que ecoam na sombra
rostos sem silhueta
manhãs com a reprovação dos druidas:
densas, negras nuvens
carregadas com um húmus ímpar
bibliotecas prolixas:
nelas se pode beber
a versatilidade das fontes
e escapar ao dilúvio dos queixumes.
Impossíveis efeitos especiais
sem eremitas nos flancos
são a multiplicação da raiz quadrada das nuvens
pela temerária disfunção do olhar turvo.
Um preceito inigualável:
quando pouco se espera da função
ela presta-se ao proveito mais elevado.

#504

Temperamental, o mar
e as veias ebulindo
em tumulto apaziguador.

10.3.18

#503

Prometeram beleza.
Não prometeram saber.
(Desfile de moda. Modelos sisudos.)

Banda sonora

Na música compartilhada
uma combustão uníssona:

na música datada
as rugas envernizadas;

na música intemporal
o ensejo de perenidade;

na música redescoberta
o tributo à lhaneza;

na música neófita
ambição sem medida
(há quem diga:
o retardar do envelhecimento);

na música improvável
o carimbo inesperado;

na música ímpar
a autonomia da singularidade;

na música relâmpago
um beijo sísmico;

na música mercadoria
a simplicidade mundana;

na música exótica
o quartel da diferença;

na música reinventada
um esboço de começo;

na música memória
o desapegar das peias modernas;

na música moderna
um subsídio contra o passado.

Música atrás de música
nos sentidos apalavrados
sentida paga contra os fogos ateados
sedimento de um mundo entrado pelas mãos.

9.3.18

A ponte franzina

Uma ponte na meada do caminho.
Atravesso
ou tenho medo?

Vejo as fundações em ruínas
a ferrugem tomando conta dos corrimões
uma convocatória para a desgraça;
ou vejo
uma centelha a refulgir no epílogo da ponte
a vegetação radiosa
o ajuramentado paraíso
(e quem acredita em paraísos?).

Da ponte não sei segurança
nem concebo o retrocesso.

No jogo dos dilemas
os dados são esquinudos.
Antes atirar uma moeda ao ar
e saber a cor da sorte ou do azar
na mediana bota do bandido à discrição.

#502

Parábola do hedonismo
(por mais que não pareça):
cuidar do corpo
antes que o corpo se descuide de nós.

8.3.18

#501

Desafiou a lotaria.
Não passaria sob escadas.
Percebeu:
o não azar não é caução de sorte.

Monólogo da indeterminação

Não faço a menor ideia.
De nada.
No assalto das dúvidas
tenho índice numeroso.
Das ideias feitas
das certezas à prova de bala
dos céus eternamente claros
das luas que só irradiam luar alvo
dos profetas que adivinham oráculos:
não faço a menor ideia.
E gosto.
Gosto que as ideias sejam tumultuosas
congraçadas dentro das veias febris
a que apetecem os remoinhos dos opostos
a dança de contraditórios
as interrogações seguidas de interrogações
o deserto de respostas.
Não faço a menor ideia
da base que recebe os sedimento da razão;
pois da razão
julgo ser volátil
matéria que se dissolve entre os dedos
as mãos na impossibilidade de a agarrar.
Não faço a menor ideia
por que se excedem em fantasiosas bússolas
os pederastas da razão
por que tiram a pele à pele
na ambição de saberem algum saber.
Na dúvida
prefiro o contentamento
de não fazer a menor ideia
– nem, muito menos, a maior das ideias.
Quero os livros sem certezas:
argumentos ao sufrágio outro
convite à dissidência
só pelo inexcedível prazer
da argumentação seguida do seu contrário
– sem o imperativo de inventariar vencedor:
não há nas ideias
cunho de superioridade
(e se há em alguns peritos em tresler,
seu é o mal).
Quero aqueles livros
embebidos na intelectual humildade
de serem desmentidos em ilações
atiradas ao escrutínio.

#500

Do pontão alteado sobre o mar
asas abonadas ao corpo
e eu adejando sobre as águas,
seu vitral perfeito.

7.3.18

Ópera

O suor tingido de mar
nos olhos réplica de lua
esbraceja lugar entre os poros teimosos.
No sufrágio do desejo
a boca quente, faminta
arremete como um lobo
sobre a carne trémula que é teu corpo
retrato de um corço não apavorado.
No pináculo de um sonho
sinto as veias efervescentes
que vogam em teu caudal
sonho em si puro.
Sorvo da tua boca
a saliva refúgio,
a muralha
e damos as mãos sobranceiras
pois sabemos das desregras.
Sabemos da loucura
que dança nos corpos guerreiros.
Há palavras ciciadas
um tudo a que se afivela o momento
sua perenização
como se guardássemos o tempo
no penhor das nossas mãos uníssonas.
Somos césares
na grandeza do exíguo terreiro
onde triunfamos.
Temos a manhã
por fiel depositária da combustão dos corpos
na demora desejada
na volúpia que descarna as palavras,
insuficientes para retratos fidedignos,
mas sempre palavras-refúgio.
Sabemos que conta
o que contarmos como sortilégio,
o osso fundo em forma de esteio.
Corremos
no pêndulo da vontade que acomete.
Corremos
com o vagar que nos manda
e esquecemos os gramas do tempo
por dentro do voraz desejo sem freio. 
Somos alpinistas indomáveis
e nem alcantilados vãos nos retardam.
Em teu campo florido
derramo o albino suor.
Consumação.
E damos as mãos:
somos deuses
de uma matéria perfumada
com a nossa assinatura.

#499

Adenda ou nota de rodapé,
não importa:
conduzo na estrada sinuosa
até no ermo me encontrar.

6.3.18

Finis terrae

Tenho fronteiras em meu regaço
limites desenhados pela trova malsã
bandeiras descoloridas
idiomas vetustos, gastos
tenho uma espada desquiciada
nos despojos da imperial fachada
e os escombros dela emoldurados
mapa que custa pisar.

Tenho a terra molhada entre as mãos
o seu cheiro encantador
o aroma prazerosamente deletério
de um cachimbo fugaz
o refúgio contra o palavroso vazio
tirando o chão aos errantes
tirando as lágrimas dos melancólicos
e a sua melancolia legada ao escárnio.

Que território é o meu?

Na provável descosedura de tudo
no improvável arpoar de uma lantejoula
por carência de cais
por mares que deixaram de ser navegáveis:
talvez não saiba dessa terra minha
ou ela esteja em ebulição
nas margens sitiadas de um rio murmurado
escondida do turbilhão hodierno
da intromissão dos outros sem caução.

Desta terra sem fim
(porque assim o determino)
desenho os contornos
os marcos geodésicos onde estou de atalaia
a boca do céu testemunha
para deleite das porteiras mascaradas de gente
e infortúnio dos profetas de tudo.

Desta terra
atestada terra sem fim,
seu curador legitimado.

#498

Um mosaico de rostos
constelação de nomes sem paradeiro
hibernação do mundo.
(Oxford Street, Londres)

5.3.18

#497

Há um lugar em Lisboa chamado Desterro.
Estarrecido fico
ao pensar por que deram ao lugar
tão ablegada toponímia.

Inventário

É a etiqueta
o manjar bastardo dos párias
a estulta montra do tempo
uma garrafa esquecida pela maré
os olhos marejados da idosa
a contrafação da gramática
a manhã tardia
um estroina interiorizado
um cálice dourado e, porém, vazio
braçadas fortes no mar contra
sapatos esgotados na fibra do caminho
– a possibilidade do impossível;
o marear das velas hirsutas
o espelho de sombras vetustas
a promessa infundada
os versos aformoseados pela singeleza
o parto adiado
o estranho ocaso lunar
os estragos do sorriso soez
o sarcasmo alinhado no avesso do dia
o pregão repetido, exaurido
a luz desmaiada na alvorada sombria
uma chávena de café sem misericórdia
o pranto das lágrimas enxutas
– a impossibilidade do possível.

#496

Desta candeia extingui o fogo;
não queria ter o porvir
de atalaia.

4.3.18

#495

O baraço solto
dança sem rota
na mão invisível do mar agitado.

Friendly fire

Só por obnóxias convenções
se estima
que um paradoxo deixa de o ser
e se verte no contrário do seu teor:
as balas perdidas
são, porém, balas:
magoam tanto
como não perdidas balas.
É como os zeladores de nós todos,
catedráticos das convenções
(que, por o serem, são bondosas),
no argumentário do bem maior
ou na lógica ilógica
dos danos colaterais.
Antes medrassem
filólogos sem desvios
e os conceitos eram conceitos
(e não uma amálgama
orquestrada pela variável batuta
dos catedráticos das convenções).

3.3.18

#494

Trazias no bolso
um bolbo esquecido
e não era a Holanda que te viu.

Crédito

Por estas ruas suadas
as paredes acordadas em vigília
e o altar onde se espera
a alvorada.
A muralha erguida
estilhaços de balas perdidas
um aquário com a água frígida.
No estuário soalheiro
os remorsos omissos
em vez da farsa composta
no dorso fingido das dádivas.
É por este ângulo estreito
na enseada refeita
que se a venda derrui
e o olhar ganha condição.