31.3.19

Somatório

Partilho o copo cego
no lagar das armadilhas.
Subo na vertical da parede
o arnês esquecido no novelo da coragem
e bebo a força 
no rubor que sobe ao rosto.
Não sei nada de armadilhas.
Prefiro o luar ao púlpito da hipocrisia
o entardecer ao estiolado verbo
que desfaz as palavras em nada.
Pode ser
que o valor não se exaura
nem que medre o impasse. 

#984

No começo da crónica maldita
antes do vocabulário extinto.

30.3.19

#1025

Como podes dizer
que me “conheces de ginjeira”
se não sei
da tua intimidade com a ginjeira?

Raridade

Dei ao entardecer 
a palidez com que se compôs. 
O sol prometeu-se ao amanhã. 
Deitou-se com o mar 
e fiquei à espera de o saber, 
altivo e fresco, 
misturado com o orvalho matinal.

#983

Uma coordenada GPS
pode ser um poema.

29.3.19

Transparência

Dou-me de penhor
às arcadas furtivas
onde se sobrepõem
o chão humedecido pelas lágrimas
e as cordas rombas de um vagar semântico.

Arranjo tempo que sobre
e sobre as costas das dívidas incobráveis
amontoo o património invisível
a gramática absurda que só ela faz sentido.

Penhoro à força
o sorriso fácil dos tutores da alegria
à força:
pois de tanto ser forçada
é ardil manhoso
disfarce que deles faz
flibusteiros sem remédio.

Prefiro
os rostos sem cosméticos
as vozes não falseadas em sustenidos
os verbos frontais
os medos que são medos
e todo um mar de fragilidades
a quintessência da nossa coragem.

#982

Arregaça as mangas
e descarna as veias ferventes
na exatidão de ti mesmo.

28.3.19

As bocas foram feitas para o beijo

Pediste-me um beijo
e um beijo é dever direito
o bálsamo dos amantes.
Soube das palavras hasteadas ao vento
quando as bocas se tocaram
e de um golpe só
cuidaram da hibernação do restante.
Pois se de um beijo dependesse
era vida exultante nas costuras dos braços
uma embriaguez sem recaída
todo o sistema solar cabendo nas mãos
as vírgulas que pediam ainda mais água
uma estepe farta com pequenas flores púrpura
o horizonte desenhado pelas mãos uníssonas.
Um beijo.
Não é miragem enfadonha
nem palco com chão apodrecido
ou um verbete apagado em chama decaída
ou tributo que paga recompensas;
é a voragem contida na carne dos lábios
as línguas húmidas que se entrelaçam
os corpos 
que se entregam à dança em que são peritos
e a velocidade crescente
o foguetão solar que não sai das nossas mãos
e incendeia o rastilho que não espera.
E o beijo
matriz de tudo
incenso incalculável do prazer em espera
é epilogo que incuba o retiro final.
Mas o beijo
os beijos todos
os que o foram 
e os que esperam por seu tempo
são dom imaterial a que nos agarramos.
A nossa 
droga dura.

#981

Não tiro o chapéu a ninguém
pois não sou de usar chapéus.

27.3.19

Mar de março

De todo este mar
que é tela aos meus olhos
embebo a planura sem fim
as modestas ondas como sal
do travejamento com fundas raízes. 
Do mar que é capitão
aqui sentado com a terra nas costas
como se apenas de mar fosse feita a paisagem
e deste imenso chão azul
irradiassem os nutrientes
uma forte erupção dando resguardo à alma. 
O mar como janela ampla
deitada sobre o céu
até os dois se fundirem,
sob o amparo de meus olhos testemunhas. 
Recolho do mar as sílabas cantadas
na pauta desenhada pelas ondas menores
e desse murmúrio
recupero o fôlego
cresço mais alto 
que os aviões que se inscrevem no céu. 
Estendo a mão,
como se estivesse a abrir a janela. 
E o mar estivesse contido
na minha mão já não desamparada.

#980

Medalhado,
o verbo consentido
no porão perdido da valsa intransitável.

26.3.19

#979

A senhora dos correios
desafia para uma lotaria. 
Ela recusa:
“prefiro continuar a ter sorte no amor.”

Manual de sobrevivência

É esta a contingência. 
O lugar avulso
sem a crispação dos importunados,
só as linhas púrpuras
onde se deitam estrofes arrancadas à dor. 

Não pareço os estouvados
nem treslouco a boémia reincidente;
poderia admitir
que invejo os estroinas
os múltiplos apeadeiros desandados
o altar perene 
onde estão vedadas as consumições
o aperaltado, descamisado andar dos dias
no tributo da maresia que sintetiza 
os elementos
sem o aparato das elipses enigmáticas
que ascendem desde labirintos espúrios. 

Não sou capaz,
ó fraqueza minha 
– ó franqueza que me trais
e deixas transido diante da farsa
incapaz de dela ser intérprete. 

Os minaretes
em seus cantos sonhadamente entoados
convocam a via etérea
o canto maldito
as preces opostas
as apostas na loucura desenraizada
os remos temerários que sulcam tempestuoso mar
a coragem dos estouvados
o peito aberto às pedras cuspidas
a gare que se mostra à controvérsia
a cúspide laminada na recusa do estertor
a fome contida em esboços a carvão
as espadas sempre embainharas
o rosto cristãmente oferecido
em duelos preparados para a resignação
os olhos que, todavia, não capitulam. 

Nem tudo tem a servil andança
da vergonha. 

Assim como assim
já açambarquei algumas das proezas assinaladas. 
É este o vespeiro em que estou
uma frenética valsa dos apressados
em voos rasantes uns aos outros
no vexante senado 
em que ninguém deixa de ser senador,
bolçando a indiferença que consta
do manual hodierno de sobrevivência. 

(Ou será o manual de sobrevivência hodierna?)

#978

Do rosto da trovoada
colho uma espuma fina
a raiz quadrada da sentinela.

25.3.19

As cicatrizes sem cor

Dizem que as cicatrizes
têm cor
que falam no abismo de suas arestas
que são o fertilizante de pesadelos. 

Desconheço. 

Tenho uma tese diferente. 
As cicatrizes são a pulsação irrefreável
de um imaginário
acossado pelas diversas camadas
sobrepostas umas nas outras
onde têm palavra os dissidentes da brisa serena
e se esgrimem as palavras contundentes
as frieiras que ferem as mãos
sem lhes emprestarem cicatrizes visíveis. 
Ou então
(ensina a minha tese)
as cicatrizes são curáveis
indiferentes a medicinais prescrições
ou às meritórias efabulações de peritos
em curar as consumições das almas. 

As cores das cicatrizes
são indeléveis,
apagam-se com a vontade que fala mais alto
o sublime cais onde os vestígios sem serventia,
tal como sucede à matéria desperdício,
não têm transação no trânsito das almas. 

Às cicatrizes
sobrepõe-se a pele que se renova
adesivo sem milagres
no parapeito a que se agarra a vida.

#977

Pesam toneladas
as palavras orquestradas
sabendo que são perfunctórias.

24.3.19

#976

Segundo Beltrano (anonimato resguardo),
de fonte segura.
Alguém lhe testou o ph?

A melancolia adiada

A chuva constante
(uma memória distante)
servia o rio caudaloso.
Não se entende a sequidão de agora
a magreza das paisagens
mirradas
se há por aí tantas lágrimas derramadas
no epicentro de tanta melancolia
(um desporto favorito).
Ou as coisas é que mudaram:
ou a melancolia epicentro
foi gasta 
por um arremedo de aquecimento global
ou as lágrimas secaram
no penhor da rigidez das almas.

#975

(Descartes do meliante)
Logro
logo 
ludibrio.

23.3.19

Cartada

No tira-teimas mais teimoso
duvido que as dúvidas sejam ajuda
e a ajuda não se estima
no logradouro dos orgulhosos
(que a recusam).
Podemos ser apátridas
incansáveis perseguidores de quimeras
pescadores de versos improváveis
crianças perenes sem a parte pueril
argonautas com aguçado apetite
lutadores sem arena ensanguentada
e mesmo assim
devolvem-nos ao mar
as marés com que nos ornamentam
pois sabemos que o mar
é a haste da sabedoria.
No amparo da noite desenhado pela lua
atiramos à sorte a sorte contra o azar:
não sabemos ao certo
o mapa sem fronteiras
pois as fronteiras foram dissolvidas
no verbo que se não gasta
nem com languidez do tempo.
Por isso
pesamos as sílabas
como se fossem pedras preciosas
nenhuma sílaba deixada por dizer
no ouro inteiro que é gramática onde repousam
as bocas controversas.
E voltamos ao tira-teimas:
a pedra angular por onde se verte a angústia
o medo do medo maior
a partida
irremissível, sem remédio.
Oxalá houvesse um firmamento outro
por onde prosseguir,
dizem:
uma passagem
está por onde somos
meros intérpretes de vontade que não é nossa.
Perdemos o norte, o sul
perdemos das mãos a bússola itinerante.
Podemos emaciar o rosto
no sobressalto da finitude.
Até que um golpe de asa transfigura o palco,
subitamente irreconhecível.
Adiam-se as inquietações
e um pássaro generoso,
com a cobertura de suas asas, 
tudo cobre
e na sombra se distingue o chão húmido
a morada derradeira dos que capitularam
e dos que à capitulação se encomendam.
E, enfim,
já é possível transcrever estrofes proibidas
sem o medo do medo maior
sem sermos assaltados pelos vultos algozes
e da porosidade das pedras 
que compõem a montanha
sermos tutores do devir.
Apanhamos
os contornos do desenho em que somos rostos
e descobrimos um sorriso discreto
não forçado
a aquiescência da maré que tem lugar
sem ter data no calendário.
Bebemos no verso do dia
tiramos ao tutano da vida 
tudo que nele se contém
para devolvermos em dobro
até sentirmos a ossatura firme
um calendário sem páginas por dedilhar
e do copo subimos as paredes
fazendo nele as gotas tidas por evaporadas,
do corpo habilitarmos a muralha
de onde somos feitores.
Não aprendemos a dizer adeus;
refugiamo-nos nos braços do outro
curadores do corpo nosso
e do sexo trazemos o descuidado prazer
que ensina a geografia do infinito,
em oposição
aos manuais do entendimento.
O tira-teimas 
consome-se na sua infecundidade:
que desperdício de vida
estar à espera da morte
com o medo que ela infunde.

#974

Recomende-se vivamente 
a pira de nervos.
Na pira, os nervos são incensados
e ninguém precisa de ansiolíticos.

22.3.19

Vigilante

Dizem que o crepúsculo
não tem vidros
e os uivos da maré decantam
a desmaiada cor do entardecer.
Se soubesse
como cantam as areias beijadas pelo mar
queria para mim a palma de ouro
o leito sagrado das palavras não ditas.
Queria
um sonho intenso
enquanto os cães bulhavam na rua
e os latidos eram verso sem apocalipse,
um sonho por dentro de outros sonhos.
As muralhas servidas no rosto
úbere das lágrimas sustidas
ensinam os óbices superados:
não há mestres por aqui
e os versos entoam as preces sem vento
o temível, admirável declive da vida
e aprisionam a decadência
num quarto sem janelas.
Não quero o crepúsculo
nem me iludo com o sortilégio do entardecer.
Escavo com as mãos
as sementes que as há,
sedentas,
imensamente férteis
e trago a mim a terra molhada
máscara que reifica o corpo perene.
Enquanto
houver perenidade.

#973

Se o pé em riste
dá admoestação
o dedo em riste
dá que punição?

#972

Match point:
a estocada sem comiseração
epílogo em sala de espera.

21.3.19

Abreviatura

O mistério que adoça o peito
é feito de flores nascentes
um perfume destinado aos deuses
a crisálida estonteante
hasteada nos dedos exultantes. 
Não há de ser o sangue gutural
servido em veias vulcânicas
a separar a água do caudal;
a voz pinta a lua derradeira
e dos pássaros vem um canto fluido
o sucedâneo das palavras
as que teriam sido ditas
se o silêncio não fosse imperador. 
À volta sente-se a presença de vultos. 
Os corpos nus como floresta
os dedos entrançados como ramos metabólicos
os lábios que esperam beijos
de outros corpos nus. 
Decidam-se os hesitantes rostos
decidam-se
enquanto há maresia:
desde a noite superada
arrastam-se cadáveres em forma de pesadelo
(ou pesadelos disfarçados de cadáveres)
e o contrabando de tudo
parece o epítome da autenticidade. 
Nas loucas correrias que cortam a floresta
os cuidados esquecidos balizam
as armadilhas. 
Não sei se será do labirinto
e das suas formas coesas,
o mistério para o ser exige ser mistério:
ou será que alguém se propõe
a decifrá-lo,
desfazendo o mistério do mistério?

#971

As palavras que digo 
são as que escrevo
mas não escrevo
todas as palavras que digo.

#970

Chora os chacais
e chama a charada.

20.3.19

#969

Um tiro no escuro
uma bala encravada
nos contrafortes das probabilidades.
Uma bala não desperdiçada.

Propulsão

Por dentro da memória futura:
um lago desidratado
a névoa que se insinua na colina
a identidade sem vestígios
e o aparente algoz
hibernado. 

Conto os números
por distração. 

Conto as pessoas
enquanto desfilam à minha frente
e o café arrefece,
à espera de molhar os lábios. 

Não há notícias de tempestade. 

Evocações distantes,
perdidas no poço fundo da desmemória,
transfiguram o espaço em que se move
o tempo. 

Não há notícias do tempo
na sua indolência futura. 

O marégrafo constitui-se espectador,
ele que se esperava fosse ator;
a tirania do vazio
ocupa-se das empreitadas assinaladas
e os netos dos netos podem esperar
uma multiplicação do vazio. 

Não há notícias de tempestade:
o tempo corre pela cronologia arrastada
e os desenhos na ponta do dedo
dizem que as sombras se dissolveram
no seu movimento exíguo. 

Para fora da memória futura:
esvazio o armário
e fico à espera 
que as quimeras sejam adiamento 
perpétuo. 

#968

Da desobediente alma,
curativo meridional
em colheita nunca tardia.

19.3.19

Arte

Preces inacabadas
ou monumentos em ruína 
– nunca soube 
que metáfora se alinhava
no diadema das considerações.
E talvez estivesse no fulcro do mundo
a fáctica convulsão arrojando-se
contra o meu rosto
e eu,
simples erupção
vulcão modesto sem ninguém assustar.
Devo dizer
que não fora esse meu propósito; 
e que,
insisto,
sempre me foram indiferentes
as dores e as bebedeiras de júbilo
os disfarces e os rostos marcados
os ossos corroídos ou as atléticas esfinges
a decadência ou a opulência
que outros reprimissem ou ostentassem.
De todos os males, 
o menor:
não sou adestrado em preces
e não tenho medida de monumentos em ruína.
Há algo em mim
(sussurra uma voz interior
de que não conheço o timbre)
que me chama para outros quadrantes
destes que são incógnitos no diapasão que sei.
Outras páginas
outras paisagens
outros teares de imberbes palavras
outros cometimentos
outros lugares
outros mares com diferente salitre
outros ângulos do mesmo olhar
outros lagares onde a alma se refreia 
– uma anestesia, 
uma hibernação, 
uma coisa assim parecida.
Sei, contudo,
que tantos outros
(estes e outros outros que subam às paredes)
são a desmedida da medida que sou
e retorno às costuras de mim
no deleitoso palco em que sou eu
sem o embaraço da diferença
de um eu que não cobiço ser.

#967

Entrego-me
literal
e no sopé de mim mesmo,
curador do teu desejo.

18.3.19

Geiser

Arrumada a aritmética dos sentidos
agora sei dos vestígios do sol
antes de ser evaporado no entardecer.
Registo o voo dos estorninhos
os decibéis da coreografia
e de todas as metáforas palpáveis
escolho a que reputo de improvável:
as arestas do céu
minadas pelos rastos dos aviões apressados
moratória não divina,
apenas o sepulcral silêncio
em cima da carne crua

o peito sem amarras. 

Não me apetece regressar à aritmética. 
Os sentidos estão inventariados. 
Tenho uma página
à espera que seja seu síndico.

#966

Em tempos
tinha o Jornal de Notícias como pleonástico.
Hoje, com o império das notícias falsas,
é um vocativo.

#965

E depois havia os sonhadores,
os que não se conformam
com o dia em forma de vulto.

17.3.19

#964

Não tinha nada a dizer
às finas tapeçarias
esquecidas no lúgubre sótão.

16.3.19

Corpo refúgio

Tenho em minha posse
as posses que de que sou penhor
quando sou refugiado
no castelo sem terra
e exerço,
para meu grande deleite,
o dever de abraçar ao corpo
o corpo teu que é meu refúgio.

#963

Sem a sede do teu corpo
seria nómada apenas com um deserto.

15.3.19

Ditado

Empenho um adeus
no vale verdejante
onde as romãzeiras são sombra
e destino aos céus
o vulto enigmático 
do discurso sem armadura.

O poema é transitório.

Dos dentes do coiote
sobra o sangue perdido da presa.
Contingências da natureza,
a sua bruta feição
irreprimível
mas abismal ao olhar desprendido.

O mar sentido
porto de amaragem dos argonautas
decide sobre a pele ávida.
Ao menos ele,
o mar sentido
ancoradouro seguro
mesmo quando se enovela
em vagas medonhas.

Não temos mão na natureza.

#962

Nunca admirei o super-homem.
Os heróis
põem-me em pose de desconfiança.

14.3.19

#961

Não sei
se não soubesse
que não saber
é a melhor sabedoria.