20.5.06

Fragmentos

As coisas na sua contradição interna.
A criança pontapeia a bola
que se perde do outro lado do muro.
A velhinha arqueada
atravessa a rua desamparada,
pára o trânsito.
As folhas outrora esverdeadas
estatelam-se no solo, agora acobreado.
Um cão vadio erra sem norte
conduzido por onde o faro o leva.
Há pessoas na rua
destinos inverosímeis
caras sorridentes
caras carrancudas
umas destilam desconfiança congénita
antipatia defensiva a rodos.
Há quem olhe para o céu
enquanto deixa escapar um suspiro.
Acaso anseiam que o avião que traceja o céu
as levasse para bem longe
onde pudessem achar outro destino.
O mendigo vasculha o lixo
sabe-se lá em busca do quê
empesta as mãos desnudadas
carcomidas pela desventura dos anos.
Nos seus olhos baços
petrifica-se a muda existência.
Tem o cão como companhia fiel
com ele partilha os seus parcos víveres.
É para ele que esboça o seu único sorriso
que outras almas humanas outrora
o deixaram em solidão cortante.
O mendigo cruza-se com a criança
levada pela mão da mãe pressurosa
que a aperta ainda mais com o mendigo próximo.
A criança olha, surpresa,
para os andrajos do mendigo
vê a sua barba avantajada e deslavada
o cão bem tratado no paradoxo do quadro.
A criança
desconhece a miséria
não lha foi contada nas histórias de embalar
quando o dia se despede no sono.
A mãe esconde-lhe a pobreza
só consegue adiar a curiosidade.
Há-de crescer
deixará de ser criança
entregue à aprendizagem de si
e do mundo lá fora
tão habilmente sonegado pela mãe diligente.
A criança, já crescida,
perderá aviões na azáfama da jorna preenchida;
olhará para o lado quando a velhinha caduca clama,
na sua muda voz,
pela ajuda para atravessar a rua;
terá o incómodo de partilhar o passeio
com o cão vadio que vagueia, errante;
ficará insensível ao mendigo
estendido no chão
estômago ferido pela ausência de alimento,
de mão estendida pela piedade alheia.
A criancinha
já adulta,
terá apanhado o avião do fausto
cortinas cerradas para o lado fétido da vida.
A mãe zelosa,
culpada da encenação do mundo,
deita-se todas as noites
na ilusão de uma consciência aquietada.

Fragmentos

As coisas na sua contradição interna.
A criança pontapeia a bola
que se perde do outro lado do muro.
A velhinha arqueada
atravessa a rua desamparada,
pára o trânsito.
As folhas outrora esverdeadas
estatelam-se no solo, agora acobreado.
Um cão vadio erra sem norte
conduzido por onde o faro o leva.
Há pessoas na rua
destinos inverosímeis
caras sorridentes
caras carrancudas
umas destilam desconfiança congénita
antipatia defensiva a rodos.
Há quem olhe para o céu
enquanto deixa escapar um suspiro.
Acaso anseiam que o avião que traceja o céu
as levasse para bem longe
onde pudessem achar outro destino.
O mendigo vasculha o lixo
sabe-se lá em busca do quê
empesta as mãos desnudadas
carcomidas pela desventura dos anos.
Nos seus olhos baços
petrifica-se a muda existência.
Tem o cão como companhia fiel
com ele partilha os seus parcos víveres.
É para ele que esboça o seu único sorriso
que outras almas humanas outrora
o deixaram em solidão cortante.
O mendigo cruza-se com a criança
levada pela mão da mãe pressurosa
que a aperta ainda mais com o mendigo próximo.
A criança olha, surpresa,
para os andrajos do mendigo
vê a sua barba avantajada e deslavada
o cão bem tratado no paradoxo do quadro.
A criança
desconhece a miséria
não lha foi contada nas histórias de embalar
quando o dia se despede no sono.
A mãe esconde-lhe a pobreza
só consegue adiar a curiosidade.
Há-de crescer
deixará de ser criança
entregue à aprendizagem de si
e do mundo lá fora
tão habilmente sonegado pela mãe diligente.
A criança, já crescida,
perderá aviões na azáfama da jorna preenchida;
olhará para o lado quando a velhinha caduca clama,
na sua muda voz,
pela ajuda para atravessar a rua;
terá o incómodo de partilhar o passeio
com o cão vadio que vagueia, errante;
ficará insensível ao mendigo
estendido no chão
estômago ferido pela ausência de alimento,
de mão estendida pela piedade alheia.
A criancinha
já adulta,
terá apanhado o avião do fausto
cortinas cerradas para o lado fétido da vida.
A mãe zelosa,
culpada da encenação do mundo,
deita-se todas as noites
na ilusão de uma consciência aquietada.

Manifesto da rebeldia militante

Amotinados
rebelam-se no ardor das causas.
Entregam-se às faíscantes lutas
desenfreadas bebedeiras
ideia emproada em razão só,
sem contestação.
Rebeldes
feridas por cicatrizar
pela relutante caminhada
por janelas com vidros quebrados
cravados na pele rija das palmas dos pés.
Ensandecidos parecem
ao puxar o lustro à razão das ideias.
Cegados por uma vara lancinante
andam aquém do discernimento,
fugazes entre as constelações do ser.
Emparedados no rigor da doutrina
agrilhoados a estreitos túneis escuros
onde a luz não ousa penetrar
tão pesados os muros
tão densa e fétida a atmosfera.
Amotinados
no suave apascentar da modorra
protestam,
a voz alta,
contra a acalmia anestesiante.
Tudo o que querem
é romper com as águas paradas
que se abeiram da estagnação letal;
outro quadro sem dóceis consentimentos
pessoas falantes sem o estigma do rebanho
que segue,
ordeiro,
pastores aviltantes.
Domina-os o método:
não o admitem,
acaso a pardacenta existência mudasse
e almas recobrassem o hélice enérgico,
eles iriam em busca de outro paradigma
outro furioso desencontro com a normalidade.
Eternamente insatisfeitos
neles
(e por eles)
fermenta o desprazer.

16.5.06

Gato atropelado

O gato morto
preto
a ser retirado da estrada.
Um homem
papel na mão
pega o gato pela cauda.
Sepulta-o na relva imunda
de beira de estrada.
Desfaz-se do papel
cospe para o chão
o ritual no nojo do acto.
O cadáver
ao menos
descansa do esquartejamento
por apressados automóveis.
Não será um enojado e indiferenciado
amontoado de carne triturada
a esvanecer-se com os rodados
que martirizam o que já nem cadáver seria.
O destino fatal do gato:
mais honroso
na coragem daquele homem
que dignou o apodrecimento final
do cadáver do infeliz gato.
A desdita tem momentos de sorte.
E vale alguma sorte
quando
cadáver já feito
ao bicho
a indiferença dos despojos?

14.5.06

Violinos dançantes

Canta-me a tua voz
o som melodioso
das cordas de um violino
debruado a ouro.
Os sussurros que entoam no ouvido
a mágica melodia da voz convicta
voz cálida que aquece os sentidos.
Vale a voz por mil instrumentos
como se orquestra fosse.
Uma afinada orquestra
que povoa o imaginário
com paisagens verdejantes
o céu pontuado por nuvens arquitectónicas
os montes que anunciam
férteis vales onde se descobre o rio
que retempera os sentidos.
Lá, onde as rãs coaxam
e os pintassilgos vivificam melodias piadas
onde a tua voz
me conta as coisas que quero ouvir.
Os acordes soltam-se
na finura das palavras selvagens.
Escoam-se com o tempo;
pudessem emoldurar o tempo
quando elas faziam acreditar
que vivíamos numa fotografia do tempo.
As ilusões são isso mesmo:
enganos dos afectos
emoção que deslumbra os sentidos.
A musicalidade da voz,
na entoação sublime das cordas dos violinos,
apenas uma dança imaginada
no tempo em que as ilusões eram reais.
Guardo na memória
a melodiosa voz que pertencia às ilusões.
Retenho comigo
o violino de onde essa voz se soltava.
E se a frieza de um coração empedernido
repôs a ilusão no quarto das recordações
tenho em mim o violino harmonioso;
não vá dele necessitar
por as ilusões reclamarem espaço
algures
num destes dias.

9.5.06

Sagração da alvorada

Os primeiros raios de sol
anunciam a luz clara.
Tonifica-se a alma
tinge-se o espírito com a frescura matinal.
Há na alvorada uma magia incomensurável.
Quando chega, discreta,
rouba a noite escura.
As cores e os odores renovam-se no que são.
Ganham vida
e emprestam-se ao ambiente
sequiosos da simplicidade da luz solar.

Primavera.
Amanhece mais cedo.
Os olhos estremunhados acordam
bebem a renovada luz do dia
pespegando o sol que,
breve,
alto vai cintilar.
Quando a alvorada gentil cedo se levanta
há um canto do dia escondido
na penumbra nocturna que ficou atrás,
derrotada na luz triunfante.
Vaga imparável
esquadrinha os cadinhos do céu.
Pinta-o de azul.
Antes há-de tingi-lo,
por instantes,
no alaranjado rubor do sol
que trespassou o breu nocturno.

Os pássaros acordam primeiro.
Deliciam-se com a mágica alvorada
no chilrear exuberante nas copas das árvores.
Pressentindo a luz caridosa
as flores soltam-se do resguardo nocturno.
Pássaros e flores
mão dada com a alvorada,
hospedam os transeuntes
(ainda a sair da letargia do sono)
para o dia frenético na cidade desassossegada.

Quando o sol se põe alto
já adolescente,
a alvorada despede-se na manhã.
Sem o encanto da alvorada branca
nem o sossego das ruas desertas.
Fina-se a alvorada
quando as ocupadas almas
batem a porta de casa e saem.
Vigorosas ou contrariadas,
apressadas ou lânguidas ainda,
para a rua já fremente.

Outra alvorada à espera
ciosa da luz
primeiro trémula, depois refulgente.
A saciar o apetite dos fogosos e indomáveis
amantes do bodo da vida.

8.5.06

Sapiência dolorosa

Unges a tua erudição,
pérolas agraciadas aos incultos permanentes.
Colocas-te no Olimpo dos sapientes
tradutor da instrução dos asnos impenitentes.

Deambulas nas danças insondáveis
pequenos os passos incompreensíveis.
É na erudição tão elevada que te refugias.
Até de ti mesmo.

Um dia,
tão inebriado
com assanhado conhecimento
esqueces-te de pôr o olhar em ti mesmo.

Ao despertares das incuráveis tarefas
da sapiência que espalhas,
vês ao espelho quem não reconheces.
Já não és tu, apoderado pela criatura em que te tornaste.

Virá o tempo da redenção.
Livros, enciclopédias,
mais os dicionários,
estulta matéria-prima de um desassossego.

Virás a tempo de recuperar o tempo?
Emancipação do castelo onde te aprisionaste
tocar nas pessoas, ora de caras belas
ora horrendas faces com verrugas e tudo mais.

Falar, sair do altar, caminhar
andar por sítios escondidos da tua torre de Babel
e saber que a ignorância que foi teu combate
é a aura de um povo tão feliz.

Só não saberás:
se renascido estarás
ou endemoninhado pela cruz que te crava
chaga ardente bem fundo.

6.5.06

Sonho, loucura

O sol de rompante tingido de vermelho.
A ruborizada cara da tímida desmascarada.
Máscara dos foliões do Carnaval das ilusões.
O desengano acometido aos passionais militantes.
A crença cega: ideias, pessoas, superstições.
O gato preto escondido dos que o esconjuram.
A ignorância que fermenta com a bonomia dos incautos.
Olhos fechados ao mundo, acríticos seres que vegetam.
Anomia interior que desagua num árido deserto.
Pisam areais escaldantes,
as areias que espalham miragens encantadoras.
Ensaiam sonhos do que não são.
Em miragens mais se revolvem
como se as areias crepitantes fossem
os lençóis que os aquecem.
Contemplam estátuas grandiosas
que só aparecem diante dos seus olhos.
Estátuas que enobrecem feitos impossíveis.
Quando acordam
assustam-se com a exiguidade do quarto que os aprisiona.
Amordaçados,
sem acesso à palavra que chama por socorro,
das amarras da camisa-de-forças já não se libertam.
Quando beijam a acalmia
percebem a ilusão dos sonhos que os mantêm ligados à vida.
Apetece cerrar os olhos
mergulhar no profundo sono,
sorver os sonhos idílicos,
paisagens brancas,
onde tudo é alvura
(o céu, as estrelas, o mar, a relva).
Como branca é a nuvem onde levita a liberdade esquizofrénica,
apenas uma liberdade onírica
fantasiosa
nua
na crueza do nada que bafeja bem alto
quando os sonhos já estão a pedir para serem sonhados
outra vez.
Aí sabem que levitam
na leveza que jamais os visitara,
passos lentos que pousam em nuvens almofadas.
Lá, onde as pessoas têm faces límpidas
olhos encantados pela luz pura;
onde os dedos se entrelaçam no afecto irreprimível.
Com o tempo
aprendem a viver espoliados do discernimento,
a droga vital e adorável
lenitivo da aquietação compulsiva.
A tranquilidade exasperante que nunca incomoda,
trajecto sem curvas nem encruzilhadas,
cumprido a eito, sem esgares,
ou um mar nunca encapelado
nem quando o vento fresco se deita
no mar que teima em ser chão.

Fogem,
fogem das coisas que são
das pessoas que existem
fogem deles mesmos quando fantoches alheios se tornam.
Ou apenas fantasmas propositados que se ensimesmam.

2.5.06

Ode à vida

Há almas que encontram paz na morte.

Sei que virás.
E sei que preparado não estarei
para te receber.
Pintam-te de negro.
Esconjuram-te, ensandecida és,
por desapertares os nós da vida.
Doentia e fatal
chegas um dia e ceifas a respiração.
Saltitas entre a penumbra,
para que ninguém te veja quando,
traiçoeira,
sorves ingénua alma para o alçapão.

Tu chegas a todos os mortais
que o são,
terrena e frágil condição,
por tu seres o que és.
Vestes de negro
quem chora a perda de quem levaste,
antecipando o choro invisível
da sua própria partida,
quando decidirdes que o indómito dia chegou.

Por tua culpa
vilipendiam o preto,
tu que cobres com manto de tristeza
os que sofrem com a despedida de quem levas
contigo.
Desapiedada,
dizes-te fiel da balança,
penhoras o equilíbrio da espécie.
Dizes-te
cultora da demografia aceitável.
E contudo
és cega quando tomas em teus braços
os mortais que o deixam de ser
quando se despedem dessa condição.
Será por isso que te dizem traiçoeira?

Por mim podes vir quando quiseres.
Convenço-me que sim,
que podes vir quando quiseres.
De preferência,
sem hora nem dia marcados.
Cá estarei,
não de braços abertos,
na jactante luta contra ti.
Há vida tanta por viver
que um sopro resoluto te afastará
Para algures,
um sítio que nem sei onde.

Virás,
as vezes que vieres,
e terás um obstinado amante da vida
insaciável no apego das coisas,
das pessoas, dos afectos.
Insaciado ainda por tanta vida haver.
Esse é o bolor que te incomoda,
ó morte tenebrosa:
para longe,
longe do horizonte.

30.4.06

O quarto gelado

Num losango iluminado
rangem os dentes,
tiritam com o frio não aquecido
pelo losango.
Lá pertencem
os ossos dobrados
pelo ressequido, gélido ar que dói.
Nem agasalhos
nem uma bebida quente
para resgatar os corpos do torpor.

A noite longa promete saga interminável.
Os corpos abandonados ao gelo
olham para a fumarola soltada
pela respiração resignada.
Na janela depositam-se os cristais de gelo.
O ar límpido
desnuda a lua cintilante,
empresta a nitidez ao ar cortante.

Naquele quarto
apenas o silêncio quebrado
pelos corpos incomodados
– que se movem no encalço do calor
no ensaio da ilusão do frio translúcido.
Ou o silêncio violado
pelo gemido dos dentes,
pelo frio tão letal.
Os corpos aninham-se
fossem adivinhar que o ninho
descobre uma réstia de calor.

O gélido chão entra pela carne
apodera-se dos músculos
enraíza-se,
toma conta dos ossos.
Algures a meio da noite
a dormência latejante anestesia os sentidos.
Dedos que não se sentem
o frio que deixou de ser uma dor
ou os sentidos que se ofuscam.
Alucinam os sentidos
enganando os corpos já entorpecidos.

Ou se apressa a aurora
ou o fantasma da despedida acena,
sorrateiro e indesejado,
cruzando as paredes de madeira.
Ou se apressa a aurora
semeando a luz que afugenta
as armadilhas dos precipícios,
ou o maior dos cadafalsos,
ali encerrados,
no refúgio derradeiro.

A luz aguada do losango
mantém os olhos acordados.
Impede que os olhos se recolham,
quem sabe?,
no derradeiro adormecimento.
Tomara
que luz tão tímida
franqueie o portão ao majestoso sol.
A alforria daquele cárcere necessário.

26.4.06

Frágil incerteza

Que mistérios explicam a fragilidade
de uma massa tenra e, contudo,
pétrea?
Por mais voltas que dê
não sei onde encontrar
a nascente da fonte que me sacia.
Revejo as voltas que a água dá
montanha abaixo:
plácida no estio
vertiginosa no dilúvio que se deita
nos contrafortes da serra.

Ainda que os olhos sejam as testemunhas
da dureza da pedra
os recortes da água descendente
desnudam a fragilidade da granítica serra.

Nem sempre a vista alcança:
onde se esconde a fragilidade
na penumbra da imperturbável rocha,
ou a coriácea força que levita
de um corpo tão frágil.

Um quadro
com as pinceladas da antinomia,
onde as coisas certas estão fora do lugar.
Nem as certezas são seguras
na indefinição dos termos.

É a altivez das coisas que se redescobrem
não no seu contrário
mas na sua essência esquadrinhada.

22.4.06

Louco errante

Vagueia, perdido.
Nem sequer carente
de um ponto cardeal
na bússola que não tem.

Desencontrado da lucidez
mete fala com os passeantes
remexe o lixo
e nada nem ninguém procura.
Deambula em desnorte
nos andrajos propositados
calças desafiveladas varrendo a sujidade
camisola coçada e rota
manchas de vinho tinto nas mangas.

Erra pelas ruas da cidade
desafiando a placidez dos bem-postos cidadãos:
uns incomodam-se
desviam a cara no refúgio da hipocrisia;
outros guardam a perturbante imagem
não se desenvencilham do incómodo.

Com um esgar alucinado
assusta a criancinha que passa.
Da progenitora tão protectora
vem a reprimenda ao louco,
dedo em riste,
“que maçada, que maçada”.

Atónito,
o louco errante
fecha-se na luz escura
do quarto de onde nunca saiu.
A criancinha,
um petiz como ele,
a guisa de brincadeira
que apressados adultos de dentes cerrados
não são mestres.

O louco não se entristeceu.
Nunca marcou encontro com a tristeza;
nem sabe onde encontrar a alegria.
Tristeza, alegria, choro, riso
acidentes no mapa que tacteia
pelos anos fora.

Saltando de passeio em passeio,
ora querendo ir em frente
ora ameaçando que recua,
o mundo insondável do louco errante
tresmalhado do rebanho dos lúcidos.

Irado parece
na prisão dos tortuosos becos onde desagua.
Ou apenas a suave opressão da tranquilidade
não ser achado nas contas dos deveres
que aos lúcidos pesam.

20.4.06

Voz salgada

As palavras levitam
atiram para cima de todos
o sal quente da tua boca.

Tanto há-de ficar por ouvir
mais o sabor perdido do sal
das palavras por entoar.

Pelas articuladas palavras
que ecoas,
as algemas de ti mesmo.

Sobem dos pulmões
vomitadas com o ar ofegante
dos sentidos alterados.

É o sal da vida,
emoções desenfreadas
sorvidas no cálice frio.

Essas palavras,
mais as que estão por dizer,
o cativeiro dos empenhados.

Extasiam-se,
como se salgada
fosse a plenitude da vida.

Nos sonhos e nas evocações
é essa voz salgada
que desfralda no alto mastro.

Voz que açambarcou
todo o sal de todos os oceanos,
agora só um legado de insípida água.

Houvera alguém de aprender
a destilar o salgada tua voz
e a desdita firmada na pequenez das palavras.

O sal da tua voz é o ouro valioso
o penhor da grandeza das palavras
que soam, cantadas, com o sabor salgado.

19.4.06

Espólio

As cinzas adornam as páginas dobradas.
Um restolho que passeia na memória,
o espólio do tempo fugido.

Na máquina do tempo
as imagens percorrem a tela
fogem quando as quero reter
por uns instantes.
Recordações
que fazem esboçar um sorriso,
ou
experiências dolorosas,
quantas vezes de uma dor procurada
como caçador furtivo
persegue a sua presa.

Eram tempos
em que a tristeza
não queria viver abandonada.
Tempos
do ar plúmbeo
cores carregadas com as sombras
sempre presentes.

Desse tempo
guardo feridas já saradas.
Revejo as cicatrizes abertas
o vermelho carmim do sangue exposto;
revejo-as
património da indecisão,
o fausto manjar da perturbação
sorvida com deleite.

Desse tempo
apenas o restolho que foi pousando
com a calmaria dos anos.
O espólio nos meus braços,
enternecedora imagem
do ontem não renegado.

Apenas vontade:
não dedilhar as páginas para trás
deixá-las inertes no seu sono eterno.
Houve tempo que passou:
empedernido
esquálido
emoldurado
numa fotografia que retenho,
o sopro gélido que petrifica a memória.

Só isso,
e nada mais,
quero do tempo ido.

18.4.06

Vulcão domesticado

A aeronave filma o vulcão,
temerária,
no voo de pássaro.
Mostra a cratera do vulcão
como ninguém a descobre
do sopé da encosta.
Uma larga boca
vomita as fumarolas
que adivinham lava incandescente
a ser regurgitada
– só não se sabe quando –
das entranhas da cónica montanha.

O cinzento
tomou conta da paisagem.
Cobre-se com os fumos
fugidos das frinchas que irrompem
das basálticas rochas.
A montanha troa,
irada,
assusta quem não a conhece.

Os nativos,
habituados ao mau humor do vulcão,
convivem com a feérica actividade.
Não querem temer
a distracção dos elementos:
o arrebatador mar de lava tórrida
ladeira abaixo,
tragando o que encontra
até repousar no fim do declive.

Têm pesadelos:
o vulcão,
furioso,
a vomitar lava que explode
num tétrico fogo-de-artifício.
Na aurora humedecida
olham de relance para o vulcão.
Fitam o cume
na ansiedade de quem clama
pelo sossego da grande montanha.

Sé então,
serenados espíritos,
descem os olhos
pelos contrafortes da montanha.
Há gerações
sempre o mesmo ritual:
um coração inquieto
pulsa veloz
desperta dos pesadelos
com a aura da bela montanha.

Tementes,
orando todos os dias
para que um bom deus os proteja
de um vulcão que promete
despertar.

11.4.06

Mar arrebatador

Desta terra
levo comigo o oceano.
As lágrimas que nele tumultuam
com a espuma fina que se perde
nas rochas enegrecidas.
Todo o sal que cristaliza
nas pedras gastas pela fúria das ondas.
A dor,
a dor sussurrada
pelos gemidos das ondas em dias de tormenta.
O odor da maresia
que invade a ossatura
nas húmidas noites de Verão.
À mistura com o nevoeiro
que se alimenta na maresia invasora.

Desta terra
guardo as imagens do mar tão belo.
Dos pescadores
e da sua imperial paciência,
das traineiras que fogem do rio,
remam contra a embocadura do estuário,
como quem se mete na boca do lobo.
Das gaivotas
em coreografias dementes
na demência de quem busca alimento
entre os restos já desaproveitados.

Desta terra,
o mar,
ou apenas
o longo lençol azul
que se deita na calmaria da brisa.
Longo mar,
infinito horizonte,
o travo ora doce, ora amargo,
demoníaco ou sublime
curador de exaltações singulares.

Partirei,
levando em mim
a lembrança
de toda esta água salgada
que inspira.

Nos meus olhos
todas as gotas do mar imenso.

9.4.06

Roseiras bravias

Das roseiras
o bailado de odores.
Ungido pelas pétalas
que foram leito
das dóceis gotas do orvalho
nocturno.
O sol da primavera,
já alto,
fornalha incandescente
que devolve o orvalho
ao etéreo.
Reluzem as pétalas
das rosas douradas,
tingidas num quadro de ostensiva
beleza tranquila.
Singular sabor
hibernação nutrida
na coreografia
das cores
e dos aromas
das rosas.
Para quem as quiser contemplar.

4.4.06

O navio candeia

Quando era pequeno
o navio aportava nas águas calmas.
Trazia no porão
o sal das terras distantes;
a miragem de terras
que nunca hei-de ver.

O navio
com a escolta de rebocadores
extasiados com a visita.
Já não sulcava as águas paradas,
empurrado pelos bravos rebocadores
até ancorar no cais velho.

Mostrava o garbo
da muita mercadoria empacotada
nos enferrujados, sujos contentores.
Ficava parado,
dias,
à espera
da lenta marcha dos estivadores
do langoroso desembarque da mercadoria.
Esvaziado de algum conteúdo o navio
outra se encavalitava
nos corredores desamparados.

Dava o navio
notícias do progresso do mundo.
Para mim
o repositório do navio vagarosamente
entrando no porto
hasteando uma bandeira colorida
que esbraceja tão devagar,
no ritmo de uma brisa
inesperadamente tranquila.

Envelheci.
Perdi o rasto do navio.
Só não sei
se a falta de tempo
– ou a desventura do navio ter fugido da minha vista –
selou o decesso do grande barco.
Não sei
se foi desmantelado
num longínquo estaleiro
nas águas gélidas do Báltico.
Ou se a surpresa reserva mais visitas
que saltam fora da minha órbita.

Qualquer dia
estou de visita ao porto.
Espero pelo navio
como quem espera por regressar
à infância deixada lá atrás.

No tempo do rasto perdido.

3.4.06

Parque das nações

A suave doçura das framboesas
crepita.
Contrasta com a acinzentada luz
das nuvens que escondem,
tímidas,
o temerário sol.
Lá fora,
as pessoas passeiam
digerem vidas atribuladas
esventram as sinuosas curvas da vida
no gelo quebrado pela tepidez
primaveril.
Não as crianças:
na algazarra
só conhecem a inocência da bondade.
Os mais velhos
ora repousam na esplanada
ora palmilham a calçada que adeja o rio.
Dão tréguas aos espinhos aguçados
cravados na garganta sangrada.
A hora do descanso,
refrigério dolente
um tempo que apetece imortalizar.
Não,
os espinhos crivados
não derrotam os sentidos;
só o perfume das framboesas
repousando na boca
no hiato das adversidades.
Oxalá
todo o tempo fosse
captura dessa
bonomia.

(Lisboa)

28.3.06

Perfume

Na tua pele
o aroma exaltado das amoras.
Fragmentos,
alva ou ruborizada
apetece tragar as pétalas perfumadas
soltadas de cada poro.

Às vezes adormeço sobre ela.

No vento soprado
vem o hálito que reconheço na tua pele.
Ou nas velas que incendeiam a noite escura
o odor roubado à tez esbranquiçada.
Um percurso sem espinhos,
aveludada avenida,
tactear vagarosamente os centímetros da tua pele.

Ungida pelos dedos extasiados
com a fragrância de morangos silvestres,
tágide que recobras os sentidos.
A pele adormece
saciada nos sentidos
e a cabeça repousa no leito que ela oferece.
Vertem-se as lágrimas enxutas
e a tua pele é o santuário onde os dedos
sabem dançar.
Esboçam estátuas imaginárias
contornam as curvilíneas dobras
que escondem mais mistérios.

Na repetição dos dias
há sempre novos segredos
resguardados na tua pele.

21.3.06

Dez minutos

Dez minutos
para dizer poesia.
Para estender a mão.
Olhar bem fundo, nos olhos de alguém.
Dez minutos chegam
para cativar a temperança.
Pequenos gestos
fortuitos ou pensados
espontâneos ou provocados.
Nos dez minutos
em que a nuvem passa
encobre-se o sol
e as cores tingem-se de sombra.
Nem assim,
dez minutos algures e depois,
o rasto da luz se perde no sempre.
Dez minutos
Hão-de tardar senão
em derrotar a sombria obstinação.
Tarefa singela:
Só, e só apenas,
dez minutos de contemplação.

14.3.06

Lampejos da primavera

As cores enrijecem
no troar da cálida temperatura;
anúncio da invernia que se despede,
em breve.

O cansaço do frio que torce os ossos
e da chuva-sempre-demais
– mesmo quando rareia –
apregoa outro hemisfério.

Pássaros
em voos inebriantes
cantam a alegria de contágio às pessoas,
em breve.

Das árvores
desponta um tímido, mas alegre, bouquet
o perfume que abre a porta
do armazém dos pesados agasalhos.

As pessoas soltam-se do acabrunhamento
no aligeirar dos corpos
que querem respirar
por todos os poros abafados pela invernia.

7.3.06

Desintoxicar

Fugir
no tempo que há
longe da matilha palavrosa
sem saber onde
é o refúgio.

Cura de desintoxicação
e demanda do belo
que rareia
como volúvel é o ar na altitude
da montanha.

A singeleza de pequenos passos
como se o terreno
pudesse ser dedilhado
e todas as pequenas pedras
apanhadas do solo.

Em todas elas
a impureza escrita
do solo pedregoso e sujo;
retiradas ao solo
purificadas na mão hospedeira.

Pequenas pedras
disformes, angulosas,
disfarce da putrescência
que clama o refúgio,
pedras agora debruadas a ouro.

5.3.06

O outro lado do espelho

Os olhos retratam o que vês
deste lado do espelho?
Será um sonho, a visão
deste lado do espelho?
Seja a fantasmagoria
que te acompanha;
ou a fuga do cenário medonho
que te leva a ver as coisas
deste lado do espelho
– quando, afinal, estás do outro lado do espelho.

O corpo não te deixa passar a linha
deste para o outro lado do espelho.
Quando cerras os olhos
e mergulhas no denso sono
duvidas de que lado do espelho
te encontras.
Tudo, apenas,
uma miríade de incógnitas.
Se certeza há é a ausência
da certeza.
És dois hemisférios,
dividido entre ambos os lados do espelho.

Ponhas o pé de um lado ou do outro
inquietam-te as sombras doentias
de te saberes abandonado do lado fugidio.
Percebes as vozes que gritam
do lado de lá do espelho,
a confusão de palavras que se atropelam
a absurda linguagem sem sentido.
No lado em que ficas
só há silêncio
um silêncio que ensurdece
os ouvidos repletos de loucas vozes
que vozeiam palavras vãs.

No sono
a moldura de um pesadelo:
a encenação do que acreditas ser
na vida em que estás acordado.
Quando a aurora te resgata do sono
a inércia da desrazão fala alto:
se quando sonhas
não são apenas sonhos de que sonhas
um turbilhão que te sufoca
em camadas mais densas
de te não saberes existência.

De olhos no espelho
sempre com a inquietante lucubração
de que outros olhos,
porém teus também,
te fitam
do lado de lá do espelho.
Na louca ansiedade loquaz
levantas o espelho:
só parede.
Nem o reverso do espelho
alguma coisa esconde,
a não ser uma tela acastanhada
o biombo do outro lado do espelho
um mistério por revelar.

14.2.06

Namorados perenes

A beleza discreta.
Palavras frontais que desarmam.
Dedos quentes que percorrem com prazer
O meu corpo.

Quis-te dar tudo.
O sol de todas as cores.
Pintar os quadros mais belos
Pintar a tua pele macia,
um resplandecente sopro
que trouxe pureza de ar.

No teu altar
percebi como as coisas são:
reais, não imaginadas.
Caí em mim
agraciado pela temperança
de seres tu ao meu lado
namorada, sempre namorada.

À noite,
encamisados nos lençóis que nos recolhem
só um beijo
para a renovação dos sentidos.
Parece pouco;
na idealização do amor impossível, decerto.
não é de impossibilidade que careço.
Apenas palavras curtas e acertadas,
gestos sublimes e tão intensos.

Sentir
que há alguém
que divide uma vida
alguém
que franqueou as portas da sua vida
à minha existência.

Uma partilha.
De mim por ti, em ti por mim.
Um travo adocicado
que dá sentido aos sentidos.
Olhares, pele, carícias, palavras.
Ternura.
Um património que soubemos levantar.
Nosso.

11.2.06

Matéria solúvel: cartilha do agnóstico

As cortinas da metafísica escondem
almas torturadas por divindades estarrecedoras.
Oram verdades inconsubstanciáveis
para o rebanho calar no véu da fé.
A cegueira de quem teima em ver na escuridão.

Os sacerdotes, metidos nos seus trajes,
vomitam a verdade, lava rubra,
como escaldante será à boca do vulcão;
patrulham a vida dos crentes,
uma porta aberta para a candeia dos sacerdotes.

Pregam a virtude a viciosos seguidores:
volúvel prédica, só encher o verbo
tão fátuo como o não foi
todo sangue derramado
em nome de superiores credos.

É a lava fervente que jorra colina abaixo.
Repousa nas ladeiras
Cristaliza convicções
Leva a vida de quem dela espera
terapêuticas virtudes.

Espera-os o remanso da vida prometida
que chega mal os olhos se cerram
definitivamente
numa escuridão relapsa
Torturante nada tão angustiante.

Das fés germinaram sementes de ódio;
pelas fés, espalhadas por todas as terras,
sinais da antítese do que elas reclamam ser:
morte em vez de vida;
ódio em nome de um amor retórico.

10.1.06

Em demanda da ternura

Escolher para ti um trono de ternura.
Regressar aos beijos
repousados na tua pele branca.
Soltar as amarras
que enregelam os afectos.

E depois,
pela noite,
acolher-te nos meus braços
residência dúctil para a tua fragilidade.
Sem aprisionar a leveza escondida.

Lá fora,
enquanto sopra a ventania invernal,
escondem-se os fantasmas de antanho.
Braços férreos empurram-nos
para latitudes distantes.

Os fantasmas,
como o vendaval,
escurecem a gélida distância cultivada.
São a bolorenta lassidão dos dias
que se dobram, repetitivos, esquálidos.

Há lugar a toda a ternura de outrora.
Haja força para derrotar
as vesgas madrastas que não ficaram vergadas.
Rancorosas, teimam em fertilizar
a pantanosa existência.

Haja forças; mas encontrá-las,
mister difícil?
Só nas acabrunhadas facetas
do asceta que vive mergulhado
na escuridão de afectos.

Varram-se as lâminas pedantes
das profecias negras que ondeiam;
Enxotadas sejam
e reentre o excitante hábito
de saborear as pétalas adocicadas da ternura.

Outra aventura será só misericordiosa
do pleito pela comiseração.
Camisa-de-forças anestesiante
que faz passar os dias
como se longos minutos fossem.

Perder o tempo,
ele já tão fugaz?
Tontice de um louco
que não escuta a poeira louca
apoderada dos seus sentidos.

Tudo ou nada
– sem lugar ao intermédio.
Ou a nau que parece parada;
no rebobinador da existência,
a consciência que andava, sorrateira.

Inércia letal,
divã de um comodista apaziguamento.
Recobra a quentura em ti,
espolia essa inércia
nas prateleiras do perdível.

Saberás então
que um sussurro lânguido
preenche todo o espaço
que vai daqui até à lua.
Ela, vigilante, espera pela demanda.

31.12.05

A neve, a ardósia e os lírios

Os lírios dizem-me tudo.
Evocações escritas a giz
numa ardósia.
Lá fora
a neve semeia-se
esbranquiçando o solo.
Lembro-me:
do negro da ardósia
e do alvo manto de neve.

A ambivalência dos opostos.

Pelo meio
o amarelo dos lírios
estende uma mão
entre os desavindos contrastes.
Que se purificam
através do amarelo dos refrescantes lírios.
A ardósia serve de tábua
onde vertidas são as memórias
da gélida neve repousada ao acaso.

A mesma neve que refugiou os lírios
na invernal hibernação.

17.12.05

Ilusões de óptica

Como se acordasse,
agitado,
na interrupção de um pesadelo.
Temia o túnel exíguo e escuro
por onde só conseguia rastejar
num sufoco claustrofóbico
a parte nenhuma vai dar.

Ver
que na desembocadura do túnel
lá na porta que o cerra
não está uma enxurrada de água
que me empurra na torrente.
Cabeça mergulhada na água borbulhante
pulmões a sorverem água
que tira a respiração.

Ver
que é um pesadelo,
apenas.

Já consigo ver,
como se fosse o periscópio que rompe a água
e traz a ofegante respiração de volta,
só um pesadelo.
Agora vejo o céu azul, ´
que nunca pareceu tão azul,
tão brilhante.

Vejo
os pássaros que voam
na onda da brisa marinha.

Vejo
um par de namorados,
na solidão refugiada do farol,
que se beija longamente.

Vejo
o areal dourado
que recebe os lampejos do sol.

E vejo
Tudo o que os olhos captam
na convocação dos sentidos.

Vejo
excitações perenes que trazem sentido
à vida.

Vejo
com os olhos
sinal que a vista testemunha
uma vida bem presente.

Não me canso de ver,
tudo a toda à volta,
curioso de mim mesmo,
fosse viandante num cosmos
preso nas minhas mãos.

E, enfim,
vejo.
Ou quero apenas
ver aquilo que vejo.

25.11.05

Folhas outonais

O solo é o leito das enrugadas folhas.
Um eco outonal,
o desprendimento das folhas caducas.
Dantes embelezavam árvores
tingiam-nas de um acobreado mágico.
As árvores despedem-se da folhagem inerte,
paradoxal desnudamento para a intempérie invernal.

Ficam os galhos
a coragem de levitar ao vento agreste
de acolher as pesadas gotículas que sedimentam com o frio.
As folhas hibernam
refugiam-se da inclemência dos elementos.
Folhas inanes de coragem
primeiro perdem o verde reluzente
ganham um vermelho que, carcomido,
se vulgariza num castanho fúnebre.

Caem, enfim, na leveza da brisa imperceptível,
ou fustigadas pela ventania
que anuncia a estação severa.
Jorram das árvores com abundância.
Chegadas ao chão,
são calçada para os pés
viscosa matéria quando nelas repousaram
as caídas gotas de chuva.
Até que zelosos lixeiros as recolhem
deixando à mostra um tristinho cenário
– um nada, árvores despidas, o chão friamente vazio,
o vento que sopra com amargura,
o frio pedindo uma bebida quente.

As folhas vieram até ao solo.
Convidam ao refúgio no crepitar da lareira.
E tal como as árvores se escondem das folhas
– ou as folhas fogem das árvores –
os corpos tiritantes de frio exilam-se
na retemperadora chama da lareira.
Um Inverno
clamor ao deserto das ruas.