30.6.18

#638

Não há perdidos e achados. 
Apenas um meridiano 
de flores e de sonhos.

Fecundo

Consigo ser aurora boreal
nos melhores preparos que arranjo
nos corredores sublimes
que desafiam o centrípeto sol. 
Às vezes
sou chão insensível
ou apenas um enevoado entardecer
sequestrado pelo silêncio. 
Às vezes
não sei das medidas e dos temperos
e o rosto serve-se em fachada vetusta
na exata medida da impaciente fazenda
que cobre a nudez. 
Consigo destravar a claridade desmaiada
do sol que se esvai
sob a tutela do mar que é chão sob meus pés
viável estatueta que adere à maresia
nas vezes do nevoeiro
que com versos sem medida
retiro do céu que se faz horizonte. 
Às vezes
sou uma sombra que se esconde
na falésia em que me encerro. 
Às vezes
sou a mão maior que um mundo
em legado de bondade.

#637

Saio à rua
e na esquadria da manhã
desarmo a melancolia promitente.

29.6.18

Perfumado

Contraponto.
O véu sem céu por levantar.
Miragem sem baioneta.
O ponto de mira hasteado.
Mar sem ondas, timorato.
A casa sentada em seus alicerces.
O beijo quente.
Os olhos suados, melancólicos.
A chave no horizonte do labirinto.
E os olhos marejados pelo sal da chuva.
Colheita tardia.
O cometa rasante.
Cinzas duradouras no parapeito da noite.
Uma elegia.
Cobrança a destempo.
A pureza no desenho do luar que irradia.
A força da palavra acertadamente tocada.
O vinho efusivo.
O amplexo do porvir em adoração benquista.
O aval da amada.
O penhor das mãos incansáveis.
Um olhar multiplicado por mil.
A centelha afivelada por cima do olhar.
O contraponto das angústias.
O mar inteiro.
Abraçado.

#636

O feminino sumo de tangerinas
que levo à boca
e anestesia os lábios com deleite.

28.6.18

O comboio sem patrono

Ganhei o caudal sem meças
no dia em que o calendário transbordou
e em fatias o sol se fez tirocínio
à espera do verão ajuramentado. 

O comboio passou
acelerado
talvez atrasado. 
À lapela 
trazia o cantor lírico
a voz embotada pelo vento que corria
no sentido lugar que não chegava a ter lugar
tanta a velocidade do comboio
tantos os apeadeiros falhados. 
Fazia lembrar
a infância 
ou a remissão de um tempo perdoado
no inconveniente de um olhar sem peias;
o comboio
sentia-o apressado
apesar de vir em débito com o tempo:
e, mesmo assim,
a pressa toda consumia a paisagem
transformada num borrão
nem sequer os limites conseguidos 
na moldura do olhar. 

Se perguntassem ao comboio
ele já não se lembrava 
de onde tinha partido
e menos ainda tinha em lembrança
onde queria ter cais. 

Era quando 
a âncora se lançava
na distante nuvem 
onde medravam evocações da infância:
o comboio de brincar
andava sucessivamente às voltas
na pista montada 
que era circular. 

Até que as pilhas se esgotavam
e o comboio de brincar 
ficava à mercê do rio caudaloso.

#635

O sumo retirado 
a minhas palavras
não as deixa desidratadas.

27.6.18

#634

Passo as mãos na água.
Os olhos vadios
prometem amanhã.

Comodato

Qual é o verbo da servidão?

A mastodôntica algema
que reduz à poeira invisível
a poderosa ameia da alma
o caudal de outro modo sem freio
a voragem de ser o ser
sem cuidar do penhor de outro adejando.

Que escravidão nos arruína?

Que bolor putrefacto
se cinge à pele por plebeus servidores
que se aprazem com a condição
e a querem contaminada aos que sorriem,
livres?

De onde sopram os ventos fastidiosos
os lúgubres almocreves açaimados
diligentes na exibição de quem é séquito
servidores de bestas sem rosto?

Arrumam-se os móveis inúteis
entre a tralha amontoada
e sabemos ler nas entrelinhas das nuvens
o espaço boreal
a quimérica claridade 
uma candeia que se assenhoreia dos limites
na valsa esplêndida
da liberdade.

#633

Arrefeço
na orla do vulcão
o sangue esportulado pela ebulição.

26.6.18

#632

Se eu tivesse asas
dava caça às renas
só para obnubilar o pai natal.

Sem candeeiros

Apague-se a luz.
Subam os feiticeiros sem nome
as cortinas baças cingidas ao corpo
pois do nada se tira um módico
no bater de asas que o mundo oferece
em cascatas contumazes de águas barrentas.

Apaguem-se as luzes.
Os selos gastos não servem para correspondência
e, à sua míngua,
devolve-se o silêncio ao pedestal
sem contar com as palavras sussurradas
e as baías que alindam o entardecer.

Apagam-se as luzes.
A noite colabora com a angústia
juntando as luzes em seu desmaio
com a poderosa vigília dos rios fartos
na portentosa remissão dos vorazes delitos
turvando a deletéria camisa-de-forças.

Apagam as luzes.
Os anónimos repositores da insanidade
em crendo que a luminosidade é criminosa
um acosso sobre o rosto exasperado
e em antítese soergue-se a terapêutica sombra
o tempero sem receita na sala de espera.

#631

Recorto 
a lava imersa no sonho
e levo o murmúrio no colo sedento.

25.6.18

Carta registada com aviso de receção

Os lábios não pedem água 
– pedem beijos
pedem
todo o impudor e relíquia.

As mãos não estão atadas 
– terçam os versos fadados
terçam
toda a fecunda maresia.

O corpo não decai 
– é um pendão imarcescível
é um cais à espera de navio.

Os olhos não fingem 
– sorvem a água fria
sorvem
até as lágrimas assim enxutas.

A boca não emudece 
– corteja as cores sem paleta
corteja
todas as paisagens amoedadas.

#630

O nosso olhar toca o céu. 
O céu já não é 
território estrangeiro.

24.6.18

Impostores

No avesso da madrugada
ciciam os curadores da melancolia
imersos na solidão.
Contestados pela aurora
consomem-se no fingimento.
Deles se diz
que amesendam na comiseração
náufragos de um cuidado alheio
ascetas de suas próprias trevas;
chegam a lamentar-se de si mesmos.
São vendáveis
no púlpito onde semeiam os prantos
e são como famintos animais
falsamente vadios
que roubam mantimentos putrefatos
onde se amontoa o lixo. 
Às escondidas
ostentam toda a sua fortuna.

#629

Testa-de-ferro dedicado
o peito às balas quando é preciso
idiota útil como nacionalidade.

23.6.18

Anfiteatro

As mãos metidas na areia
levitam um solstício lisérgico.

Os dedos timoneiros
lavram as pedras sem paradeiro.

Aos olhos, a sementeira
lograda no entardecer radioso.

A falésia lesada pela erosão
murmura um adágio temporão.

Na esteira do horizonte
os novelos desemaranhados.

Na véspera da noite
a noiva eternamente amada.

Com a bênção do mar
à espera do ouro nas mãos.

#628

Lei de bronze:
mitos em molduras
sem espaço no tempo.

22.6.18

Simulação

Que é feito 
do paradeiro desta charada
que não se lhe encontra esteio
nem o olhar desembaraçado
ou tutores de rosto aberto
e as conjeturas 
perdem-se em sua opacidade.
Cozinham-se os fungos colhidos
e os pés dançados
fruídos em seu cansaço
são o mostruário da charada 
– um edifício como um suíço queijo
ou pavão aperaltado no ufano transitar
ou mandante que exige genuflexão
e tratamento de polé
ou daqueles vultos da cultura
que exigem reconhecimento de estatuto
(enquanto rezam loas à igualdade
no perfunctório exemplo
de quem se esquece do que faz
e limpa as teias ao que diz).
Que charada é esta
em que fazemos de conta
que fazemos de conta
enquanto
nos tempos livres
fazemos de conta 
que não fazemos de conta
ao fazermos de conta?

#627

Como se combinam
os ossos incorruptíveis
com os músculos indolentes?
(Ou vice-versa.)

21.6.18

Sombras

Na sombra
da sua própria sombra
desalinha do certo,
invólucro do volúvel,
contra as verbenas ditadas
na carruagem enferrujada. 
A sua sombra
não chegava 
para a sombra sua duplicada
em inverosímil combinação com prognósticos
demissão inteira no berço do futuro. 
Malquisto o cerne escolhido
ou apenas uma prece mal entoada. 
Enquanto 
de sombra de sua sombra
descuidasse o esquecimento
teria sempre o aval da meã condição.
Reservado 
argumentava a seu favor:
as sombras
são escudo imperativo;
se se derem em cultura fecunda
garantida está a armadura 
e o arnês necessário.
Não haverá
descortês mumificação que seja maçada.

#626

(Variação do #625)

Em Cantanhede 
há licor de merda
ou há um licor de merda?

#625

Em Cantanhede 
fazem licor de merda. 
Ainda não percebi se a dita cuja
é substantivo ou adjetivo.

20.6.18

Ganho de causa

O que ganhamos
na roda-viva do outono
na chuva fria, viável
se ao dorso da luz
medra um apeadeiro sem luz?
Ganhamos um lampejo de sol
nem que seja entrecortado por nuvens
um vadio corço de rompante
todo o líquido venoso em sorte mandada 
– e o que ganhamos?

A tabuada da manhã bate certo.

Somos nós
e as nossas mãos
fruídoras do dia restante.

#624

Não devas nada à filigrana
a não ser
a sensibilidade de cristal.

19.6.18

Quadro

Justapõem-se
o fértil do chão molhado
as cortinas de veludo
a trincheira escondida.
O copo baço lê a luz coada
e eu deito aos braços
o sal extraído de poços algures.
Oxalá
a combustão se antecipe
a uma possível idade do gelo
e a antecâmara da noite
seja o verso avisado.
Amanhã
quando sentir a véspera do entardecer
saberei do sumo da alma
as cadeiras derrubadas no porfiar tardio
e o fogo não fátuo
escondido em meu rosto.

#623

Nómada no inverno despojado
o iletrado comodato das almas,
em protesto.

18.6.18

Adulteração da causa

O preço combinado
na varanda sobranceira ao sobreiro
diz-se do diamante transparente
e do preço afinal não transparente:
fogem os mercadores
das asas que sobre eles se abatem
sabem
que se sobre eles se abatatem
têm de se abster dos ardis
e dissolvem-se os fartos proventos. 
Os compêndios ensinam
que são os compradores 
os soberanos. 
O regime das coisas
adulterado como está
(chamam-lhe selvagem, 
a este capitalismo)
desmente os compêndios. 
De onde se infere
que ou os compêndios estão datados
ou os endinheirados 
não foram por eles instruídos. 
(Sobra ainda a hipótese,
antipática para os advogados da espécie,
de a mesma ser uma adulteração de si mesma
decaindo no altar da usura
e da avareza.)

#622

O marégrafo
gare de mares tumultuosos
espelho do meu avesso.

17.6.18

Câmara fotográfica

Vejo
desde o camarim
as pessoas sem rosto
a sua letargia
a obediência anestesiada
um espelho estilhaçado 
nos ombros do proveito.
Coabito a sequencial memória
com o sargaço que vem nas ondas
destituído de âmbito
constrangido.
Dos que dizem loas
sem saber a quem
dizem ser sábios
iconoclastas sem pedestal.
Estou convencido
que são apenas
pederastas de si mesmos
ou peões com medalhas a tiracolo
impensáveis rostos sem pessoas
na refrega das tempestades sem nome.

#621

Ser do leste de si mesmo
é achar nos escombros
a reparação dos contratempos semeados.

16.6.18

Vela hasteada

Onde estavam 
as amarras do desembaraço
quando a noite se fez fiadora
e todo o sono tomou forma de estado?

A ferrugem da pele
e o contraste das arestas limadas
mostram a volúpia do tempo.

Que interessam
as juras nos olhos antracite
se a memória se dissolve 
na chuva desenhada?

Cresço na pirâmide 
que é a ossatura fiel
e desarmadilho o fermento mau.

#620

Liberto-me das metáforas:
de cosmética
não precisam as palavras.

15.6.18

Letargia

No semicerrado estio
insisto na voragem do dia
espero que as flores desabrochem.
Espero-as
nem que seja por um instante
para as emoldurar numa fotografia
e dedilhar suas pétalas
para dentro do olhar
na fusão dos sentidos entrelaçados.
A um outro canto
a multidão irrequieta açambarca o espaço
e, ruidosa,
prossegue no mais alto da indiferença
enquanto um vesúvio de pensamentos
enfeita as ruas
atapetando-as com o vinho frutado
bolçado pelos vulcões irreprimíveis.
Os eruditos
colecionam páginas e páginas
sem conseguirem reter meia dúzia de palavras.
Acontece à gente de boa estirpe:
os que se engalanam
em opíparos estamentos
e de seus dedos escorrem filamentos
com sabor a ouro 
– e depois é um fartote de vacuidades
um copo farto de frivolidades
e um prato cheio de ar 
(e do rarefeito).
Ah!,
prefiro os cães sem eira
os navios à deriva
as páginas quase caiadas
os cobres sem valimento
as luvas rotas
as rosas encardidas
os quatrocentos rios inventariados
uma árvore que transborda sobre a paisagem
e um verso vertical
no vício que transverso na colorida paisagem.
Aposto a fortuna
a que tenho e a que não tenho
(como os eruditos 
que convocam saber
que não é seu)
que amanhã
é a véspera de outro amanhã
e no parapeito dos lugares-comuns
nidifica a multidão.
Não há nada que seja diferente.

#619

Sem pré-aviso
desce o preto e branco
para gáudio dos penhores do medo.

14.6.18

Vantagem

Hoje ganhei uma década
nos escombros da primavera
entre o gentil ciciar dos pássaros
e os prantos sussurrados ao longe
por viúvas sentadas na orfandade
contra os relógios madraços
em aproveitamento do luar escondido
de cócoras diante do mundo
ou sobranceiro na varanda sobre ele.

Hoje compus o jardim de pedra
sem o asfalto por companhia
apenas o telúrico sufixo
dando corda ao teleférico da manhã
em falas cobertas por mãos encovadas
desabitando as teias enquistadas
à espera do pleito sem juiz.

Hoje assobiei uma melodia
que julgava olvidada no repasto do tempo
entre quimeras sem sal
e o lodo estético que dá ao cais
sem dar ouvidos às profecias
em apoio do lustre meticuloso
e dos estetas despreocupados
ao colo de poetas esconjurados.

Hoje esqueci-me 
das sombras densas
do arrazoado gongórico
dos recortes espalhados pelo chão
das palavras malditas
do exército de anões
da definição dos limites
do desenho do nevoeiro
das masmorras do pensamento
das pérolas desestimadas
dos celtas embebidos em sua boçalidade.

Hoje
ganhei uma década.
(Pelo menos.)

#618

Há ladrões
que só roubam sonhos
e não sei se merecem exílio.

13.6.18

Confiança

Deposito nas flores
o sal confiado de mim.
Saio do tédio da tarde
e caio no verão renitente.
Destilo as lágrimas de areia
no catavento tardio e gasto
sentado nas margens 
de um rio de março
entregue à folhagem sedosa.
Há nas mãos cansadas
uma plateia de sóis
o requebrado mar
que dança em suas ondas
um fio
que conduz os olhos fechados.
A confiança
é o mar mais apetecível.

#617

Nas linhas retas que desenho
contenho os apeadeiros escalados
a súmula que condena o adeus.

12.6.18

#616

É nesta moldura
que tenho o chão
aroma da terra untada com chuva
ponte sem os atilhos das margens.

Corpo mutuado

Aliso os veios
que vêm da parede
e se encostam ao meu corpo.
Desde há muito
não sei o que é sangrar
dos nódulos que são fonte de dor.
As baionetas depostas
figuras circenses de um arqueológico lugar
assinam a diferença dos tempos.
Figurantes
fazem fila de espera
pelo soldo prometido.
Pelo soldo
de fazerem de conta a qualquer coisa
na habitual encenação diária
o jeito para a contrafação
a argamassa deslaçada que se desprende
das mãos desatadas.
A coreografia está desenhada no mapa.
Junto metodicamente os dados 
e atiro-os com força 
contra o estrado onde se jogam os figurantes.
Desconheço as consequências.
Não sei os números 
depois de os dados parados.
Não importa.
Levanto o olhar
para onde me apetece.
E do entardecer
recolho em minhas veias
todo o sangue desatado de anteriores sangrias.
Agora
sinto que sou 
totalidade.

#615

Às de triunfo
hás de ter trunfo
às três tabelas travadas.

11.6.18

Avulso

Sem calhar
arregaço as mangas.
Lido com as sombras.
Teimo.
Teimo 
por dentro da teimosia
em simulacro de heresia
que não tem lugar próprio.

Se calhar
pretendo ser limão
em água sem nome.
Consumo as trevas.
Respiro.
Respiro 
com a sofreguidão do desejo
no triunvirato alheio
desde o palco sem luz.
E noto
o voo desassisado dos pássaros
a relva a crescer,
anotando os milímetros que cresce,
a clepsidra encerrada
o amanhã titubeante
o gato deitado no tapete 
as horas a desoras
e a honra da humilde condição,
meã.

Se calhar
convoco as páginas ao lustre valioso
canto hinos sem país
invisto nas ações em desperdício
fujo das fugas remediadas
e consumo
na vivacidade de meu peito
as palavras avulsas que sobem à boca:
gastronomia
piano
tábua
cotovelo
melodia
manhã
desassombro
sofreguidão
maré.

Sem calhar
dou comigo num lugar
e pergunto ao lugar
pelo lugar que é
talvez sem saber
que o lugar não guarda 
vestígio de um nome.