11.10.16

Perguntas de retórica

E se as palavras doces
só fossem escritas em ardósia?
E se os sorrisos abertos
só fossem provimento do outono?
E se as mortes serenas
só fossem caução noturna?
E se as moedas com trato
só fossem tradição fiduciária?
E se a confiança esteio
só fosse raiz sem impurezas?
E se os dias contados
só fossem um rol de alvoradas frias?
E se os cães não vadios
só fossem vadios por falta de alimento?
E se as armas letais
só fossem arqueologia?
E se os abraços de ternura
só fossem rotina?
E se os rios pujantes
só fossem bênção na aridez algures?
E se deitar no sono
só fosse a comiseração dos sonhos?
E se as teclas de um piano
só fossem o lastro de um poema?
E se as gavetas arrumadas
só fossem ruas por onde se arruma a desordem?
E se a ausência de um algures
só fosse irrelevante lugar num mapa?
E se a letargia contagiante
só fosse o adiamento do tempo?
E se as medas que se juntam num museu
só fossem um testamento?
E se a estatura meã
só fosse a mentira das médias?
E se porfiar um amanhã
só fosse a mais pura das inutilidades?

10.10.16

#78

Tirando as impertinências
e o jeito ocasionalmente iracundo
não eram regateados predicados
que sogras proclamam em genros.

Carne e osso

Um casaco vestido num busto sem gente
entre cotovias grafando danças pueris
e sete pedras sentadas na cumeada
à espera de gente cansada de estar em pé.
Um casaco vestido
e um busto sem braços seu possuidor:
as antenas de outrora
(as que afeavam as cidades)
povoam as cumeadas à espera do vento
para serem gente.
Um casaco afinal despido
e um busto inanimado por companhia.
Não é peça bastante.
Casaco estéril sem valimento
não encontra cais em gente.
A carne e osso fazem diferença.

9.10.16

Canto do cisne

Epílogo.
A última gota do mar
a desmaiar na areia molhada.
O último gole de ar
antes de a água sem freio
engolir a respiração.
A última prestidigitação
antes de cair a máscara
ao farsante.
A última coisa que se é
antes de um vendaval intempestivo
tudo deixar sem serventia.

Ou apenas um cisne a cantar
sem causalidade que haja
com os pretéritos exemplos.
E o cisne vagueia,
leve e livre,
sobre as águas seu domínio
garganteando um canto nada lírico.
Sendo cisne.

A julgar
pela sabedoria ajustada pelas convenções
o canto do cisne é o seu epílogo.
Pois não cantem os cisnes
em segredo não revelado da perenidade.
Ou então
desfaça-se em despojos sem utilidade
o que sobrar da convencionada sabedoria.

E deixem os cisnes cantar
na sua leveza e liberdade
que eles amestram a paisagem bucólica.
E deixem todos os fins de histórias
desacorrentados de estultas imagens,
apenas sê-lo
fins de histórias.

7.10.16

Tinta invisível

No arco delgado da porta velha
os turistas apreciam o vagar.
Não interessam
os maltrapilhos nas proximidades
devolvidos ao desvalor
que dizem ser seu merecer.
Não interessam
as águas lodosas do rio que acama a paisagem.
Entrecortado o silêncio
no pesar do palavreado sem sentido
matraqueado sobre o dorso das pedras milenares
e descarregado o arsenal de fotografias
os forasteiros bebem de uma garrafa sem fundo.
Cambaleiam
ruidosos
no entardecer confuso do pensamento embaciado.
Aterram na terra-mãe.
Sobram memórias tinta invisível.
(Valem os retratos guardados
para avivar a tinta 
que deixou de ser invisível).

6.10.16

Águas furtadas

As mãos na terra
senti-la respirar entre os poros.
As mãos por dentro da terra
desenhando as figuras geométricas da manhã.
Por dentro da terra
sem medo de saírem imersas em negrume
das mãos nascem as veias rejuvenescidas
as veias que aprenderam com a alma da terra.
E as mãos não desistem do aroma da terra
remexem-na alarvemente
como se de uma hibernação viessem devolvidas
e famintas porfiassem.
As mãos insistem na terra
antes que a chuva tenha império
e desfaça os desenhos sem fronteira
lavando o pecúlio de um gesto.
Tiro as mãos da terra.
As mãos negras
as mãos reaprendidas
as mãos adultas.
As mãos.
E escrevo
em pauta de argila
as estrofes crepusculares
de uma espada cintada com a lua 
bordada a prata.

5.10.16

Dual

Peça ilha
três dias
tiro meia
tiro tudo
coço dedo
ligo baia
olho baço
bala erma
cura eito
dito meio
alvo mero
dedo alto
ceia toda
fria vaca
fera bela
toca alva
tôla tola.

30.9.16

A cidade nua

A cidade nua
desfolha-se através da escotilha entreaberta.

Não se sabem se as costas cansadas
dão cais aos sonhos angariados
ou se são apenas a porta transversal
de uma cidade antípoda
os raios vidrados da cidade sonhada.

A cidade nua
respira o odor da chuva na terra ressequida.
Respira
demoradamente
enquanto se embebe nos taninos singulares
de um vinho imaginado
embarcado em navios sabiamente desenhados
sulcando o rio sem o magoar.

Na cidade nua
desaprovam-se os preconceitos a eito
povoam-se os hábitos com desábitos a preceito
à mercê do vinho a rodos
que por todos é bebido
em noviço festim.

Até que tudo fique nu
impurezas que deixam de o ser
segredos sem cortinas
tratados assinados a tinta da china.

Sem supor
que há ardis por desnudar
sobressaltando a altiva nudez da cidade.

29.9.16

Archote

Um archote de pavio lacónico
todavia aceso
por perto.
A penumbra açoita o olhar
e o archote aceso
arranja lugar.
Saber-se-iam as febres tantas
houvesse carência de luz
e o corpo medrasse no limbo.
Saber-se-iam dores tumulares
e a penumbra seria endemoninhada.
Saber-se-iam sabores ácidos a turvar a boca.
O archote do pavio lacónico
convoca de uma vontade
efémera e frágil que seja,
desmaiado seja o pavio.
Só uma centelha frugal
um módico clarão
travando o pé à penumbra.
A servidão maior
procede dos olhos voluntariamente vendados
acostumados à luz apartada.
Um archote
mesmo de lacónico estatuto
opera milagres de que deus nenhum é capaz.

28.9.16

#77

A calçada gasta e orvalhada
covil de todos os logros
esconde os segredos
de quem por ela mete os pés.

Slow motion

O inverno insinua-se,
letárgico.
Os corpos cobrem-se,
frios.
O vagar dos relógios,
catártico.
Um espelho de neves,
contemplativo.
Os gatos impassíveis,
ociosos.
A penumbra opulenta,
anestesiante.
O tempo arrastado,
ciciando.
Chaminés fragmentos,
convocatória.
O calendário cautelar,
amarrotado.
As pressas adiadas,
lentamente.
Os operários enregelados,
consumidos.
As árvores despidas,
esperando.
E gente enfraquecida,
doente.
Um inverno lazarento,
algoz.
E a pressa sem pressa,
enfim.

27.9.16

Inflação homóloga

Subia pela árvore
indomável
sem retiro outro que não fosse
o impecável estatuto de um lugar sobranceiro.
Preparava os instintos para apreciarem
os lugares subjacentes;
não por usura
não para a experiência cimeira
não queria comenda inerente
ou regalias bastantes para sinecura.

O que me motivava
era a tenção de saber
o que vê um pássaro em voo
à falta de capacidades para o efeito.
Dir-se-ia
uma visão de conjunto
para mais cobrir com o olhar.
Tentativa
(julgava que não vã)
de estender os campos abraçados pelo olhar
ou apenas a irreprimível pulsão
de outro olhar trazer ao olhar.

Fosse peixe em demoradas sabatinas pelos mares
era como se espreitasse no dorso das ondas
só para as conseguir ver do avesso.

A demora que levo congemina tais preparos:
as coisas como são,
são uma fonte que se esgota.
Dizem que é juízo impreparado:
que por dentro das coisas
de que julgamos ser incansáveis hermeneutas
se escondem sentidos sublimes
entrelinhas por acautelar
e tudo se reinventa
quando a folha está repleta de texto.

Concedo.
Sou,
todavia,
argonauta intrépido
que precisa de árvores outrora descamisadas
para deixar porfiar os sentidos avisados
os sentidos que não querem capitular.
Para deixar as mãos
cinzelar as formas das árvores
que a elas veem.

Pois há sempre
um avesso no céu da boca do pensamento,
de maior carestia
do que interstícios a haver por descoberta.

26.9.16

Vertigem

Deslumbrantes
morangos frescos sobre a cama
respiram sobre a noite temporã.
Desalinham-se os céus
devolvida a claridade
apesar da noite
(já noite):
um grande lago azul sobreposto.
Anotação de empreitadas:
que estou a chegar
que trago uma forma diferente de estio
que das lonjuras viajou comigo
o horizonte desembaraçado
e as legítimas rodas dentadas
que prendem os olhos salgados à tela majestosa.
E num dezembro tardio
sem os ósculos caridosos em velhinhas ao acaso
sem as íngremes subidas mordazes
talvez
encontre uma floreira viçosa a destempo
sem garantia de gente importante
ou caução de funcionários atestados.
Os feixes de luz 
incendeiam-se por dentro dos olhos
deixando os frutos sem aroma
e os dedos incapazes de tecerem seu mapa.
Não me assusto.
Não será decerto tarde.
Não serão 
nórdicos gelos a entronizar a inércia.
Não haverá 
casacos de ferro a impedir o movimento
ou algozes desembainhados
a tornar deletérios os pensamentos.
Tenho o horizonte debaixo da manga
e não conto contar o segredo.
Os morangos colhidos
têm dias de repouso em cima da cama
e nem assim a madurez se evaporou.
O aroma obtido dos morangos
continua a ser o vaso comunicante
a aragem continua do quarto
– do quarto portanto pleno.

25.9.16

Sótão

Julgava que o peso do corpo
era preparo bastante
nos interstícios dos ramos arqueados.
Não sabia dos penhores das almas
dos humores sucedâneos
do outono pusilânime
das barcaças caducas no lodo do rio.
Não sabia que havia cores sem cortinas
ou palavras retiradas do exílio
ou suores sem o concurso de esforços.
Ele havia tantas coisas que não sabia
que nem tinha aproximada ideia
das coisas de que podia ter tirocínio.
Passava um pano limpo no retrovisor
de onde se aprumavam as memórias.
Não que tivessem préstimo as memórias;
queria que o espelho fosse varanda nítida
(e sobranceira)
sobre o cós do tempo que estava de véspera.
Não era para trazer um oráculo às minhas mãos,
que adivinhar o que se espera
é locupletar o tempo antes de tempo,
açambarcar conhecimento a destempo:
só queria um espelho desembaciado
para se abraçar
(descomprometido)
ao tempo que ainda era véspera
e dar caução ao muito que se viesse aninhar
nos anéis do saber.

24.9.16

Pela maré

Terçam-se as espadas frias
um banquete soez
aguçam-se os lápis desembainhados
para um logro no tempo.

Sabia ser uma caução sem fundo
um espelho estilhaçado que nada deixa ver
a antinomia de paisagens pinceladas a ouro.
Sabia das noites perdidas
no jeito desastrado
de desarranjar as estáveis considerações.
Sabia dos rios tumultuosos
que apenas são graça
para a paisagem que extasia.
E sabia
que as espadas correm o risco de sangrar
o risco de serem dor funda
tornando impuros os domínios onde se terçam.

Tudo confere.
Das lições marginais que não são aprendidas
das luzes baças que se emprestam ao torpor
dos corpos abandonados às nuvens vetustas
dos anéis despolidos em coreografia bastarda.

Confere.
A lição magistral
dentro de um palco freguês
onde tem lugar
o desalfandegar dos assentos confortáveis.
No dorso de um cavalo mítico
desautorizando esgares aferroados na fealdade
no sentido contrato com a inteireza.

Até que sobrem
sobre o chão molhado e sem vestígio das ruínas
só as palavras doces
os olhares ternos
a sorte tirada no avesso do infortúnio
a homérica assinatura das folhas brancas
à espera de heurísticas formulações.

23.9.16

#76

Aberta a escotilha
uma rosa de espuma sentou-se no rosto.
O sortilégio da manhã
mestiçou-se no metálico bramido do navio.

Oito ou oitenta

Aconchegar o peito vazio
ao cais capitão
dando voltas seguidas ao perplexo sentido.
Ditados descomunais em vestes sumptuosas
a preceito da função
sem rimas,
inúteis.

E o peito vazio sacia-se
enche-se de imagens grossas
imagens espessas e leitosas
com palavras capitais
palavras lustrosas
a eloquência incendiada
na ponta do fósforo teimoso.

O cais devolve a calma parecida
deitando aos olhos sementes frutuosas
de um mar cheio de navios belos
um mar timoneiro
um mar matricial.

E o peito,
já cheio
oferece-se aos preceitos idênticos.
Mandam as convenções
que não se regateie a generosidade.

22.9.16

Miradouro

As mangas arregaçadas limpam o norte
das cotovias tontas que esvoaçam rentes.

Deixei que a árvore se sentasse ao meu colo
desde que duvidei que as nuvens fossem água.

As margens acossadas de um rio
suportam os pesares contristados e nulos.

Depois da noite clara
açambarquei as fogueiras acesas em meu manto.

Convoquei
os sacerdotes evidentes
os mágicos sem eira
os cães famintos
os mendigos serenados em sua humildade
as avenidas largas e vazias de gente
sem esquecer
os tribunícios loquazes
os preguiçosos peritos
os pássaros das ilhas amaciadas
e os tenores de óperas falidas.

Para lhes dizer
em solene proclamação
que destarte sou ciente dos capazes limites
e que nada
nada
desafia os altares onde depus apoquentações.

Sou eu e os meus
em abraços cúmplices
em palavras fundas
em olhares frontais
em sentidos albergados
em casas por nós habitadas
e nada mais.

21.9.16

#75

E a cidade emudeceu
escurecida pelo nevoeiro repentino
como se houvesse perdido os pés
ou debaixo deles o chão se ausentasse.

Antes

Antes que seja tarde
antes que não se possa dizer
antes
e que o depois queira de volta
o antes que não chegou a ter lugar.
Antes que a língua se intumesça
antes que dos fiordes venha o degelo
antes que o mar engula a areia
antes que o sol se perca no fim do mar
antes que tomem as palavras por loucas
antes que os relógios sejam desmentidos
antes que o sangue deixe de ferver
antes dos beijos últimos
antes que a seara matinal entregue o orvalho
antes dos pesares sem remédio
antes que venham deuses dentes desmentidos.
E antes que se possa só dizer antes
para que o “antes que” não atire a lua ao céu
e ela venha devolvida em estilhaços.

20.9.16

Âncora perdida

Pelo fundo desbotado de uma garrafa
impuras as ideias que povoam a angústia.
Os sinos não são subtis
quando ressoam por dentro dos esteios,
desfazendo-os em pedaços.
Dir-se-ia
não ficam ideias de pé
sobram delas vestígios que apenas
apuram o sentido da memória.
O fundo da garrafa
desbotado no vidro arranhado
confere a indecisão:
idas as ideias
partidas para parte incerta
arranjam-se pedaços de chão para vindicar outras.
Não é apocalipse.
A orfandade tem vista curta.
Ditam os corpos lançados num abismo
em sua queda livre
que terá um epílogo almofadado:
não há ninguém órfão de ideias
(tirando
os que nem dão conta da petição de princípio).

#74

To lose Toulouse.
To lose in Toulouse.
Toulouse is too loose.
At Toulouse to lose.